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Publicado em

30/10/2024

Literatura e resistência: os desafios da luta pelo direito à leitura no Brasil

Reportagem ouviu diferentes profissionais que defendem o livro como um direito fundamental para a criação de uma sociedade crítica e humana.

Por Isadora Morena

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Criança folheia livro n’A Feira do Livro na Praça Charles Miller, no Pacaembu. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

“Quando Alice tinha 12 anos, a Biblioteca Popular do Coque [na cidade de Recife, Pernambuco], era o seu ‘País das Maravilhas’. Frequentadora assídua, adorava ler livros literários para viajar para outros mundos e universos e conhecer seres fantásticos. O seu livro predileto era ‘Ou isto, ou aquilo’, de Cecília Meireles, um clássico da literatura brasileira infanto-juvenil. Ficava encantada com a poética, a brincadeira com as palavras, a sonoridade, o ritmo, as rimas e a musicalidade que o livro apresentava. Ela gostava tanto, tanto, tanto desse livro que todos os dias, ao ir à biblioteca, rasgava uma página para ficar lendo em casa. Fez isso durante muitos dias, até restar apenas a capa do livro. 

Maria Betânia, a mediadora de leitura da biblioteca, encontrou a capa nas prateleiras e um menino disse que havia visto Alice rasgar as páginas do livro. Betânia sabia onde a menina morava e foi até lá. Ao vê-la chegar com a capa do livro na mão, Alice foi logo se desculpando, pensando na bronca que poderia levar. Mas Betânia sorriu, pediu calma e entregou a capa do livro. Falou que poderia juntar as páginas e aquele seu livro predileto ficaria com ela para ler quando quisesse. 

Atualmente, Alice é adulta, não rasga mais páginas dos livros que gosta, mas continua frequentando o espaço para ouvir e ler histórias e viajar com a literatura. A Biblioteca Popular do Coque segue sendo seu ‘País das Maravilhas'”.

Essa história inspiradora é contada por Tarcísio Camêlo, comunicador da Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias – RNBC, que afirma que “a literatura estimula a imaginação, o delírio, o sonho possível do mundo mais justo e humano”.

Para o integrante da Rede, a literatura promove a criticidade, a alteridade e a empatia, e, com isso, torna-se indispensável à humanização. Ele reflete: “imagina os livros garantidos como direito humano nas mãos dos trabalhadores e trabalhadoras e o quanto isso pode ser transformador?”.

O sonho de Tarcísio – e de tantas outras pessoas – de ver o Brasil leitor esbarra na ausência de políticas públicas robustas e de financiamento para o setor. 

O pesquisador e bibliotecário Ricardo Queiroz Pinheiro, que há mais de três décadas se dedica à democratização do acesso ao livro e à leitura no país, resgata a história das bibliotecas no Brasil, afirmando que, desde a colonização, elas eram destinadas a poucos. No início, apenas aos jesuítas. Depois, aos membros da Coroa portuguesa e aos senhores de engenho e seus filhos.

Na maior parte da história do país, as bibliotecas eram espaços fechados e “pertencentes às pessoas da elite, aos letrados”, como conta Ricardo. Apenas no Estado Novo, nos anos 30, é que o Brasil passa a ter uma política voltada à cultura e, assim, às bibliotecas, à leitura e ao livro. As medidas, entretanto, ainda se mostram incipientes em um país marcado pelo analfabetismo.

De acordo com o bibliotecário, é somente no governo de Fernando Henrique Cardoso, por meio da incidência política da sociedade civil organizada, que têm início avanços significativos na política de leitura com a criação, em 1992, do Programa Nacional de Incentivo à Leitura, o PROLER. Mas ainda há a marca da ausência do Estado.

Já em 2006, no governo Lula, foi instituído o Plano Nacional do Livro e Leitura – PNLL. O documento, resultado de muitos anos de articulações, afirma em seu texto ter por “finalidade básica assegurar a democratização do acesso ao livro, o fomento e a valorização da leitura e o fortalecimento da cadeia produtiva do livro como fator relevante para o incremento da produção intelectual e o desenvolvimento da economia nacional”.

Desde então, a luta da sociedade civil tem sido para sua efetivação e aplicação nos estados e municípios.

Segundo a educadora Janine Durand, que atua há 15 anos como mediadora de leitura e formadora de clubes de leitura, o PNLL é um marco regulatório, algo essencial que respalda a atuação nos territórios na defesa do direito à literatura e das instituições públicas que garantem a democratização da arte e da cultura. 

“A aprovação do plano e ter pessoas que estão em conselhos, que estão lá na luta para que isso realmente se aplique e se consolide, é fundamental”, afirma Janine.

A criação do PNLL completa 18 anos em 2024, mas são poucos os estados e municípios que têm seus próprios planos elaborados e muito menos efetivados. 

Foto: Arquivo pessoal Tarcísio Camêlo.

Sobre a dificuldade para a implementação destas políticas, Janine defende que “não é um descaso do Estado, mas é justamente um projeto de Estado não possibilitar que trabalhadores ou que pessoas que não estariam normalmente ligadas à arte ou à cultura estejam lendo, porque, como dizia Paulo Freire, as pessoas vão começar a perguntar o porquê”, reflete a educadora. 

E completa: “Elas vão começar a se identificar com os personagens, a refletir sobre a sua própria vida, seu entorno, sobre o mundo que se vive. E, a partir do momento que alguém passa a ter um pensamento crítico, isso é ruim para o sistema que está estabelecido”.

Na defesa da leitura para todas as pessoas, as bibliotecas – sejam públicas, comunitárias, escolares ou universitárias – são essenciais. Para Ricardo Queiroz Pinheiro, é importante que não haja distinção na hora de criar e implementar políticas.

27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo no Anhembi. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil

Ele define que a biblioteca é um espaço de convivência e referência, em um mundo “onde tudo é privatizado”. E questiona: “Qual é a maior referência da cidade em termos de pontos de encontro? São shopping centers e espaços de consumo. A biblioteca pública seria um contraponto a esses locais privados”.

Para ele, é preciso superar as barreiras simbólicas. “Tem pessoas que não entram em bibliotecas públicas porque acham, de maneira errônea, que aquele espaço não é para elas e é só para leitores”.

Para Ricardo, trata-se de um espaço democrático, “ onde as pessoas podem entrar sem pedir licença” para ler, mas também para “poder respirar, ter um espaço de descanso na cabeça e na vida, para ter um mínimo de silêncio e para se proteger em um mundo que pode ser hostil com elas”.

Foto: Arquivo pessoal Tarcísio Camêlo.

O pesquisador e bibliotecário defende a criação de uma política nacional de mediação de leitura, o que para ele seria o “instrumento mais importante para a formação de leitores”.

A mediação de leitura que colore e traz vida às bibliotecas é um marcador muito relevante nas de base comunitária. De acordo com Tarcísio Camêlo, “a biblioteca comunitária vai além de um local para empréstimo de livros, se tornando também um espaço de memória, cultura, educação, leitura literária, construção crítica, convivência e lazer”.

“As bibliotecas comunitárias realizam ações de enraizamento territorial e mediações culturais a partir dos interesses da própria comunidade, contribuindo não só para a formação de leitores, mas para o fortalecimento dos vínculos entre as pessoas da comunidade”, enfatiza Tarcisio. 

Outras iniciativas de mediação de leitura mostram a força incontrolável e o poder transformador da literatura. É o caso do Programa Remição em Rede, idealizado e co-articulado por Janine Durand.

A iniciativa consiste em formar clubes de leitura em penitenciárias. No momento, o projeto acontece no presídio masculino de Tremembé, no estado de São Paulo, atendendo pessoas que estão em regime fechado e semi-aberto.

“O projeto surge desse lugar de olhar uma das realidades mais duras que é a privação de liberdade e encarceramento, um espaço que pouca gente para pra pensar que existe e, muitas vezes, replica uma lógica de punitivismo”, relata Janine. 

A iniciativa envolve a implantação de rodas de conversa sobre as obras lidas, elaboração de resenha por parte dos leitores e formação de mediadores e pareceristas, o que Janine enxerga como “construção de autonomia” e também uma “redução de danos”. 

“Para além de todo o contexto do encarceramento e quem está preso, estamos falando de fechamentos de bibliotecas, mas ninguém pensa em fechar presídios. Pelo contrário. Se pensa em construir mais presídios. A nossa atuação dentro do sistema carcerário é pensando em reduzir danos e garantir o direito à literatura e o direito ao encontro por meio dos clubes de leitura”, afirma Janine.

Leitura e remição de pena 

A mediadora já fazia esse trabalho de fomento a clubes de leitura em penitenciárias, quando veio a orientação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2022, para redução de pena com a comprovação de leitura de livros no cárcere. 

De acordo com o CNJ, “para cada obra lida corresponderá a remição de 4 (quatro) dias, considerado, a cada período de 12 (doze) meses, o limite de até 12 (doze) obras efetivamente lidas e avaliadas e a possibilidade de remir até 48 (quarenta e oito) dias de pena”.

Além de garantidor de direitos, o Programa Remição em Rede é um espaço em que as pessoas se tornam leitores rapidamente, de acordo com Janine. “As pessoas gostam de beleza. Então mesmo aquele leitor que não tem um Ensino Médio completo ou que nunca teve acesso a livros de literatura, passa a ler porque a prática leitora é coletiva. Nesse incentivo coletivo, nessa voz que circula todo mês a partir de uma curadoria cuidadosa, as pessoas vão se apaixonando por essa trilha e passam a ler outros livros”.

Para Janine, o Remição em Rede “é um projeto de esperança”. Ela defende que a educação e a cultura são o caminho possível para que todos repensem a própria vida e possam olhar o mundo de forma crítica. 

Um dos resultados tangíveis do projeto é o desempenho de um dos participantes da iniciativa em uma prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2023, com 940 pontos. Outros leitores alcançaram a marca de 900 pontos. 

Janine traz outros relatos inspiradores. Pessoas do regime semiaberto, por exemplo, quando saem dos presídios, fazem um café literário virtual. “Ao contrário do que as pessoas dizem, que quem é liberado na ‘saidinha’ vai aprontar, os nossos meninos fazem sarau. Nós falamos ‘nossos meninos’ com carinho, porque eles fazem parte desse clube. Já aconteceu, por exemplo, da irmã de um deles ir visitá-lo, ver um cartaz do clube de leitura, perguntar para ele o que é, e aí ela começa a fazer clube com as amigas”, conta. 

Janine também conta que o Remição em Rede plantou outras sementes em quem entrou em contato com o projeto. A educadora enumera: um pai que lê para o filho quando vai visitá-lo na penitenciária e sugere que faça o clube no bairro periférico em que eles moram e o menino que começa a indicar os livros lidos no clube para a família toda. “Ele saiu da prisão recentemente, e a mãe, a irmã, todo mundo me mandou mensagem no Instagram dizendo o quanto o clube fez diferença na vida dele e da família”, conta a educadora.

A mediadora celebra que o projeto tem conseguido mostrar outras possibilidades para pessoas privadas de liberdade. Tudo isso a partir da literatura.

“Quando você implementa uma cultura leitora e possibilita uma experiência que diz que a literatura também é para pessoas que estão encarceradas, elas passam a sonhar de outra forma e compartilhar isso com pessoas que amam, porque percebem o impacto que causa nelas. Então acaba sendo um círculo virtuoso, que quebra, de alguma forma, uma parte desse círculo vicioso“, afirma Janine.

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