Publicado em
26/09/2024
Daniel Audibert, agricultor do MST, enfrenta as consequências das mudanças climáticas e mobiliza ações solidárias para apoiar os desabrigados na região.
Por Isadora Morena
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Em maio de 2024, o Rio Grande do Sul viveu a maior tragédia climática de sua história. Segundo dados da Defesa Civil, a calamidade provocada pelas fortes chuvas afetou mais de 2,3 milhões de pessoas, deixando mais de 800 feridos e 34 desaparecidos. No primeiro momento, mais de 600 mil pessoas ficaram desabrigadas. Hoje, cerca de 3 mil pessoas ainda não têm onde morar. Ao todo, 179 pessoas perderam suas vidas durante as enchentes.
Porém, a cronologia desse evento climático extremo começa bem antes. Em setembro de 2023, cidades do Vale do Taquari já haviam inundado, com grandes prejuízos às famílias e 54 mortes.
Terceira pessoa a contar sua história na série especial Crise socioambiental: um desafio de todos(as), Daniel Audibert, agricultor familiar de 57 anos, vivenciou ambas as inundações. Com o transbordamento do rio Jacuí, provocado por chuvas torrenciais, viu as águas entrarem por completo em sua casa e destruírem a plantação, em Eldorado do Sul (RS), cidade próxima à capital gaúcha.
Daniel e sua família estão há 32 anos no Assentamento Integração Gaúcha, fruto da luta do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). No local, vivem 64 famílias que realizam produção orgânica de alimentos e que enfrentam as consequências da crise socioambiental.
“Somos um assentamento de reforma agrária, de produção familiar agroecológica. Já fomos impactados oito vezes por fatores climáticos, só que em 2023 e 2024 foram situações mais graves. Tivemos várias perdas na área da produção durante esses 32 anos que moramos aqui”, afirma o assentado.
O agricultor conta que, durante as mais de três décadas, os assentados têm trabalhado para a recuperação e estabilidade do solo, para garantir a produção orgânica, mas os impactos foram tantos que, agora, em 2024, eles tomaram a decisão de sair do terreno para fazer um reassentamento. “Nossa ação, na verdade, é de pleitear junto ao governo do estado para que consiga uma nova área que não tenha riscos de inundação para produzir esses alimentos. Produzimos 130 variedades de produtos certificados”, declara Daniel.
O desejo das famílias é que as terras onde hoje existe o Assentamento Integração Gaúcha tornem-se uma área de preservação ambiental permanente. “Queremos devolver para a Natureza essa parte que as águas, por exemplo, já mostraram por várias vezes que elas vêm buscar”, ressalta o agricultor.
Ações solidárias
Apesar dos traumas e perdas devido às enchentes, as famílias assentadas, como a de Daniel, participaram ativamente do processo de produção de marmitas para as pessoas desabrigadas e em situações de maior vulnerabilidade.
“Sempre estivemos juntos nessa construção das marmitas durante os dias dos eventos climáticos no Rio Grande do Sul. O MST formou seis cozinhas comunitárias na região metropolitana de Porto Alegre. Por mais que não tivéssemos alimentos para doar, porque a água cobriu as nossas hortas, nós estávamos lá nas cozinhas ajudando a cozinhar, a fechar marmitas e mandar para essas pessoas que necessitavam.”
Desde o dia 4 de maio, as seis cozinhas solidárias do MST produziram mais de 180 mil marmitas. Duas instalações seguem em funcionamento produzindo cerca de 500 marmitas por dia.
Daniel comenta que a ação solidária é uma questão ideológica do próprio MST, reforçando que o trabalho de solidariedade entre os assentados já existia antes mesmo da tragédia climática. “Nós já tínhamos isso há vários anos como meta prioritária. Fazíamos as feiras em Porto Alegre e doávamos nosso excedente para entidades por meio da organização A fome tem pressa. Temos muitas ações em que plantamos também alguns produtos para fazer essa parte das doações. Todas às terças e sábados encaminhamos produtos para as cozinhas comunitárias de Porto Alegre”.
Daniel e as famílias assentadas também foram auxiliadas por ações de solidariedade no período das chuvas. “Tivemos muita ajuda por parte de ONGs, da Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap) e do MST. Recebemos através do Pix Solidário mudas de hortaliças e adubos orgânicos para começarmos o replantio após as águas terem deixado os locais”, afirma.
Apesar da tentativa de reconstruir o assentamento, o horizonte de Daniel e seus vizinhos é mesmo o reassentamento. “Estamos aqui, hoje, plantando de novo, mas com aquela visão de que um dia poderemos reconstruir essa história toda em outro lugar mais seguro e mais tranquilo, e que possamos devolver essas terras à Natureza”, enfatiza.
“A gente luta, sonha, mas jamais desiste. A reforma agrária é isso, enquanto estiver uma família sem terra e, enquanto existir um latifúndio, a gente está na luta para que essa terra passe a ser produtiva e realmente produza alimentos de qualidade para quem mais precisa na ponta. A gente tem que dividir essa parte da solidariedade, mas tem que também dividir essa parte da produção e da responsabilidade de todo o ser humano no Planeta. A bandeira principal do movimento é produzir alimento saudável e preservar o meio ambiente, a Natureza e o ecossistema como um todo”, conclui o agricultor.
Povo gaúcho ainda necessita de atenção e solidariedade
Com o passar dos meses, a tragédia do Rio Grande do Sul perdeu espaço na mídia hegemônica. Isso também resultou na redução de doações e ações de solidariedade na região. Mas a situação ainda é calamitosa, com milhares de desabrigados. Pessoas que perderam tudo e seguem necessitando de ajuda para as necessidades básicas e direitos fundamentais, como alimentação.
O estado ainda vive problemas graves de infraestrutura em ferrovias, aeroportos e rodovias. Muitas escolas seguem funcionando como abrigos e os profissionais de educação – assim como das demais áreas – não têm condições psicológicas de retornarem ao trabalho.
O momento ainda pede, portanto, a atenção do poder público e da sociedade brasileira.
Saiba como continuar apoiando o povo gaúcho
A coluna Cidadania Digital da 10ª edição da Revista Casa Comum colocou em pauta os aplicativos digitais e de inteligência artificial que auxiliam no enfrentamento à emergência climática e também contribuem para evitá-la. Confira aqui.
Crise socioambiental: um desafio de todos(as)
A iniciativa traz uma produção multimídia composta por textos, podcasts e vídeos, com o objetivo de conferir mais espaço para que Daniel Audibert, Ana Maria Sousa Farias, Aldair Paulino, Alida Gómez e Maria Clara Salvador – pessoas ouvidas pela reportagem Em Destaque da 10ª edição da Revista Casa Comum – compartilhem de que forma a emergência climática afetou sua vida e seu sustento e o porquê a crise socioambiental vigente é um assunto de todos, mesmo que os efeitos sentidos por cada um(a) sejam diferentes.
Clique no banner abaixo e conheça a série na íntegra.
O caminho que se apresenta é a conversão ecológica, ou seja, uma mudança radical na qual, ao invés de explorar o planeta, a Natureza e a vida até a exaustão, é necessário aprender a cuidar da Terra e uns dos outros, em uma lógica de inter-relação, cultivo e cuidado.
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Série especial da Revista Casa Comum apresenta cinco histórias de vida de pessoas que, de alguma forma, foram afetadas pelos efeitos e consequências da crise socioambiental.
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