Publicado em
29/08/2024
Iniciativas espalhadas pelo Brasil unem projetos e ações que visam a preservação do meio ambiente a partir de métodos de produção e consumo conscientes, com viés social.
Por Maria Victória Oliveira
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Analisar as origens do fenômeno da crise do clima pode ser um choque de realidade para algumas pessoas, ao descobrir que os principais causadores dos efeitos que se agravam a cada dia são os próprios seres humanos.
O capitalismo, modelo econômico vigente, prioriza o lucro e visa o capital acima de tudo, o que inclui as próprias relações humanas e, é claro, o meio ambiente. Trata-se de um modelo de produção e consumo que transforma tudo em mercadoria, passível de se comprar e de se vender, o que tem consequências diretas não só para a saúde do planeta, mas também para o bem-estar das pessoas.
Observa-se, entretanto, que, espalhados por todo o planeta, alguns grupos têm praticado há séculos outras formas de produzir e consumir e se relacionar com a terra, em uma relação não de pura exploração, mas de respeito com os ciclos naturais.
Na 9ª edição da Revista Casa Comum, Naiara Leite, coordenadora executiva do Odara – Instituto da Mulher Negra, uma organização negra feminista, centrada no legado africano, sediada em Salvador, na Bahia – falou sobre a solidariedade coletiva comunitária que mulheres negras cultivam há tempos. “Chama uma mulher negra para conversar sobre o que é política econômica e ela vai te dizer que, na rua dela, quando falta comida, as mulheres negras se juntam para ajudar a outra a se alimentar.”
Às mulheres negras, somam-se povos indígenas e tradicionais, quilombolas, ribeirinhos, pequenos agricultores e populações periféricas que se organizam de maneiras alternativas, muito pautados na solidariedade e cooperação, para, ao mesmo tempo que produzem e consomem com consciência, contribuam para apresentar outros caminhos em detrimento da exploração desenfreada do planeta.
Abaixo, a Revista Casa Comum destaca algumas iniciativas de produção e consumo, bem como a relação dessas formas alternativas com temáticas como a reforma agrária e a educação popular.
Instituto Cacimba
Resgatar o senso de viver e conviver em comunidade e ressignificar a relação com os recursos financeiros, sociais e ambientais são dois dos principais objetivos do Instituto Cacimba. Criada em 2020 pelo Instituto Nua na região de São Miguel Paulista, na cidade de São Paulo, a iniciativa atua a partir do apoio, fomento e financiamento de projetos sociais de organizações, coletivos e movimentos que nasceram no território.
Para Hermes de Sousa, diretor-presidente do Instituto Cacimba, esses pilares estão relacionados à melhoria da qualidade de vida em comunidade. “Produzir e consumir nem sempre é geração de riqueza. A convivência produz colaboração e cooperação em busca da sonhada sustentabilidade, com consumo consciente. Falamos e incentivamos a responsabilidade social e ambiental com tudo e com todos”, aponta.
O próprio nome do Instituto traz uma inspiração: cacimba é um tipo de poço artesanal típico do sertão nordestino, feitos de forma coletiva, que servem para que diversas pessoas matem a sede, retirando apenas uma quantidade suficiente de água para que todos possam aproveitá-la.
Entre as ações do Instituto estão: contribuição para uma educação autodirigida e novas formas de economia; busca pela redução da desigualdade social a partir da troca de saberes, bens, serviços e produtos; e contribuição para a regenerar a confiança e o ambiente em sua integralidade.
Atualmente, o Instituto Cacimba é um verdadeiro ecossistema comunitário. Entre suas ações estão a promoção e fortalecimento do terceiro setor local a partir de formações, consultorias e workshops, captação de recursos, além de mapeamentos, pesquisas e levantamentos de dados, conhecimentos que são aplicados em fundos temáticos e outras iniciativas, como no Banco Cacimba, uma vez que a parte econômica é um dos pilares do Instituto.
São diferentes soluções financeiras para apoiar o desenvolvimento econômico local: como a possibilidade de um microcrédito social e uma moeda complementar. “O Banco Cacimba é um grande desafio. Com tantos bancos digitais que surgiram, o que nos leva nessa jornada é criar outras possibilidades para além da moeda local, com microcrédito, lançamento de editais que fortaleçam iniciativas inovadoras da juventude e apoio ao empreendedorismo periférico feminino”, enumera Hermes.
Outra iniciativa desenvolvida no território é o projeto Quebrada Sustentável – empresa social que atua com e em apoio ao Instituto Nua e ao Instituto Cacimba – que envolve a regeneração de áreas degradadas no território, educação ambiental nas escolas com criação de hortas urbanas e escolares, composteiras e incentivo a coleta seletiva domiciliar, além da realização de uma feira, que traz alimentos saudáveis de pequenos produtores a preço justo para a comunidade.
“Com base na economia solidária, criamos arranjos de desnegocio [estratégia que faz parte da Escola de desNegócio, iniciativa de capacitação, apoio e aceleração de negócios para fortalecer a economia local], ou seja, um empreendedorismo regenerativo, que, com apoio de capital semente e mentoria, regenera sonhos, se fortalece no coletivo e rega esse esperançar de geração da renda com qualidade de vida, produzindo e servindo o melhor para comunidade. A regeneração da confiança, na criação de ecossistemas comunitários, contribui para melhorar a qualidade de vida da população e os níveis das relações ecológica, econômica e educacional no território, além de ressignificar a relação com os recursos financeiros, sociais e ambientais. Tudo isso considera o bem-estar emocional como o grande ativo para o desenvolvimento comunitário”, analisa Hermes.
Conheça:
> https://www.instagram.com/instituto_nua/
> https://institutocacimba.org/
> https://www.instagram.com/instituto.cacimba
> https://www.instagram.com/desnegocio
Banco Palmas
Entrevistado na 9ª edição da Revista Casa Comum, Renato Pequeno, arquiteto e urbanista,
professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenador do Laboratório de Estudos da Habitação (LEHAB) cita o caso do Banco Palmas, tido como o primeiro banco comunitário do Brasil.
A iniciativa foi criada em 1998 pela Associação dos Moradores do Conjunto Palmeiras (ASMOCONP), um bairro no sul de Fortaleza, Ceará, com o objetivo de democratizar o acesso a serviços financeiros e bancários para a população da periferia da cidade, com ampla participação e controle social, mobilização de associações locais, buscando o desenvolvimento socioeconômico de bairros e favelas.
“Uma liderança do bairro percebeu que as pessoas que ali viviam saíam para trabalhar e gastavam o dinheiro fora do bairro. Então pensaram na criação de uma moeda própria que viabilizava a troca de coisas: um corte de cabelo custava tanto, uma costura na roupa custava outro tanto. Foi uma estratégia para criar possibilidades de geração de trabalho e renda dentro da comunidade”, explica Renato.
Hoje já consolidado, o Instituto Banco Palmas atua a partir de seis pilares para provar que uma nova economia é possível: apoio a projetos sociais, oferta de cursos educacionais de crescimento profissional e econômico, incentivo ao desenvolvimento tecnológico, fomento à economia local, participação em iniciativas comunitárias e apoio ao crédito a partir de empréstimos.
Conheça:
> https://bancopalmas.com/sobre/
> https://www.instagram.com/bancopalmas
Boa Vista Acolhedora
Um projeto que visa o fomento ao conhecimento, acesso a tecnologias e à construção de uma agenda pública voltada à economia circular, regenerativa e inclusiva de venezuelanos e brasileiros em situação de vulnerabilidade, bem como a implantação de um plano piloto de práticas intersetoriais inovadoras voltadas ao setor agroalimentar. Esses são os principais objetivos do Boa Vista Acolhedora, uma iniciativa desenvolvida na capital de Roraima pela Associação Voluntários para o Serviço Internacional Brasil (AVSI Brasil) com apoio de diferentes parceiros, entre eles a Fundação Banco do Brasil e a União Europeia enquanto financiadora.
Iniciado em 2021, o projeto tem a economia circular como um de seus pilares, enquanto modelo econômico que busca a sustentabilidade, promovendo a reutilização, reciclagem e regeneração de materiais e recursos. Ao invés de seguir o ciclo tradicional de produção-consumo-descarte, a economia circular reintegra resíduos e subprodutos ao processo produtivo, minimizando o desperdício e a extração de novos recursos.
Segundo Juliana Leitão, responsável pelo projeto Boa Vista Acolhedora, a economia circular está diretamente ligada à conservação e preservação do meio ambiente, pois visa reduzir a extração de recursos naturais, minimizar a geração de resíduos e diminuir as emissões de gases de efeito estufa. “Ao transformar resíduos em novos produtos ou recursos, a economia circular ajuda a mitigar impactos ambientais, como a poluição do solo e da água, contribuindo para a manutenção dos ecossistemas. Além disso, a implementação desse modelo pode incentivar práticas agrícolas, agroecológicas, sustentáveis e regenerativas, que protegem a biodiversidade e conservam os recursos naturais da região”, explica.
Ao ser realizado no contexto amazônico, uma região de alta biodiversidade e desafios socioeconômicos, o projeto contribui para a preservação do meio ambiente local, ao mesmo tempo em que oferece alternativas econômicas para comunidades em situação de vulnerabilidade, como mulheres, pessoas refugiadas e agricultores familiares.
“Integrar alternativas econômicas sustentáveis como a economia circular em programas que visam grupos vulneráveis é estratégico, pois essas práticas não apenas oferecem soluções para problemas ambientais, mas também abordam questões sociais e econômicas. Para mulheres, refugiados e agricultores familiares, esses programas criam oportunidades de capacitação e inclusão produtiva, promovendo a equidade social e econômica. Os benefícios incluem o fortalecimento das redes comunitárias, a geração de renda, o aumento da segurança alimentar e a melhoria das condições de vida. Ao capacitar esses grupos em práticas sustentáveis, o projeto ajuda a construir uma economia inclusiva, que valoriza em primeiro lugar as pessoas – que é o nosso propósito – e também o meio ambiente onde estão inseridas”, explica Juliana.
Em processo de encerramento neste mês de agosto de 2024, o projeto contabiliza conquistas importantes, como a criação da Rede de Economia Circular e Agroecologia de Boa Vista (RECA – BV). Entre seus objetivos, estão: promover a comunicação, a troca de saberes e a atuação para o desenvolvimento da economia circular e agroecologia, tendo como fio condutor a construção participativa para soberania alimentar e nutricional, a contribuição com as políticas públicas, a sustentabilidade da agricultura familiar nos territórios e a vida no planeta como um todo. Atualmente, 36 organizações da sociedade civil (OSCs), poder público e privado integram a RECA, além de 60 pessoas participantes.
Conheça:
Os 40 anos do MST
Janeiro desse ano marcou os 40 anos de existência do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Criado em 1984, o MST está organizado em 24 estados nas cinco regiões do país e conta com 400 mil famílias assentadas, e se define como um movimento social, de massas, autônomo, que procura articular e organizar os trabalhadores rurais e a sociedade para conquistar a reforma agrária e um projeto popular para o Brasil.
Qual é a relação, entretanto, entre a luta por terra e as novas formas de produção e consumo? Giselda Coelho Pereira, membro da direção do MST, prova que os dois mundos caminham lado a lado, indissociáveis.
Considerando que o Brasil é um país com grandes concentrações de terra, para Giselda, a reforma agrária vai além do acesso a um espaço para morar. “O direito à terra é um direito negado do ponto de vista de sua universalização como um espaço de reprodução da vida e da produção de alimentos, o que é importantíssimo para a soberania de um país. Um assentamento de reforma agrária dá uma condição de vida, de morar, mas também de vida social organizada. Por mais simplificados que sejam, os assentamentos têm uma diversidade da produção de alimentos”, explica.
E não se trata de qualquer produção. Um dos pilares do MST é a produção de alimentos sem o uso de agrotóxicos e defensivos, bem como o cuidado com o espaço onde determinada prática agrícola é realizada. Giselda conta que há exemplos de assentamentos que eram áreas totalmente degradadas ou destinadas à monocultura e que, hoje, depois de as famílias assumirem, transformaram-se em áreas reflorestadas. “Com isso cria-se um microclima e contribui significativamente para a reconstrução desse território a partir da reestruturação do próprio solo.”
Um aspecto fundamental, entretanto, trazido por Giselda, é a compreensão de que a produção de alimentos saudáveis é um assunto do interesse de todos – não apenas de quem está diretamente envolvido com a plantação -, além da adoção dessas novas posturas e práticas, como a agroecologia, pelo estado brasileiro, com o objetivo de potencializar e consolidar essas formas de produção.
Pilares característicos da organização do MST que fazem todo esse esquema de produção e comercialização funcionar estão na colaboração, cooperativismo, associações e agroindústria. Segundo Giselda, a relação de cooperação traz benefícios não só do ponto de vista de geração de renda, mas também uma perspectiva do processo de formação das famílias, à medida que eleva seu nível de consciência sobre o cooperativismo e sobre sua relação tanto com a natureza, como com a produção e identificação dos processos envolvidos no cultivo dos alimentos para sua comercialização.
“No cooperativismo, as famílias estão dentro de um processo que visa dimensões sociais, organizativas, políticas e ambientais, mas também visa a renda. Então, isso acaba fechando um ciclo e dando um sentido, um senso de responsabilidade para as famílias, algo que anima as pessoas a participarem desse processo.”
O aspecto educativo da luta pela terra
Importante mencionar que o MST desenvolve ações de caráter educacional, tendo como base a educação formal e popular. Para Giselda, esse é um quesito importante que deve começar o quanto antes, uma vez que é uma possibilidade de cuidar de toda uma geração, a partir da promoção de mudanças de comportamento, de relações sociais e da própria relação com a natureza.
Uma das frentes de atuação é o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis, lançado pelo MST em 2020, uma iniciativa de articulação, formação, organização política e debate nacional, visando a plantação de 100 milhões de árvores em dez anos, a produção de alimentos saudáveis, além da denúncia dos impactos do agronegócio.
Giselda conta que existem iniciativas e momentos destinados especialmente às crianças e às juventudes, pelo menos um curso por ano, oficinas virtuais que alcançam pessoas de todo o país, e também a metodologia ‘De camponês a camponês’, que objetiva a socialização de práticas e teorias organizadas a partir dos próprios agricultores.
Por fim, o MST também conta com articulações visando a inserção de temáticas relacionadas à educação ambiental nos currículos pedagógicos das escolas do campo, espalhadas pelos assentamentos do Movimento.
Conheça:
> https://mst.org.br/
> https://www.instagram.com/movimentosemterra/
A educação popular como ferramenta de transformação
Muito do que o MST faz quando o assunto é formação pode se configurar como aspectos da educação popular.
Pedro Pontual, doutor em educação com ênfase na área de educação popular e diretor de educação popular da Secretaria Nacional de Participação Social da Secretaria-Geral da Presidência da República, explica que trata-se de uma metodologia educativa, que, em primeiro lugar, incentiva a participação social e estimula o engajamento, comportamentos que se tornam fundamentais para um processo de conscientização sobre as mudanças necessárias diante da crise climática.
Psicólogo atuante em temas como cidadania, políticas públicas, gestão democrática e participação social, Pedro Pontual acredita que estratégias de educação popular podem ajudar a criar novos tipos de relação entre seres humanos e natureza, uma vez que a metodologia trabalha com uma busca na mudança dos modos de fazer das pessoas.
“Ao buscar um agir transformador, [a educação popular] abre espaço para a proposição de soluções coletivas para os problemas. E nós sabemos que essa possibilidade de organizar novas formas de produção e de consumo supõe soluções coletivas. Não se organiza novas formas de produção e consumo apenas com o agir individual. Tem que ter um agir coletivo, e a educação popular, por essência, busca justamente motivar as pessoas para esse agir coletivo e transformador”, afirma.
Além dessa conscientização e transformação coletiva, a educação popular também pode ser um caminho para a identificação de iniciativas nos territórios que já trabalham esse agir transformador. “[A educação popular] é essa lupa que permite você dar visibilidade para essas experiências e práticas já existentes, que não são poucas. Eu vou para espaços muito diferentes e cada vez volto mais impressionado com a riqueza de práticas alternativas que, infelizmente, só não têm maior visibilidade por uma dificuldade de articulação. A educação popular, ao promover esse processo que a gente chama de troca de experiências e de saberes, permite que essas práticas tenham visibilidade e possam, de alguma maneira, iluminar a formulação de políticas, através, principalmente, dos canais de participação.”
Conheça:
> https://www.instagram.com/carvalhopontual/