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17/05/2022

Resistir e esperançar: o desafio por direitos no Brasil de 2022

Enfrentar ameaças à democracia e à sobrevivência dos povos requer unidade na diversidade
Por Daniel Giovanaz

Foto: Andressa Zumpano

Um dos mais influentes pensadores brasileiros, Paulo Freire, dizia que era preciso ter esperança do verbo esperançar, e não do verbo esperar. Preso e exilado pela ditadura militar (1964-1985), o educador sentiu na pele os efeitos do autoritarismo e aprendeu que a realidade só se transforma com consciência política e unidade na ação.

Quinze anos após o falecimento do autor de Pedagogia do oprimido, o Brasil, que é um país historicamente marcado pelas desigualdades e por violações de direitos, vive hoje um momento ainda mais grave, com retrocessos sociais e ambientais, estando de volta, inclusive, aos patamares do Mapa da Fome das Nações Unidas.

>> Ouça um resumo da matéria:

Fome no Brasil

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116 milhões de brasileiros não tinham acesso permanente a alimentos, e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome em dezembro de 2020.

Fonte: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

A fome é mais recorrente em domicílios chefiados por pessoas pretas (66,8%) e por mulheres (73,8%); que têm crianças de até quatro anos (70,6%); e renda per capita mensal inferior a R$ 500 (71,4%).

Fonte: Freie Universität Berlin, em parceria com a Universidade de Brasília (UnB) e a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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A pandemia de Covid-19, ao escancarar as desigualdades, aprofundou o desafio de quem está na linha de frente da luta por um país mais justo e igualitário, resistindo à barbárie e conjugando o verbo esperançar todos os dias.

“Hoje, a esperança está no grito. Temos que lutar por um bem viver, contra o individualismo, contra uma sociedade massificada apenas pelo consumo – porque isso é a própria morte. Esperançar também é valorizar pequenas ações que permitam ao povo buscar uma vida digna.”

Antônio Eduardo Oliveira, secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)

Degradação ambiental, abuso de poder econômico, ampliação do desemprego, violência contra negros, mulheres, indígenas e população LGBTQIA+. Embora as estatísticas mostrem que o cenário se agravou nos últimos anos, nenhum desses desafios é novo.

Desde a chegada dos europeus, os indígenas foram vítimas de um processo injusto de exploração. Tivemos guerra, escravização, mas não podemos usar isso para nos acomodar. Não podemos dizer ‘isso já aconteceu antes, então é normal’”, exemplifica Oliveira.

“Os povos indígenas têm um acúmulo de lutas, passado de pai para filho, de avô para neto. Eles sabem que toda uma geração foi impactada por essas violências, mas não desanimam: continuam exigindo justiça e valorizam a alegria de estarem vivos, lutando.

Olhares sobre o cenário

Antropóloga e cientista política, Iara Pietricovsky, viveu os anos de ditadura e participou ativamente da Assembleia Nacional Constituinte, no final dos anos 1980. Entre as conquistas da redemocratização, estava a garantia de espaços de participação social na formulação e acompanhamento de políticas públicas.

Cerca de 75% dos conselhos de direitos (saúde, educação, assistência social etc.) e comitês nacionais, implementados naquela época, foram extintos ou esvaziados a partir de 2019.

“Antes do atual governo, nós, dos movimentos sociais e da sociedade civil organizada, falávamos em uma radicalização democrática, em que as estruturas do poder tradicional e do sistema republicano precisavam ser revistas”, lembra Pietricovsky. “Hoje, mesmo a democracia liberal, com todas as suas contradições, está em risco”, constata a pesquisadora, que coordena o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e é codiretora da Associação Brasileira de Organizações em Defesa dos Direitos e Bens Comuns (Abong).

O Decreto nº 9.759/2019, que extinguiu os conselhos nacionais, abriu caminho para o desmantelamento de várias áreas: da soberania alimentar às políticas de inclusão e valorização da diversidade.

A lista de retrocessos é extensa: paralisação da reforma agrária, das demarcações de terras indígenas e da regularização de territórios quilombolas; desmonte das estruturas de fiscalização ambiental; liberação recorde de agrotóxicos; facilitação do acesso a armas e munições; redução de investimentos em saúde, educação, tecnologia e energias renováveis.

Os cortes em políticas sociais vêm ocorrendo e têm relação direta com as ameaças aos direitos humanos.

“Existe uma máxima que diz: você só terá direitos se eles estiverem no orçamento”, afirma Darci Frigo, presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH). “Por isso, derrubar o Teto de Gastos deve ser uma agenda central no campo dos direitos humanos”, acrescenta, em referência à Emenda Constitucional (EC) nº 95, de 2016, que congelou por 20 anos o investimento público em áreas como saúde e educação.

Criminalização dos movimentos sociais

Foto: Agência Brasil

Buscar a garantia dos direitos pressupõe coragem e resiliência. Esses valores, cultivados há décadas por movimentos e organizações sociais no Brasil, se tornam ainda mais necessários em uma conjuntura de intolerância e violência.

É algo que estamos sofrendo muito”, afirma Sandra Braga, moradora do quilombo Mesquita, em Goiás, e coordenadora executiva da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq) na região Centro-Oeste.

Os quilombos são nosso santuário sagrado de preservação. Se estamos aqui, é porque alguém cuidou antes de nós. É esse saber ancestral que nos faz fortes para resistir e cuidar dos nossos territórios. Por esse cuidado, somos ameaçados e vítimas de violências. O governo tenta nos silenciar e tirar esse direito.

Dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT) mostram que, entre janeiro e novembro de 2021, houve 26 assassinatos em conflitos no campo, um aumento de 30% em relação a todo o ano anterior, quando foram registrados 20 assassinatos.

O número de agricultores sem-terra assassinados passou de dois, em 2020, para seis, em 2021. Ainda segundo a CPT, as mortes em consequência desses conflitos cresceram 1.044%, de 9 para 103. Destas, 101 foram de indígenas yanomami.

São forças que têm atuado tanto no Executivo quanto no Legislativo para facilitar o acesso aos recursos naturais em benefício de atividades econômicas, legais e ilegais, que não dialogam com a proteção do meio ambiente”, analisa Mariana Mota, coordenadora de políticas públicas do Greenpeace Brasil.

O desinvestimento na proteção ambiental tem reflexos evidentes. A Amazônia, por exemplo, no último ano, teve um aumento de mais de 21% nas taxas de desmatamento. Nos últimos três anos, houve aumento de 52%”.

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O desmatamento no cerrado aumentou 7,9% entre agosto de 2020 e julho de 2021, alcançando a marca de 8.531 km². A cifra é a maior em 5 anos. Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência, a devastação do bioma aumentou 17%.

Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Em 2021, foram devastados 507 km² de mata nativa dentro de unidades de conservação, 10% a mais do que no ano anterior.
Fonte: Imazon.
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O Brasil já vive as consequências da degradação ambiental. Não à toa, os primeiros meses de 2022 foram marcados por enchentes avassaladoras, que mataram centenas e deixaram milhares sem casa na Bahia, em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Inevitavelmente, esses danos se concentram nas populações mais vulneráveis, mais pobres”, observa Mota. “É importante que o poder público invista na preservação das nossas florestas, mas também trabalhe para adaptar as cidades aos efeitos das mudanças climáticas, destinando recursos, criando planos de adaptação adequados e estrutura para enfrentar eventos extremos, cada vez mais frequentes no Brasil.”

Ameaça constante

Chico Mendes, Dorothy Stang, Marielle Franco. Não faltam exemplos de mobiizadores sociais assassinados por defender a floresta, populações em situação de vulnerabilidade, ou simplesmente por não se dobrarem a pressões de poderes políticos e econômicos.

Isso vem da tradição do Estado brasileiro, que é autoritário, repressor, racista. Houve alguns momentos de respiro, mas quase sempre foram seguidos de golpes, de respostas violentas. O Brasil nunca teve um momento de glória, no qual os movimentos foram bem recebidos. A gente sempre teve que lutar a ferro e fogo por nossa liberdade e presença na composição das políticas, no debate do orçamento público”, lembra Iara Pietricovsky, do Inesc.

A Câmara dos Deputados pode votar ainda em 2022 uma proposta que deve agravar a criminalização do ativismo social no Brasil: o Projeto de Lei (PL) n° 1595/2019.

Esse projeto quer enquadrar nossa livre expressão de contrariedade como ato terrorista. É algo absurdo, mas que infelizmente está sendo feito em outros países do mundo, como Hungria e Espanha”, analisa Pietricovsky.

“O Brasil nunca teve um momento de glória, no qual os movimentos foram bem recebidos. A gente sempre teve que lutar a ferro e fogo por nossa liberdade e presença na composição das políticas, no debate do orçamento público.”

Iara Pietricovsky, coordenadora do Inesc.

Para Darci Frigo, esse PL configura a mais grave ameaça aos direitos humanos em tramitação no Legislativo, com consequências diretas sobre o ambiente democrático.

As forças contrárias à democracia não estão satisfeitas com tudo que conseguiram em termos de liberação de armamento, uso da força contra as periferias e movimentos sociais, entre outras violências. Querer impedir o direito de organização, criminalizando a luta por direitos, é um bloqueio à ação política”, critica.

Se a lei for aprovada, quem fechar uma estrada durante um protesto poderá ser tratado como terrorista – basta haver um delegado ou um promotor punitivista. Até conseguir derrubar uma medida como essa, uma pessoa inocente pode passar meses na cadeia”, alerta o presidente do CNDH.

De olho na boiada

Mariana Mota, do Greenpeace Brasil, comenta algumas das principais ameaças aos direitos socioambientais que aguardam análise do Senado:

– PLs da Grilagem (2633/2020 e 510/2021): “Ambos visam facilitar a titulação de terras para quem tomou posse. É tudo direcionado para grandes e médias propriedades, com uma série de instrumentos que validam aquela posse. O título simplesmente passa a quem tem poder e dinheiro, sem justiça social e sem planejamento e ordenamento territorial. Os projetos preveem, inclusive, instrumentos de autodeclaração de posse, preços muito abaixo do mercado, e todas as facilidades para privatizar as terras públicas do país.”

– PL do Licenciamento Ambiental (2159/2021): “Propõe mudar as regras de licenciamento para que obras e empreendimentos tenham facilidade na obtenção de licença. É, basicamente, o fim do licenciamento ambiental no Brasil, porque inviabiliza a correta verificação e análise de obras e seus impactos, comprometendo a proteção do meio ambiente e das populações diante de empreendimentos potencialmente danosos.”

– PL do Veneno (6299/2002): “É uma demanda antiga do agronegócio, que se dedicou muito a atos infralegais que permitiram um recorde na liberação de agrotóxicos nos últimos anos. Porém, não satisfeito com as facilidades oferecidas hoje, esse setor quer mudar a lei, para que essas fragilidades se perpetuem mesmo após o atual governo. Eles querem tirar do Ibama [Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis] e da Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] a atribuição de analisar os agrotóxicos, mantendo essa avaliação apenas no Ministério da Agricultura – onde evidentemente há interesses econômicos.”

Antônio Eduardo Oliveira, secretário executivo do Cimi, chama a atenção para tentativas da base aliada do governo de mudar os artigos 231 e 232 da Constituição. São precisamente os trechos que reconhecem os direitos dos povos indígenas, suas línguas, costumes e tradições – e responsabilizam a União pela proteção dos territórios.

Em janeiro de 2020, o governo apresentou o PL 191, que permitiria a exploração de recursos minerais e hídricos nos territórios indígenas por meio da iniciativa privada. Em seguida, veio à tona o PL 490, para mudar o atual Estatuto do Índio e os procedimentos demarcatórios, concebendo um “marco temporal” para futuras demarcações de terras indígenas no Brasil.

Flores no asfalto

A luta indígena contra o marco temporal foi um dos exemplos mais importantes de resistência ativa durante a pandemia. Segundo essa tese, em julgamento no STF, só podem reivindicar direito sobre determinado território os povos que já estivessem ocupando aquela área em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição.

Os povos indígenas, por outro lado, reivindicam que esse é um direito originário. Quando os europeus chegaram, eles já estavam nesses territórios”, ressalta Oliveira.

Povo Xukuru no Acampamento Luta Pela Vida. Foto: Andressa Zumpano

A aprovação do marco temporal significaria a perda de metade dos territórios que os povos indígenas estão ocupando hoje. Cerca de 500 territórios no Brasil serão prejudicados”, estima.Entre junho e agosto de 2021, foram reunidas mais de 160 mil assinaturas contra o marco temporal. Povos indígenas de várias partes do país acamparam em Brasília e expressaram sua posição durante o julgamento no Supremo, em 2021.

Os indígenas colocaram sua vida em risco em meio à pandemia e se mobilizaram, garantindo ao STF: ‘Vocês podem julgar, que a gente está aqui para dar o apoio. Somos contra o marco temporal e contra esse governo’. Foi uma mobilização extremamente positiva”, enaltece o secretário executivo do Cimi.

O julgamento foi interrompido com o placar de 1 a 1, e deve ser retomado em 23 de junho. As organizações indígenas e indigenistas confirmaram que estarão novamente em Brasília para manifestar sua contrariedade à tese – em oposição aos posicionamentos do governo atual e da bancada ruralista.

Além de estimular o debate público sobre essa pauta, a sociedade civil teve outras conquistas relevantes durante a pandemia. Foi somente graças à pressão das organizações e movimentos sociais, por exemplo, que o governo forneceu auxílio emergencial nos valores de R$ 600 e R$ 1,2 mil mensais em 2020.

Conforme dados da Freie Universität Berlin, na Alemanha, 125,6 milhões de brasileiros sofreram com insegurança alimentar naquele ano, o equivalente a 59,3% da população. “Na época, deram a entender que [o auxílio emergencial] era uma vitória apenas dos partidos de oposição, em Brasília, mas essa foi uma demanda e uma conquista nossa, da sociedade civil”, enfatiza Iara Pietricovsky, coordenadora do Inesc.

Desde que a crise sanitária começou, trabalhadores sem-terra, acampados e assentados da reforma agrária, protagonizaram – junto a movimentos e organizações sociais de periferia urbana – uma das maiores campanhas de doação de alimentos saudáveis da história do país.

A pandemia também evidenciou a importância de experiências existentes no país há três décadas: as economias transformadoras. São iniciativas coletivistas de produção, comércio e consumo, pautadas por princípios igualitários e democráticos, no campo e na cidade. Em alguns casos, são utilizadas até moedas próprias.

Entre 1999 e 2013, o número de brasileiros que trabalham em projetos dessa natureza saltou de 100 mil para 1,5 milhão, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com predominância na região Nordeste. Embora não haja dados atualizados durante a pandemia, essas atividades de autogestão adquiriram maior visibilidade nos últimos dois anos, como resposta ao aumento da inflação e do desemprego.

A mobilização de moradores de periferias contra os efeitos do coronavírus também fez a diferença. A organização Mães da Favela, ligada à Central Única das Favelas (Cufa), criou um “vale-mãe” de R$ 120 para complementar a renda de mulheres com filhos que vivem em comunidades pelo Brasil. A União de Núcleos de Educação Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora (Uneafro) lançou uma linha de arrecadação para apoiar financeiramente famílias negras e periféricas, além de professores e estudantes de cursinhos comunitários.

Iniciativas como essas, somadas à atuação de organizações não governamentais consolidadas há décadas no país, como a Ação da Cidadania, garantiram a sobrevivência de milhões de famílias.

A fome voltou ao centro da agenda política – não do governo, mas da sociedade e dos movimentos que conseguiram transformar o direito à alimentação em um direito constitucionalmente assegurado”, observa Darci Frigo. “O movimento pró-vacina, generalizado na sociedade brasileira, também foi vitorioso contra as forças da extrema direita e do negacionismo. O Sistema Único de Saúde (SUS) e o movimento de saúde no Brasil passaram a ser um sujeito político fundamental para manter a democracia”, acrescenta.

O presidente do CNDH interpreta que a guinada do Executivo à direita, somada a um contexto de crise sanitária, mudou a perspectiva de atuação do Judiciário. “O STF, principalmente, passou a ter uma posição mais ao centro da agenda política. Isso permitiu que fossem atendidas algumas reivindicações de indígenas, quilombolas, e contra os despejos na pandemia. Foram várias decisões na linha de garantir direitos e exigir ações do governo”, reconhece.

Além de determinar a vacinação prioritária a quilombolas, o STF declarou constitucional, em 2018, o Decreto n° 4.887/2003, considerado um avanço no reconhecimento do direito à terra dessas populações. Ambas as conquistas foram resultado de mobilizações da Conaq e do conjunto do movimento negro.

São marcos importantes de uma organização que não se cala e está o tempo todo de prontidão. Somos um batalhão que fica a postos 24 horas, atento a tudo”, valoriza Sandra Braga, coordenadora da Conaq.

Sandra Braga, coordenadora da CONAQ. Acervo pessoal

Articulação e ação

Excluídos do debate e da formulação de políticas públicas no Brasil, indígenas tiveram participação destacada na última Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 26), em novembro de 2021, na Escócia. A Conaq participou do evento pela primeira vez, com quatro representantes.

O investimento em articulações internacionais é uma resposta ao fechamento dos canais de diálogo oficiais dentro do país, como a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Fundação Cultural Palmares. Estratégias semelhantes vêm sendo adotadas pela Coalizão Negra por Direitos, por ONGs ambientalistas e movimentos feministas e LGBTQIA+, garantindo maior visibilidade à luta contra o racismo, a homofobia e a transfobia.

Isso não significa que, no Brasil, as mobilizações não sejam necessárias ou não surtam efeitos.

Vários atores da sociedade civil estão amplamente engajados. A gente vê muito esforço da opinião pública, de comunicadores na imprensa, nas redes sociais, alertando e denunciando a agenda de destruição ambiental”, analisa Mariana Mota, integrante do Greenpeace Brasil. “É muito importante que a sociedade apoie esses movimentos e as populações indígenas. Hoje, alguns dos projetos mais graves estão na mesa do Rodrigo Pacheco [PSD-MG], presidente do Senado, que pode barrar essas medidas. Então, é necessário que ele seja cobrado, alertado, e que todos façam valer a sua voz neste momento.”

Darci Frigo, do CNDH, concorda que não há avanço possível sem a contribuição da sociedade civil. “Precisamos voltar à rua, defender a democracia, defender os direitos humanos. As pessoas precisam estar antenadas: é importante agir como indivíduos, mas também buscar a organização em movimentos sociais, e mesmo na política partidária”, enfatiza, lembrando a importância do processo das eleições e, neste ano, o desafio colocado.

“Onde quer que estejam, todos devem ser sujeitos da mobilização social, devem fiscalizar a administração pública. No bairro, no espaço de trabalho, é muito importante se organizar e conhecer seus direitos, para defendê-los coletivamente”

Darci Frigo, presidente do CNDH.

Questionados pela Revista Casa Comum sobre os caminhos para enfrentar o contexto histórico de violação de direitos, todos os entrevistados e entrevistadas mencionaram a importância da unidade e articulação dos grupos.

Os povos indígenas, que são apenas 0,5% da população brasileira, não vão conseguir todas as vitórias que almejam. Por isso, não podem ser contra os sem-terras, os quilombolas, os ribeirinhos, a população da periferia das cidades, a população negra, que é alvo de genocídio: têm que se unir”, resume Antônio Eduardo Oliveira, do Cimi.

Essa é uma necessidade cada vez mais imperativa. Temos que dialogar mais, conversar e nos articular com todos os grupos e indivíduos que estão em luta por uma sociedade justa, fraterna e igualitária”.

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“A luta de classes não resolveu os problemas do racismo, da homofobia, que constituem a desigualdade no Brasil, por exemplo. Hoje temos muito mais consciência disso do que nos anos 1980. A gente está muito mais sintonizado, identifica melhor o que nos distingue, mas sabe que há coisas em comum e pelas quais precisamos lutar.”
– Iara Pietricovsky, coordenadora do Inesc.

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Mulher quilombola, Sandra Braga, vive em uma comunidade que completa, em maio, 276 anos de resistência. É na ancestralidade que ela encontra motivação para lutar. “Por mais problemas e injustiças com que a gente se depare, quando eu olho para algo que remete a meu passado, meus avós, meus bisavós, existe uma esperança”, afirma.

O esperançar faz parte da nossa vida cotidiana. Cada criança que nasce aqui, eu sei que eu preciso esperançar para que ela tenha um futuro melhor. Nossas enciclopédias na comunidade, as parteiras, as benzedeiras, os mais velhos, nos fortalecem e não nos permitem fraquejar.

Para Darci Frigo, é preciso conjugar as mobilizações sociais pelas demandas imediatas com o sonho de uma casa comum, justa e inclusiva. “A utopia precisa voltar a guiar nossos passos. Precisamos ter os pés no chão, compreender os problemas da realidade, mas não podemos ficar só no imediato. Temos que pensar nas gerações futuras, construir uma relação diferente com a nossa mãe-Terra e criar condições para que as pessoas, na diversidade, se respeitem mutuamente”, finaliza o presidente do CNDH.

Vozes em ação

Rafaela Eduarda Miranda Santos, quilombola advogada

Quando criança, Rafaela sonhava ser faxineira: era a profissão da mãe e de quase todas as mulheres negras que via nas novelas. O pai trabalhava como diarista em fazendas no Vale do Ribeira, sul do estado de São Paulo. Na época, o casal morava em um bairro vizinho à comunidade quilombola de Porto Velho, seu território de origem.

Processos históricos de grilagem e expropriação impediam a família de construir sua residência dentro do quilombo. O reconhecimento da comunidade pelo Estado, a partir de 2003, permitiu instrumentalizar a luta para retomada de parte do território.

O contato com essas lutas influenciou diretamente a trajetória de Rafaela. Ela foi uma das primeiras pessoas da comunidade a cursar ensino superior e, aos 24 anos, trabalha como advogada na Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras do Vale do Ribeira SP-PR (EAACONE).

As memórias da escravidão são recentes e presentes no nosso território”, conta. “Até hoje, sofremos com a ausência da regularização fundiária, o que impede nossa autonomia sobre o território.”

Os conflitos fundiários acompanham a história do quilombo. A advogada lembra o dia em que a igreja da comunidade, espaço de encontro e mobilização, foi quebrada a marretadas a mando de um fazendeiro. “Era para nos desmobilizar, mas nos tornou mais fortes”, ressalta.

A oportunidade de cursar Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) foi aberta pelo Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera). A turma era formada por quilombolas, atingidos por barragens, fundos de pastos e filhos de assentados da reforma agrária.

Na época, eu trabalhava numa escola. Foi meu pai quem comentou sobre o Pronera e, como tinha ido bem no Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], decidi me inscrever”, lembra Rafaela. A aprovação na UFPR levou a família às lágrimas: era um divisor de águas na história dela e de toda a comunidade.

Em Curitiba (PR), Rafaela aprendeu, fez amigos e não parou de lutar – especialmente, para garantir condições de permanência na universidade. Hoje, ela lamenta os ataques à política de educação do campo, a redução do orçamento destinado ao Pronera e a diminuição do número de turmas.

Em tempos de expansão do agronegócio, o quilombo de Porto Velho cultiva alimentos tradicionais, sem agrotóxicos, e desenvolve a produção de artesanatos, farinha de mandioca, de rapadura, taiada, doce de amendoim, entre outros. São cerca de 33 famílias no território – e quase 60, somando as que vivem fora dos limites da comunidade.

Na EAACONE, as demandas são diversas. Além da regularização fundiária, os quilombolas do Vale do Ribeira lutam para a concretização de direitos básicos, fazem frente ao racismo, à criminalização, às ameaças e lutam pela garantia de políticas públicas. “Como produzir alimentos sem água? Como escoar a produção, se não tem uma estrada?”, questiona a advogada.

Entre as conquistas que Rafaela se orgulha de fazer parte, está a vacinação prioritária dos quilombolas contra a Covid-19, articulada junto à Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (Conaq), associações quilombolas, entre outros apoiadores. Assim como os pais foram uma inspiração, ela também se torna referência para os mais jovens. Rafaela tem quatro irmãos – um homem e três mulheres. Uma delas, Gabriele, hoje estuda Pedagogia na UFPR.

Quando alguém quebra essa barreira e sai para estudar, outros vêm junto”, celebra a advogada, que conclui uma pós-graduação em direito ambiental. “Isso mostra como é importante ter pessoas que nos representem e nos inspirem, para que histórias como essas se façam mais presentes.”

Laurah Cruz, artista e mobilizadora social

Minha intenção é deixar algo para a história, para as pessoas tirarem algum aprendizado da minha vivência.” As palavras expressam a maturidade de quem traz no corpo as marcas da violência, mas nunca desistiu de encontrar seu lugar no mundo.

Laurah cresceu na casa da família em Interlagos, zona sul de São Paulo (SP). Rejeitada pelo pai, decidiu ir embora aos 28 anos, ficou desempregada e, sem alternativas, encarou o desafio de ser uma mulher trans em situação de rua.

Vim para o centro da cidade porque havia maior opção de abrigos, e também porque ninguém me conhecia aqui. Achava que, por isso, minha vergonha seria menor”, explica.

Em condição de vulnerabilidade social por cinco anos, Laurah enfrentou a discriminação e se deparou com seus próprios preconceitos. A “Cracolândia”, tão estigmatizada, virou uma escola. “Hoje eu vejo que muitos não têm oportunidade, por isso acabam chegando àquela situação”, relata. “Tenho o maior orgulho de dizer que sou maloqueira, que faço parte dessa família. O meu nome, quem escolheu foram eles – e não imaginava o peso que teria hoje.”

A descoberta como artista se deu no Chá do Padre, espaço de reinserção social e acolhida da população de rua do centro de São Paulo, organizado pelo Sefras – Ação Franscisca de Solidariedade. “Sempre cantei, mas não tinha coragem de investir nesse sonho. Um dia, no karaokê do Chá do Padre, tomei coragem e mostrei o que eu tinha para mostrar. As pessoas vinham me abraçar, chorando, dizendo que eu tinha tocado o coração delas”, relembra Laurah.

A música é apenas uma das facetas dessa multiartista. Modelo, atriz, produtora, escritora, artista plástica e costureira, ela foi selecionada este ano pela SP Escola de Teatro para estudar cenário e figurino.

Nenhum passo dessa trajetória foi fácil. “Tenho uma placa de 20 cm e 10 pinos no braço. Há um ano, precisei reconstruir o lado direito do rosto, porque fui atingida por um bastão de beisebol. Carrego essas cicatrizes, mas a vontade de viver é cada vez maior”, ressalta a paulistana.

Em setembro de 2021, aos 33 anos, ela foi agredida por um guarda municipal durante uma abordagem. As imagens rodaram o país e causaram indignação: o guarda bateu com tanta força que o cassetete se quebrou em três pedaços. “Ele me julgou pela cor, pelo gênero, pela opção sexual. Uma professora que trabalha há 18 anos gravou o que aconteceu. Aproveitei e fiz um grito, não só por mim, mas por todo ser humano que é mal compreendido”, lembra.

Laurah conseguiu o afastamento do guarda, e processará o município em 2022. “Quero uma indenização por todas as violências sofridas. Dinheiro não paga o trauma que eu sofri e o quanto aquilo mexeu com meu psicológico, mas esse processo mostrará para a sociedade que podemos lutar por nossos direitos.”

A abordagem ocorreu quando Laurah buscava doações de roupas e calçados para o coletivo Tem Sentimento, onde atua como mobilizadora social. O projeto oferece a mulheres cis e trans a oportunidade de aprender corte e costura e ganhar pelo que produzem. É o trabalho desse coletivo que permite a ela pagar suas contas e sonhar com dias melhores.

Penso em ter uma moradia própria, sair do aluguel. Se a gente quer conquistar, tem que bater o pé e continuar nossa luta. Porque o que sou hoje é resultado de pessoas que vieram lá de trás, segurando a mesma onda que eu seguro hoje”, finaliza.

Para ler:

Para ouvir:

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