Publicado em
17/09/2024
A crise climática exige mudanças na matriz energética mundial e o Brasil enfrenta desafios para realizar uma transição energética justa.
Por Isadora Morena
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“Hoje a gente enfrenta um problema mundial, que é o avanço da crise climática. Uma das principais estratégias para que a gente não tenha um agravamento dessa crise é a diminuição da emissão de gases de efeito estufa”, explica Bárbara Gomes, 28 anos. Engenheira de Energias pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), a jovem participou da COP 28, em 2022, no Egito, e hoje é consultora em Energia e analista em Justiça Climática.
De acordo com Bárbara, uma das mais importantes mudanças a serem feitas globalmente para redução do efeito estufa é a não utilização de combustíveis fósseis – como o carvão mineral, o gás natural e o petróleo –, como principal recurso para a produção energética.
Apesar de as indústrias e do setor de transporte no Brasil ainda serem cadeias produtivas muito carbonizadas, ou seja, que utilizam os recursos fósseis como fonte energética, o país tem ampliado a produção de energia elétrica por meio de fontes renováveis, a partir de hidrelétricas, usinas eólicas e de placas solares.
De acordo com a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), no ano de 2023, 93,1% da energia elétrica produzida no Brasil foi de fonte renovável. O número representa um recorde histórico considerando que esse índice é analisado desde 2013.
O avanço é notório. Porém essa transição energética tem ocorrido de forma justa e sustentável no país? Há muitas evidências de que não é assim.
Primeiramente, deveríamos chamar essa transição de “minero-energética”, porque, para produzir as chamadas “energias limpas”, é necessário concentrar grandes quantidades de terras raras e minerais como lítio, grafite, cobre, etc. O extrativismo predatório desses minerais aumentou criticamente, especialmente em América Latina e África, provocando graves conflitos e violações socioambientais.
Além disso, há os casos de violação aos direitos humanos e os impactos socioambientais registrados em áreas de funcionamento de hidrelétricas – como o caso de Belo Monte, no Pará – e de instalação de grandes parques eólicos e solares – como vem vivenciando estados nordestinos, como o Rio Grande do Norte.
Segundo Bárbara, “nenhuma forma de transformação de energia é totalmente limpa e seja qual for o tipo de construção, de empreendimento energético, ele vai ter impacto. Então, a gente precisa que tenha o menor impacto possível e, dentro desse contexto, precisa também ser benéfico para as comunidades que estão em volta.”
Porém, esses benefícios às comunidades não são vistos no Rio Grande do Norte, por exemplo. É o que afirma o historiador e arqueólogo Joadson Vagner Silva, de 31 anos. O pesquisador é morador de São Vicente, cidade incrustada no Seridó potiguar, território semiárido que vive o intenso avanço de implementação de parques eólicos e solares.
Joadson integra o Seridó Vivo, coletivo de pesquisadores e moradores da região. “Atuamos frente a esses grandes empreendimentos de energias renováveis, que têm chegado aqui como solução, mas, na verdade, têm aumentado os problemas. Tem sido uma falsa solução nesse contexto atual que se chama transição energética”, explica. O grupo compõe o Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR).
De acordo com o pesquisador, 5% do Rio Grande do Norte já está arrendado ou vendido para empresas geradoras de energias renováveis, sendo que os impactos advindos das usinas são diversos, sejam físicos, bióticos ou socioeconômicos.
Para exemplificar a destruição provocada, Joadson explica que a instalação desses empreendimentos já é o segundo principal causador de desmatamento da Caatinga no país, e, no Rio Grande do Norte, é o principal fator. A Caatinga é um bioma que só existe no semiárido do nosso país e sofre com sérios problemas de perda de biodiversidade por ser pouco preservado.
Segundo a Embrapa, pesquisas recentes revelam que “a Caatinga demonstra elevada eficiência no uso de carbono, superando até mesmo as florestas da Amazônia.” É, nos territórios com maior preservação de Caatinga no Seridó, que os empreendimentos estão se instalando: as áreas serranas.
Outro desafio é o fato de os territórios que antes serviam para a agricultura familiar, serem agora verdadeiros latifúndios para a geração de energia e sem retorno social para essas comunidades. “Na região da Serra de Santana, mais de três mil propriedades deixaram de produzir alimento para virar áreas produtoras de energia.” O dado é um levantamento feito pela Federação dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares do Rio Grande do Norte (FETARN).
Há também muita poluição sonora e uma forte poeira na região, o que tem provocado adoecimentos e intenso êxodo rural. “É muito comum você se deparar com população rural que não tem mais sossego, tendo que tomar medicamento, para conseguir, por exemplo, dormir. Tem sido, inclusive, muito relatada uma patologia diagnosticada na França, que se chama Síndrome da Turbina Eólica, que é justamente por conta do incômodo que esses empreendimentos causam”, ressalta Joadson.
Entre outras questões, o pesquisador ainda elenca as perdas culturais com a desagregação social e os riscos que os parques arqueológicos da região enfrentam, podendo existir severos danos ao patrimônio histórico local.
Questionado sobre o que seria uma transição energética justa, o seridoense afirma de forma categórica: “Seria um modelo baseado na autonomia por parte de comunidades para gerar energia, e não essa transição energética presa aos interesses do capital por meio dos grandes conglomerados. Temos diversos exemplos no Brasil de geração de energia de forma comunitária, descentralizada. A centralização aumenta os impactos justamente por conta de toda a infraestrutura concentrada.”
Para Joadson, as energias renováveis são muito interessantes, mas o modelo escolhido no Brasil, que beneficia muito mais o grande capital, é o que tem trazido os problemas. “Não é a energia em si, é o modelo escolhido. E o que nós temos visto é exatamente empresas, muitas da Europa ou do Brasil, que têm uma história ligada à geração de energia por meio de combustíveis fósseis, migrando para explorar as energias renováveis, inclusive com todo o seu cabedal de injustiças socioambientais.”
“Como a Caatinga é o bioma semiárido mais habitado por populações humanas do mundo, consequentemente também vai gerar diversos desafios sociais, como é o caso da apropriação de territórios tradicionais por parte das empresas, e aí tem uma série de problemas, como é o caso dos contratos fraudulentos, aqueles que só beneficiam as empresas e deixam os arrendatários no prejuízo”, conta Joadson.
Iniciativas inovadoras
Como exemplo de outro modelo possível de geração de energia renovável está o projeto Veredas Sol e Lares, realizado em Minas Gerais via Programa de Pesquisa e Desenvolvimento da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL). O projeto resultou na instalação de uma usina de placas de energia solar flutuante (UFVf) sobre o reservatório da Pequena Central Hidrelétrica (PCH) Santa Marta, localizada no município de Grão Mogol (MG). O grande diferencial é que ela é gerida por uma associação de famílias que são beneficiadas com o recebimento de energia.
“O projeto consiste em uma iniciativa protagonizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), na região do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. É uma semente da luta defendida pelo movimento em torno do Projeto Energético Popular, que seja capaz de associar, entre outros, a geração de energia ao protagonismo e aos interesses populares, visando o desenvolvimento regional”, explica Luis Shikasho, coordenador de projetos da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas), que executa o projeto junto ao MAB.
A usina tem uma potência de energia estimada de 1.816 MWh/ano. Parte dessa geração é destinada atualmente para aproximadamente 600 famílias de 19 municípios do semiárido mineiro. Outra parte é destinada para pessoas físicas e jurídicas, que são parceiras da iniciativa e colaboram para o custeio das atividades de gestão, operação e manutenção da usina.
De acordo com Luis, é possível perceber uma série de benefícios em projetos como o Veredas Sol e Lares. “Para populações de baixa renda, com geração de energia própria, os custos são reduzidos e permitem aplicação em outras demandas”.
Além dos aspectos econômicos, Luis destaca que o projeto fomentou um olhar coletivo, comunitário e regional para grandes temas, como o atual modelo de energia do país e os impactos de grandes projetos que historicamente aprofundam desigualdades.
Fique por dentro
• Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (Aedas): aedasmg.org
• Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE): ccee.org.br
• Coletivo Seridó Vivo: bit.ly/RCC_10_17
• Embrapa: embrapa.br Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB): mab.org.br
• Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR): bit.ly/RCC_10_18
• Movimento dos Atingidos pelas Renováveis (MAR): bit.ly/RCC_10_18
Saiba mais
Confira outros debates sobre o tema na matéria produzida pela Revista Casa Comum, a partir das discussões realizadas no Seminário CEBDS 2024: Transição Energética Justa Integrada à Natureza e Sociedade.
>> Acesse: bit.ly/RCC_10_76
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