Publicado em
24/04/2025
Produção de dados e informações sobre o setor cultural são fundamentais para que a população brasileira avance na compreensão sobre a importância social, simbólica e econômica do setor da cultura e economia criativa.
Por Maria Victória Oliveira
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Você já parou para pensar em quantas pessoas estão envolvidas na produção e na realização de um show musical, além do(a) próprio(a) artista? Vamos fazer um exercício: são necessários profissionais para transportar figurinos, instrumentos musicais e o cenário, maquiadores, cabeleireiros, cozinheiros, assistentes, todo o pessoal envolvido com o som, dançarinos, a banda, a pessoa que organiza todos esses processos e agenda passagens aéreas e estadias em hotéis para todos os demais. Trata-se de uma verdadeira orquestra de processos que precisam acontecer para que o público acompanhe a apresentação e tudo saia conforme o planejado.
E quanto a um(a) professor(a) de música, por exemplo? É possível dar aulas de manhã em uma escola, gravar e produzir jingles de músicas comerciais na parte da tarde e se apresentar em um barzinho na parte da noite. Esse é o exemplo utilizado por Daniele Canedo, pesquisadora, professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e da Federal da Bahia (UFBA), além de coordenadora do Observatório da Economia Criativa (OBEC-BA), que deixa transparecer os desafios que ainda existem ao abordar o potencial econômico do setor cultural e da economia criativa no Brasil.
A diretora explica que muita gente insiste em manter um pensamento ultrapassado quando o assunto é “viver de cultura” no Brasil. “Nosso principal desafio é mudar um paradigma histórico que se estabeleceu de que quem trabalha com arte e cultura não é trabalhador, é artista, aquele perfil de artista da ‘idade média’, que trabalha sem muita preocupação com os recursos, ou uma pessoa herdeira que se dedica às artes como opção de vida mais livre. Essa não é a realidade da maioria dos brasileiros que vivem disso.”
Isso porque o setor apresenta números expressivos: segundo o Observatório Itaú Cultural, o quarto trimestre de 2023 registrou 7,75 milhões de trabalhadores(as) na área da economia criativa – uma variação positiva de 4% se comparado ao mesmo período em 2022. O índice de quase oito milhões de pessoas é o maior já registrado pelo Observatório, quando o setor se recuperou de um momento de queda entre 2022 e 2023, com a criação de 577 mil postos de trabalho nos setores culturais e criativos em 2023.
A mesma organização também mostrou que, em 2020, o Produto Interno Bruto (PIB) da Economia da Cultura e das Indústrias Criativas (Ecic) alcançou a marca de 3,11% – superando os 2,1% da indústria automobilística no mesmo período.
Desigualdades impulsionam criatividade
Para Adriana Barbosa, diretora-executiva da Feira Preta e fundadora do Feira Preta Festival, todo esse potencial vem da própria população brasileira e do histórico do país.
“Partindo do pressuposto que a matéria-prima da economia criativa é a criatividade e a intelectualidade, eu acredito que a centralidade dessa economia é a população brasileira,
trazendo para essa questão a desigualdade. Onde há muita escassez e uma diversidade de população, inevitavelmente vai haver criatividade para lidar com a desigualdade. É por isso que as regiões periféricas são tão criativas, mesmo em contextos de vulnerabilidade e de escassez de infraestrutura e de serviços básicos.”
A essa discussão, Adriana adiciona um componente histórico: com um passado marcado pela escravidão, o Brasil peca quando o assunto é reparação e justiça racial para a população negra.
A ideia da Feira Preta surgiu quando Adriana vendia roupas na Praça Benedito Calixto, em São Paulo, empreendendo por necessidade. Hoje, é considerada um ecossistema estratégico focado no fortalecimento econômico e cultural da população negra na América Latina, e usa os próprios pilares da economia criativa para investir no setor.
Isso envolve, por exemplo, a criação de uma metodologia pensada na construção do mercado de consumo da cultura negra, programa de repasse de recursos a empreendedores e também produção de dados.
“A Feira Preta vem desse lugar de escassez de oportunidade para um lugar de reconhecimento de toda a potência e empoderamento econômico da população negra no Brasil, com a economia criativa como esse lugar de mobilidade econômica junto com a valorização e promoção da cultura negra e o fortalecimento das identidades e territórios.”
A experiência cultural e criativa da Agência Solano Trindade
Quem coloca em prática e respira economia criativa diariamente é a Agência Solano Trindade. Criada em 2009 na periferia da zona Sul de São Paulo, leva no nome a inspiração no poeta, ator e militante do movimento negro, Solano Trindade, e visa ser um espaço para potencializar o fazer criativo e cultural das periferias.
Thiago Vinicius, fundador da Agência, define a periferia enquanto grande produtora de tecnologias sociais que mostram o potencial local. Ele exemplifica que a telha da sede da Agência Solano Trindade é feita de tubo de pasta de dente e caixa de leite, onde há, também, captação
da água da chuva que rega a horta onde são plantados os temperos usados no restaurante que funciona no local. “Sempre pensamos nessa circularidade, mas são tecnologias que já estavam presentes no nosso dia a dia enquanto periferia. Nós só aprendemos com os Griôs e apertamos ‘F5’ [ato de atualizar, renovar]. A favela e os terreiros têm essa capacidade de falar de desenvolvimento e economia criativa.”
Além da casa que funciona como espaço de sede e coworking – com direito à ilha de edição de produções audiovisuais e empréstimo de equipamentos fotográficos, por exemplo –, a Agência também conta com um restaurante – um ponto de cultura alimentar, como define Thiago – que se vale de alimentos plantados no campo sem uso de agrotóxicos e abriga shows. Tudo isso com o objetivo de gerar renda para empreendedores periféricos e atrair mais pessoas para a periferia.
Outras iniciativas de impacto social desenvolvidas pela Agência são o Hub Criativo Solano Trindade – negócio de comunicação social que, ao promover a conexão entre marcas/organizações e profissionais/talentos periféricos, visa impulsionar a cultura, estar conectado com a ancestralidade e, ao mesmo tempo, celebrar a atual juventude da periferia – e o Festival Percurso, um evento
de economia criativa que envolve fazedores de cultura e prestadores de serviços periféricos e já está celebrando uma década de existência.
Toda essa atuação gerou a nomeação de Thiago na lista VOZES30, enquanto uma das 30 vozes que lutaram para mudar a indústria da comunicação em 2024 com projetos e iniciativas reais.
“A minha trajetória é essa: ver mais jovens se desenvolvendo e gerando renda, potencializando o território, saindo das páginas policiais para ocupar as páginas culturais, gastronômicas e econômicas. Quando um jovem vê seu talento se desenvolvendo e se sente valorizado, ele vai conseguir viver do seu sonho e entender as tecnologias para atuar a seu favor e conseguir trocar fuzil por máquina fotográfica.”
Pesquisa e dados para fortalecer políticas públicas
O OBEC surge em 2014 a partir de um projeto da Secretaria de Economia Criativa no Ministério da Cultura, compreendendo não só a importância, como a necessidade de dados e indicadores para orientar o processo decisório no campo das políticas públicas nesse setor, auxiliando a gestão baseada em evidências a partir do conhecimento gerado nas universidades.
“Nós entendemos que é um papel do estado assegurar os direitos culturais para a população. Estamos produzindo pesquisas que possam gerar subsídios e evidências para tomada de decisão das políticas públicas, como também para que a sociedade civil possa pleitear políticas públicas e brigar por outro tipo de acesso à cultura”, contextualiza Daniele.
O uso de linguagem simples e divulgação de achados das pesquisas em eventos são algumas estratégias utilizadas para aproximar o público dos estudos acadêmicos. Logo no início da pandemia de Covid-19, o OBEC criou um boletim quinzenal sobre os impactos da pandemia na economia criativa. Entre outras iniciativas, está também um mapeamento nacional da Lei Aldir Blanc.
“Precisamos de mais informações e dados que mapeiam a importância desse campo e que explicitem para a sociedade que a economia criativa gera trabalho, gera PIB e movimenta a economia. Mas, além disso, é um setor que gera resultados simbólicos, sociais, culturais, com uma importância que foi preterida ao longo do tempo na sociedade”, analisa a pesquisadora.
Cultura é democracia
A produção de dados e informações confiáveis sobre o setor cultural no Brasil é um dos principais desafios apontados por Andrea Guimarães, diretora de Desenvolvimento Econômico da Cultura no Ministério da Cultura (MinC).
Esse tema dá o tom da primeira das 15 diretrizes da Política Nacional de Economia Criativa – Brasil Criativo, que, de acordo com o Ministério, tem como objetivo contribuir para o reconhecimento e a consolidação da economia criativa como estratégia de qualificação do desenvolvimento social, econômico, ambiental, político e cultural do Brasil, por ser um “pacto político pela cidadania e democracia, pela diversidade e biodiversidade cultural, pela inclusão e inovação, pela sustentabilidade, pelo bem comum e o bem viver”, como traz trecho de documento oficial.
Andrea reforça que a política, ainda em fase de construção, contou com diversas etapas de pesquisa e escuta da população, sobretudo dos profissionais que atuam no campo da cultura, a fim de entender as principais demandas e dificuldades.
A diretora cita a regulamentação do Sistema Nacional de Cultura, bem como a Política Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB), como instrumentos recentes que ajudarão o MinC a avançar em outro desafio: a chegada nos territórios. “A gente entende que precisamos trabalhar com as redes, com as tecnologias sociais, com as manifestações culturais e com as expressões que estão nesses territórios.” (Leia mais sobre este tema no Papo Reto, na página 17.)
Assim, outra diretriz que compõe a política é a que versa sobre o desenvolvimento de territórios e ecossistemas criativos e seus modelos de governança. Foi criada uma linha específica sobre isso dentro da Lei Rouanet de incentivo fiscal. A ideia, segundo a diretora, é que os projetos proponentes sigam critérios de um território criativo e sejam de médio a longo prazo, e, assim, apoiem a continuação de manifestações culturais do local.
“Ao valorizar a diversidade e as expressões culturais de um povo, isso gera uma sensação de pertencimento e de inclusão, que está intimamente relacionado ao conceito de democracia. Não é por outro motivo que, quando nós vivemos em sociedades autoritárias, existe uma restrição às manifestações das expressões culturais. A cultura empodera mesmo, as pessoas são mais felizes quando podem se expressar culturalmente.”
Fique por dentro
> Agência Solano Trindade: instagram.com/agsolanotrindade/
> Brasil Criativo – Política Nacional de Economia Criativa: bit.ly/RCC_12_29
> Feira Preta: feirapreta.com.br
> Observatório da Economia Criativa (OBEC-BA): obec.ufba.br
> Observatório Itaú Cultural: bit.ly/RCC_12_30
> PIB da economia da cultura e das indústrias criativas: a importância da cultura e da criatividade para o produto interno bruto brasileiro: bit.ly/RCC_12_31
> VOZES30: vozes30.co/