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Publicado em

17/09/2024

Quem protege quem defende os direitos humanos e socioambientais?

Segundo a Pastoral da Terra, 218 pessoas foram ameaçadas de morte no campo brasileiro em 2023. Já a Terra de Direitos e a Justiça Global contabilizam mais de 1.100 casos de violência contra defensores de direitos humanos e 169 assassinatos nos últimos anos.

Por Elvis Marques

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“25 de janeiro de 2019. Eu estava chegando a Belo Horizonte [MG], vindo do Espírito Santo. Foi quando recebi a mensagem de uma pessoa desesperada relatando que a barragem da Vale, numa das minas do Córrego do Feijão, havia se rompido. O pavor era ainda maior pelo que não se sabia, dos mortos e do que viria pela frente.”

Casas destruídas por conta da tragédia em Brumadinho (MG). Foto: Andressa Zumpano

O relato é de dom Vicente de Paula Ferreira, bispo atualmente da Diocese de Livramento de Nossa Senhora (BA). Na época do fato narrado, o religioso era bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte (MG). Anos antes, em 2017, ele havia sido designado para trabalhar no Vale do Paraopeba, cujo centro urbano maior é a cidade de Brumadinho – epicentro do rompimento da barragem da empresa Vale.

Retornando ao dia que entrou para a memória do Brasil como um dos maiores crimes socioambientais, dom Vicente chegou em Belo Horizonte e já partiu para Brumadinho. “A noite foi povoada por uma tristeza aguda. Vários grupos de famílias reunidas, no desespero por alguma notícia, estavam espalhados pelas ruas. A cidade já se encontrava em um luto coletivo”, relembra.

O bispo explica que os primeiros meses após o rompimento da barragem foram intensos. “A matriz de São Sebastião [em Brumadinho] foi ponto para conferir a lista dos mortos, rezar, chorar, partilhar as dores.”

No ano seguinte, no primeiro aniversário do rompimento da barragem, aconteceu a Romaria pela Ecologia Integral a Brumadinho, a qual contou com a presença de milhares de pessoas.

“A partir de tantas movimentações, comecei a frequentar grupos nacionais e internacionais, como a Comissão de Ecologia Integral e Mineração da CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. Ajudei a criar o Coletivo de Atingidos de Brumadinho, um grupo que permanece unido até hoje. Vi minha missão de pastor passar por uma verdadeira transformação no bojo de tantas agendas de fé e luta”, explica o bispo.

A organização social e a cobrança por justiça, no entanto, resultaram em descontentamento em algumas parcelas da sociedade, e, inclusive, uma série de ameaças e tentativas de intimidação ao trabalho que vinha sendo realizado pelo bispo e demais atores sociais.

“Se, no início, a prioridade era a consolação, a presença afetiva, a entrega das doações, com o passar do tempo aumentei o grito por justiça. Uma das primeiras narrativas com a qual me comprometi pode ser assim resumida: ‘não foi acidente, foi crime.’ Isso foi dito nos territórios locais e nas incidências nacionais e internacionais. Sempre carreguei comigo, como faço até hoje, o nome, a foto e a memória das 272 vítimas fatais, dos corpos ainda não encontrados, e a história de tanta gente e da Natureza ferida”, comenta.

Uma das primeiras ofensivas contra o bispo ocorreu na madrugada antes da Romaria, quando faixas foram espalhadas pela cidade com críticas e lançando suspeitas à sua atuação.

“Em vários momentos, as redes sociais foram palco de ataques e de difamação. Uma vez chegaram a desferir golpes no carro em que eu estava. O momento mais dramático culminou com uma ameaça de alguém que portava uma arma, quando eu estava saindo de uma missa. Esse episódio aconteceu no final do ano de 2022. Entrei, então, para o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Por alguns meses, recebi escolta policial”, explica.

Apesar da perseguição, o bispo argumenta que essa “traumática experiência” pode ser chamada de “conversão ecológica”. “Fortaleci em mim uma visão extremamente crítica em relação ao modelo neoliberalista que domina nosso globo terrestre. A mineração, o agronegócio, a chamada ‘transição energética’, estão operando em função de 1% da sociedade global, que concentra mais de 50% das riquezas do planeta.

Essa realidade, além de causar uma absurda injustiça social, tem levado nosso generoso planeta Terra à exaustão de suas fontes vitais.”

Toda a história relatada e vivenciada por dom Vicente, infelizmente, se repete ano a ano no Brasil: ameaças de morte, agressões, assassinatos, exposições a algum tipo de vulnerabilidade física e psicológica. Esse é o cotidiano enfrentado no país por inúmeros ativistas, comunicadores, defensores de direitos humanos e lideranças de comunidades originárias e tradicionais.

Essa situação vem de longe, está registrada desde 1985, ao menos. De acordo com o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT), Conflitos no Campo Brasil 2023, 218 pessoas estão ameaçadas de morte no campo brasileiro, um aumento de 4,3% em relação a 2022. Os estados com mais pessoas ameaçadas de morte estão na Amazônia Legal: Pará, Rondônia e Maranhão.

Já o levantamento Na Linha de Frente, das organizações Terra de Direitos e Justiça Global, mostra que, entre os anos de 2019 e 2022, o Brasil registrou 1.171 casos de violência contra defensores de direitos humanos, sendo que 169 pessoas foram mortas.

Há dois anos, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela impunidade estrutural relacionada a crimes contra pessoas defensoras de direitos humanos. Diante desses dados, em 2023, o Governo Federal criou, por decreto, o Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta, composto por membros do poder público e da sociedade civil, com o objetivo de elaborar propostas para a Política e o Plano Nacional de Proteção a Defensores de Direitos Humanos. Atualmente, o grupo está no processo de escuta da sociedade civil.

Além disso, mais de 20 entidades, organizações pastorais e sindicais e movimentos de direitos humanos compõem, desde 2020, a campanha “A vida por um fio”, criada por ocasião do Sínodo da Amazônia, a serviço da autoproteção de pessoas e comunidades ameaçadas.


Por Letícia Queiroz, da Escola de Ativismo*

Proteção institucional
– Elabore um plano coletivo e faça uma matriz de análise de risco, entendendo seu cotidiano e atividades que o vulnerabilizam;
– Faça Boletins de Ocorrência quando houver ameaça. Se não houver confiança na polícia local, é possível fazer na cidade vizinha ou pensar alternativas junto a um advogado popular de confiança;
– Procure o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), administrado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Veja os contatos em: bit.ly/RCC_07_51

Comunicação e cuidados digitais
– Pense na comunicação de forma estratégica. Ela é uma faca de dois gumes: pode trazer visibilidade para a situação, mas também vulnerabilizá-la. Nunca poste seu local atual ou fotos de reuniões e cuidado com dicas que podem denunciar sua localização;
– É preciso tomar cuidados digitais sempre que utilizar a internet. O uso de senhas fortes é essencial. Elas devem ser longas, com ícones e sem dados pessoais;
– Aplicativos de mensagem como o Signal são mais seguros. O uso da tecnologia VPN (Rede Virtual Privada) pode também acrescentar uma camada de segurança.
– Retire o celular de reuniões importantes. Configure os aplicativos para não usarem o microfone em tempo integral.

Camadas de proteção
– Coloque trancas reforçadas nas portas e janelas;
– Se possível, instale câmeras de segurança com monitoramento;
– Tenha cães que fazem alertas e/ou coloque alarmes sonoros em alguns pontos da casa.

Estratégias diárias
– Evite andar sozinho, crie variações de rota e evite chegar e sair dos lugares no mesmo horário;
– Mudar de cidade por um período pode ser necessário;
– Atenção redobrada com qualquer sinal fora do normal na sua rotina;
– Tenha uma pessoa de extrema confiança para informar seus deslocamentos.

Saiba mais
Acesse os materiais produzidos pela Escola de Ativismo que podem ajudar coletivos e indivíduos ameaçados:
– Guia para fazer uma avaliação de risco e adotar medidas de segurança: bit.ly/RCC_10_22
– A Internet Também é Nosso Território – Dicas Essenciais da Escola de Ativismo para Proteção na Rede:
bit.ly/RCC_10_23
– Guia para Desenvolvimento de uma Avaliação de Risco e
Medidas de Segurança: bit.ly/RCC_10_24

*Esse texto foi escrito com colaboração de pessoas da Escola de Ativismo que atuam na área de segurança e proteção física/pessoal e operacional.


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