Publicado em
15/06/2023
Reverter a aporofobia, termo referente à aversão aos pobres, só será possível com políticas intersetoriais que garantam direitos como moradia, acesso à educação, saúde, trabalho e renda.
Por Maria Victória Oliveira
O número de crianças nas ruas aumentou significativamente após a extinção de políticas assistencialistas pelo governo federal sob gestão de Michel Temer. Brasília (DF), 2017. Foto: Matheus Alves
Um número alarmante: 211%, essa foi a taxa de crescimento do contingente de pessoas em situação de rua entre 2012 e 2022, totalizando mais de 281 mil indivíduos vivendo sem um teto no país. Somente entre 2019 e 2022, o crescimento foi de 38%, segundo a publicação preliminar Estimativa da População em Situação de Rua no Brasil (2012-2022).
Igualmente elevadas são as notificações de casos de violência contra esse grupo. Desde a retirada de barracas e pertences, passando por campanhas contra esmola, até uso de jatos d’água e instalações da chamada arquitetura hostil – pinos, espetos e pedras pontiagudas em esquinas, praças, embaixo de pontes e viadutos, além de bancos curvos e sem encosto –, as medidas mostram uma verdadeira aversão da sociedade para com pessoas na mais alta situação de vulnerabilidade. Adela Cortina, filósofa espanhola, cunhou o termo aporofobia, que, do grego, dá nome a esse medo e rejeição à pobreza extrema.
Passeata no dia 12 de maio de 2023 durante manifestação em prol da vida e dignidade da população em situação de rua. Foto: Rovena Rosa / Agência Brasil
“[A aporofobia] é um sintoma da meritocracia e da desigualdade, que se repetem em todos os lugares”, explica o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo da Rua, que aponta esse comportamento de afastamento, intolerância e criminalização da pobreza como um fenômeno não só da sociedade brasileira, mas do sistema capitalista e neoliberal.
Na mesma linha, Márcia Gatto, doutora e mestre em Políticas Públicas e Formação Humana e coordenadora da Rede Rio Criança e da Rede Nacional Criança Não é de Rua, afirma que, no sistema capitalista, não há lugar para o que ela chama de “sujeitos indesejáveis”, grupo composto sobretudo por crianças, jovens e adultos em situação de rua e adolescentes cumprindo medidas socioeducativas.
Crime à aporofobia
Em 2020, o deputado Fábio Trad (PSD-MS) apresentou o Projeto de Lei 3135/20, que criminaliza a violência praticada por ódio contra a pobreza. O texto define como crime a aporofobia e classifica como homicídio qualificado matar alguém em razão de sua pobreza. Prevê, ainda, aumento de pena em um terço nos casos de lesão corporal praticada contra pessoa pobre. O projeto está aguardando a designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados.
Interseccionalidades e o peso da pobreza
Integrante da Comissão dos Direitos da População em situação de rua do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Márcia analisa que a questão do recolhimento compulsório de pessoas em situação de rua remonta aos tempos da falsa abolição da escravatura com a Lei Áurea, o que se conecta ao fato de que pessoas sem um teto para morar são, majoritariamente, negras. Além do racismo, trata-se também de uma questão de classe social e uma construção histórica a partir da crença da supremacia racial branca com ideais eurocêntricos, que é importada para o Brasil juntamente a uma ideologia elitista e discriminatória.
São, em resumo, os indesejáveis da sociedade, termo que dá nome ao livro e tese de doutorado de Márcia, Os indesejáveis: Das práticas abusivas e ideologia dominante no enfrentamento aos sujeitos indesejáveis no Rio de Janeiro. “Pessoas negras e pobres, não apenas na condição de rua, mas também em favelas e comunidades empobrecidas, são vítimas da aporofobia, violência e discriminação. Muitos têm verdadeiro ódio, um misto de medo e raiva dessas pessoas, que tem a ver com um pensamento discriminatório que acredita que os negros são inferiores. Antigamente, no viés da religiosidade, era considerado que negros não tinham alma. Eram vendidos como animais, com uma importância apenas de mão de obra. É um subalterno, aquele que trabalha para mim. Ou seja, não devem circular onde eu circulo, não os quero nas minhas praias e avenidas. Daí a necessidade de recolher, encarcerar e, muitas vezes, matar”, aponta.
Padre Júlio também comenta que as interseccionalidades contribuem para o aprofundamento da discriminação e aponta a pobreza como agravante de todos os preconceitos. Ou seja, a discriminação contra mulheres, por exemplo, será ainda maior no caso das negras, em situação de pobreza ou de rua. “Segundo o próprio conceito da filósofa Adela Cortina, o rechaço ao pobre acontece quando a pessoa não pode contribuir. Africanos são muito bem-vindos na Espanha, desde que tenham dinheiro, mas não se forem refugiados e imigrantes. Nos Estados Unidos, o mesmo acontece com imigrantes latino-americanos. Na Europa, o Papa Francisco chegou a dizer que o Mar Mediterrâneo é um cemitério aquático, pois milhares morrem em botes sem socorro. Esse sintoma está presente e se repete na sociedade brasileira também com relação aos povos indígenas e quilombolas”, exemplifica.
Na luta: o Movimento Nacional da População de Rua
“Podem tentar calar a minha voz, mas não vão conseguir calar meu pensamento. Não posso ser plateia desta sociedade doente. Tenho que continuar sendo autor e protagonista da minha própria história.” A fala é de Rafael Machado, que conhece de perto a situação de pessoas que vivem nas ruas, já que ele mesmo passou 14 anos sem um teto. Hoje, é coordenador nacional do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR) em Alagoas. Criado em 2005 e organizado em 19 estados, o MNPR luta por moradia digna, acesso a emprego e renda, saúde, educação, esporte e lazer e seguridade social, também ocupa espaços importantes de decisão, como o Conselho Nacional de Saúde, de Direitos Humanos e de Assistência Social.
Vanilson Torres, representante e coordenador nacional do MNPR no Rio Grande do Norte, que, durante 27 anos, viveu nas ruas, comenta que, se para alguns a rua é lugar para circular, para outros é um espaço de sobrevivência, e recita: “É o lugar que nos restou, que nos ‘acolheu’ mesmo sem haver acolhimento. A rua que grita e não é ouvida, que é silenciada, esquecida pelas gestões.
“Pessoas apressadas e desavisadas passam por nós, nos veem mas não nos enxergam, e, quando enxergam, é pelo olhar do preconceito e da criminalização”
Para Vanilson, é importante refletir porque a maioria da população em situação de rua é negra. “Não é por acaso, são resquícios da escravização, já que os escravizados foram para as ruas.”
Esforço intersetorial
Combater a aporofobia conecta-se ao enfrentamento das inúmeras e profundas desigualdades que marcam a sociedade brasileira, o que se torna uma missão ainda mais desafiadora sobretudo depois de quatro anos de uma gestão federal representada por um governante que, em seus atos, falas e posturas, legitimou, por diversas vezes, a violência e o desprezo por mulheres, negros, população LGBTQIA+, pobres e outros grupos. Para Padre Júlio, reverter o cenário de aporofobia demanda mudanças econômicas e de prioridade, já que, em São Paulo, por exemplo, as decisões são tomadas não a partir das necessidades do povo, mas considerando a especulação imobiliária.
Apesar de o artigo 6º da Constituição Federal brasileira elencar que moradia é um dos direitos sociais que deveriam ser assegurados a todos, Márcia aponta a falta de interesse no alto investimento necessário para produzir efeitos positivos na pauta e ressalta a importância de esforços intersetoriais. “Não basta falarmos ‘mora aí’. A moradia tem que vir junto com políticas de assistência, profissionalização, emprego, saúde e educação. Senão, ficamos em um trabalho assistencialista, que é necessário, mas também precisamos promover a vida desses sujeitos.”
Além da necessidade de respeitar o arcabouço legal já existente para combater a pobreza, como afirma Márcia, Rafael aponta a expansão e a melhoria da qualidade de serviços de públicos de atendimento, como os Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP) e abrigos, que devem promover a dignidade do ser humano e respeitar a individualidade de cada um, além de serem encarados como medidas provisórias e não permanentes, visando dar condições para as pessoas se restabelecerem.
Direitos universais que não são para todos(as)?
A universalização dos direitos no Brasil, principalmente dos direitos sociais, é garantida na Constituição de 1988, que prevê o acesso a educação, alimentação saudável e adequada, saúde, moradia digna, trabalho, entre outros. A Constituição aponta isso tudo também como um dever do Estado, que deve organizar políticas públicas para atender a esses direitos.
Mas o documento foi elaborado no momento de redemocratização do Brasil, que ia na contramão do panorama mundial naquele período: o neoliberalismo avançava com a ideologia de que o Estado deveria deixar o mercado livre e atender apenas o básico para as demandas sociais, com investimento mínimo, focando em políticas sociais de emergência e de combate à pobreza. Dessa forma, tudo o que se planejou sobre universalização dos direitos na Constituição brasileira fica prejudicado e perde força com a tendência neoliberal que se alastrou mundialmente a partir de então.
Quem apresenta esse contexto para justificar a contradição atual existente no Brasil, cuja Constituição garante a universalização dos direitos, mas que não consegue efetivar isso na prática, é Rosangela Pezoti, coordenadora técnica do Sefras – Ação Social Franciscana. “Outro fator também muito importante nesse processo é que, logo depois da Constituição, deveriam sair as leis complementares de implantação dessas políticas, mas com os governos que vieram, comprometidos com a política do Fundo Internacional Monetário e, também, com a ideologia neoliberal, foi se perdendo o fôlego para essas conquistas, assim como o orçamento para efetivá-las”, explica. Dessa forma, o Brasil nunca conseguiu avançar em termos de universalização de direitos, tal qual foi sonhado na construção da Constituição de 1988.
Rosangela aponta a volta do Brasil ao Mapa da Fome como um exemplo desse processo e reflete sobre outro desafio: a burocratização dos processos necessários para acessar direitos sociais. “Com o empobrecimento da população, vem também um aumento de demandas por políticas sociais e, se o orçamento é pequeno, se deixa de atender muitas delas. E aí a tendência é que surjam cada vez mais critérios para acessar direitos básicos. Na prática, para dar acesso a uma política, o Estado cria um monte de critérios, muitas vezes, excludentes”, afirma.
“Para acessar uma política pública, às vezes, é tão difícil, que a pessoa desiste no meio do caminho. Por exemplo, na assistência social, para acessar qualquer benefício, é necessário preencher o Cadastro Único e, para tal, é preciso agendar e ir a um posto de atendimento. E, na prática, esse agendamento é a perder de vista, assim como a experiência de usuários do SUS.”
A oferta pequena para uma demanda grande gera um sistema de exclusão e imposição de obstáculos por meio de critérios que “peneiram” aqueles que irão acessar os programas de assistência social. Esse cenário faz com que as políticas existentes sejam “massificadas”, desprezando as singularidades dos grupos atendidos e os serviços são ofertados em larga escala, com formato único, e a diversidade dos grupos se perde no meio do caminho.
“A universalização dos direitos não significa que todo mundo é igual, mas que as políticas sociais devem promover a equidade e a redução das desigualdades, ou seja, que as pessoas precisam receber aquilo que, de fato, precisam”, explica Rosangela.
Editorial da 5ª edição da Revista Casa Comum.
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