Somos ecologia: diante da realidade ficaremos com o catastrofismo ou o esperançar?
Estudiosos, ativistas e defensores ambientais afirmam sobre a centralidade de um pensamento ecológico para desacelerar o contexto de emergências em razão das mudanças climáticas e o colapso ambiental.
Por Maria Victória Oliveira
A tempestade cai em algum lugar no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás. O Cerrado abriga um importante reservatório de água subterrâneo. Foto: Leandro Cagiano
“Eu fico chocada quando vemos a ocupação do nosso território por empresas estrangeiras para a produção de energia. Por que as usinas e parques eólicos estão vindo para o semiárido brasileiro? Nessa região, grande parte da população é negra, e o avanço das eólicas é como se dissessem: ‘essa população não sabe de nada e apenas sobrevive’, quando, na contramão, nós reconhecemos nosso lugar enquanto pertencentes ao semiárido. Mesmo um bioma cinzento, a Caatinga é um lugar bonito, que tem vida, tem pessoas e gente que pensa, com conhecimento de mais de 50 anos sobre esse espaço.”
Foto: Arquivo pessoal
É com a voz embargada que Roselita Vitor da Costa Albuquerque, assentada da reforma agrária, coordenadora do Polo da Borborema e uma das coordenadoras da Marcha pela Vida das Mulheres e da Agroecologia, conta sobre o racismo ambiental sofrido não só por ela, mulher preta, nascida e criada no campo, mas por agricultoras e agricultores que moram e trabalham no semiárido da Paraíba. Trata-se do avanço de empresas que, uma vez no território, não consideram o que as populações locais têm a dizer, por exemplo, sobre a instalação de torres eólicas, como é o caso da comunidade de Roselita.
Formado por uma rede de 15 sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais (STRs), cerca de 150 associações comunitárias e uma organização regional de agricultores ecológicos, o Polo da Borborema aposta na agroecologia como uma forma de criar o que Roselita chama de uma nova relação entre ser humano e natureza.
“Nós reconhecemos que não vamos fazer enfrentamento, por exemplo, à seca. Vamos conviver com ela, porque a própria natureza nos ensina a construir essa nova relação. Fazer agroecologia é pensar o mundo camponês com dignidade e soberania. Acredito que todas essas situações adversas que estamos vivendo no mundo e no Brasil, com enchentes nas cidades e 12 anos de seca no semiárido, além do aumento da temperatura e do calor, vêm desse modelo de produção excludente, baseado em transgênicos e agrotóxicos, que não valoriza as pessoas e seus saberes. É um modelo que degrada a natureza e consome tudo o que pode.”
Tempos de emergência
A construção dessa nova relação entre ser humano e natureza se faz ainda mais urgente diante de notícias de catástrofes recentes em diferentes partes do mundo. Se antes tínhamos tempo para reflexões, o momento atual exige mudanças de atitudes concretas.
Segundo dados do programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a Amazônia atingiu 10.049 focos de calor em 2023. Em setembro, o governador do Amazonas, Wilson Lima, decretou estado de emergência ambiental, com duração de 90 dias, uma vez que, apenas nos 10 primeiros dias do mês, foram registrados 4.717 focos de queimadas.
Ainda de acordo com o Inpe, outro importante bioma, o Cerrado, também está sob ameaça. Entre agosto de 2022 e julho de 2023, os alertas de desmatamento na região cresceram 16,5% em comparação com o ano anterior, com o índice de 6,3 mil quilômetros quadrados de vegetação destruída. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), a fronteira agrícola Matopiba – composta por partes dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – desmatou 494 mil hectares em 2023, o que representa cerca de 75% da área desmatada de todo o bioma no ano.
A água também produziu contextos de emergência em diferentes partes do mundo, com a cheia de rios no Rio Grande do Sul, principalmente do rio Taquari, em Lajeado, e a inundação na Líbia, que vitimou mais de 5 mil pessoas e deixou mais de 10 mil desaparecidas, ambas as situações no início de setembro deste ano. Segundo dados da Defesa Civil Nacional, mais de 800 mil pessoas foram afetadas por chuvas intensas no Brasil em 2022, o maior índice em 10 anos.
Ao mesmo tempo que a água inunda, a insegurança hídrica, ou seja, a falta de acesso regular e permanente à água, também representa um desafio, visto que é realidade de 12% da população geral brasileira, segundo dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), que traz a mensagem: onde falta água, falta alimento. Entre lares que enfrentam a insegurança hídrica, 22,8% deles também sofrem com a insegurança alimentar moderada, número que atinge os maiores níveis na região Norte (48,3%).
Roselita cita que o Programa Cisternas no Semiárido, uma iniciativa da sociedade civil que foi transformada em política pública, ajuda a promover a autonomia das famílias e tem um impacto direto na saúde dos(as) beneficiários(as). O estudo Climate adaptation policies and infant health: evidence from a water policy in Brazil (Políticas de adaptação climática e saúde de crianças: evidências de uma política hídrica no Brasil, em tradução livre), da Fundação Getulio Vargas, mostrou que, para cada semana que gestantes do semiárido são expostas ao Programa Cisternas, são somados mais dois gramas de peso no bebê que está para nascer, aumentando as chances de darem à luz crianças mais saudáveis. “Os bebês nascem mais saudáveis e essas mulheres também estão mais saudáveis, pois sabemos que elas andavam cerca de 15 quilômetros à procura de água durante uma grande seca”, aponta Roselita.
Fonte: MapBiomas – imagem e dados. Disponível em bit.ly/RCC_07_01
Todas as ocorrências são acompanhadas de notícias de ondas de calor pelo mundo. De acordo com a revista Nature Medicine, mais de 61 mil pessoas morreram, entre maio e setembro de 2022, na Europa, por conta da alta do calor durante o verão. No Brasil, uma onda de calor em setembro deste ano fez com que termômetros passassem dos 35°C em diferentes regiões do país.
Um estudo da organização Carbon Plan e do jornal Washington Post mostrou que, por volta de 2050, a cidade do Pará, em Belém, enfrentará 222 dias de calor intenso por ano, um aumento considerável se comparado com os 50 dias atuais, e Pekanbaru, na Indonésia, deve enfrentar 344 dias de calor extremo, que pode ser fatal ao corpo humano. O estudo mostra, ainda, que, daqui três décadas, cerca de cinco bilhões de pessoas, no mundo todo, deverão sofrer com altas temperaturas.
Esse contexto, de múltiplas ocorrências relacionadas ao clima, levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a declarar que a Terra vive uma era de “ebulição global”.
A intervenção do capitalismo e o colapso ambiental
Seca no Lago Tefé, no Amazonas, em 28 de setembro de 2023. Foto: João Paulo Borges Pedro / Instituto Mamirauá
O fato de que todos esses acontecimentos estão interligados, por mais que distantes geograficamente, encontra sentido no âmbito da Ecologia, que tem sido amplamente debatida sob o ponto de vista trazido pelo Papa Francisco na encíclica Laudato si’, um documento contemporâneo que apresenta uma perspectiva visionária e crítica dos dilemas com o planeta.
Tendo sua primeira parte publicada em 2015, a encíclica aborda diferentes conceitos quando o assunto é meio ambiente, como o fato de que vivemos, todos, em uma Casa Comum, e que “a Mãe Terra, que nos sustenta e governa […] clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou.”
Para Moema Miranda, integrante do Serviço Franciscano de Justiça, Paz e Ecologia (Sinfrajupe) e assessora da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o documento propõe uma leitura de mundo e uma compreensão de como o sistema socioeconômico atual, o capitalismo, afeta todo o funcionamento interligado do sistema Terra.
“A forma como o capitalismo se relaciona com o planeta na base da acumulação impede o funcionamento da base do sistema da vida, que é pautado na partilha e na comunhão. Uma minoria da humanidade, em sua forma de vida, leva a um estressamento das condições de vida no planeta e causa dano para uma grande quantidade de pessoas. O desequilíbrio na relação metabólica com o planeta está marcado pela injustiça.”
Foto: Arquivo pessoal
No dia 4 de outubro, o Papa Francisco lançou uma nova exortação, a Laudate Deum, específica sobre a questão climática. No texto, o Papa sublinha a importância de que todos desenvolvam ações práticas de cuidado com a Casa Comum, especialmente os jovens, cuja sensibilidade para com a natureza é genuína, reforçando que as gerações mais novas têm direito a receber dos mais velhos o mundo com condições dignas de vida. O artigo “Laudate Deum traz à tona a urgência climática e convoca à ação política pela transição energética, pelo fim da cultura do descarte e por relações mais justas”; na página 37, traz uma reflexão sobre a nova exortação.
>> Confira também a entrevista completa sobre o tema, com o professor Luiz Marques, no site da Revista Casa Comum. Acesse: bit.ly/EntrevistaLaudateDeum
“Estamos vivendo um momento de colapso ecológico. As questões políticas, econômicas e sociais são crises, pois tendem a passar. Mas a situação de habitabilidade do planeta é algo muito mais profundo, e o distanciamento da natureza que a humanidade, principalmente o ocidente, construiu nos últimos séculos, chegou a um momento de colapso.”
Assim como Moema, Felipe Milanez, ecologista político, professor da Universidade Federal da Bahia e coordenador do grupo de trabalho Ecología(s) Política(s) Desde El Sur Abya/Yala, do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais, afirma que muito do que se vive hoje, em termos de emergência climática, pode ser explicado pela expansão colonial e o estabelecimento do capitalismo como modelo econômico predominante, que transforma tudo em mercadoria: passível de comprar e de vender.
Portanto, se a emergência climática não surgiu espontaneamente, mas foi produzida por um sistema, a ecologia política, enquanto campo de estudos interdisciplinar que envolve e relaciona geografia, sociologia, política e a questão ambiental, visa questionar a naturalização de certos processos ecológicos, a história e a trajetória desse sistema que produziu a emergência e toda a problemática social e, portanto, política, envolvida.
Foto: Arquivo pessoal
A interconexão de um mundo ecológico
Todo esse estado de colapso demanda um processo de mudança de paradigma, que encontra ressonância junto a um dos temas trazidos pelo Papa na encíclica, que é a necessidade da chamada conversão ecológica, definida pelo Movimento Laudato si’, uma iniciativa global para inspirar o cuidado pela Casa Comum, como a “transformação de corações e mentes em direção a um amor maior por Deus, uns pelos outros e pela criação.”
Moema segue a mesma linha ao afirmar que o planeta é vivo e vivente, e, por isso, à medida que os modos de vida humanos gastam mais do que retornam, afetam-se todas as condições de continuidade da vida, com um desequilíbrio do clima planetário.
A Mata Atlântica da Serra da Mantiqueira foi completamente transformada. Pasto, floresta de eucalipto e campo de soja dividem o mesmo espaço. Santa Rita de Caldas, Minas Gerais. Foto: Leandro Cagiano
“A conversão ecológica é uma mudança profunda e radical na compreensão de como determinadas formas de produção e consumo se tornam incompatíveis com o planeta. Ela implica um compromisso coletivo, comunitário, social, com uma nova forma de ser e de estar no mundo, em comunhão com os ciclos da vida”, reflete.
Uma mudança de paradigma, entretanto, não é tarefa simples. A conversão ecológica tem uma dimensão pessoal, de mudanças individuais, mas também conta com uma dimensão sociopolítica. Nesse sentido, Moema cita compromissos e esforços de cada um, mas que também são compartilhados uns com os outros, em um sentido mais amplo e coletivo de mudança de sentidos, que vinculam as pessoas e as levam a uma comunhão.
Efeitos nas juventudes
A pesquisa Juventudes, Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, realizada pelo Em Movimento e a Rede Conhecimento Social, em parceria com várias organizações, mostrou que 8 a cada 10 jovens brasileiros sabem e concordam que estamos vivendo uma crise climática, e apontam meio ambiente, clima e defesa dos animais como um dos três assuntos que mais desperta interesse, principalmente entre mulheres e moradores de periferias ou favelas. Dos entrevistados, 98% concordam que esse é um tema de todos, e não só de ativistas ou povos indígenas, por exemplo.
Entretanto, além da falta de conhecimento sobre termos mais técnicos, como racismo ambiental e justiça climática, e o fato de que menos de 3 a cada 10 jovens dizem conversar com frequência sobre a temática ambiental, as mudanças climáticas e a pauta ambiental têm produzido efeitos negativos entre jovens brasileiros.
Dos entrevistados, 68% acreditam que a perda da qualidade da saúde mental é um dos fenômenos que têm ocorrido com mais frequência por conta das mudanças climáticas. O índice é maior entre jovens que residem na Mata Atlântica (75%), seguidos por jovens da Caatinga (71%), da Amazônia (69%), do Cerrado (68%), do Pampa (68%) e do Pantanal (59%).
Na avaliação de Felipe Milanez, o caminho mais promissor para produzir avanços efetivos é o diálogo e a escuta de novas ideias, além da superação de hierarquias de conhecimento construídas no âmbito do colonialismo, abrindo espaço para a participação, por exemplo, de povos indígenas em lugares de tomada de decisão.
Isso porque o processo político de agressão à natureza sempre se deu com resistência justamente de povos indígenas. “Davi Kopenawa, xamã Yanomami, define ecologia como aquilo que não é cercado. Essa é uma leitura para pensarmos na Casa Comum, que podemos compartilhar sem essa ideia do individual, sem essas cicatrizes – as cercas – que se fazem na crosta da Terra para demarcar propriedades. Já Ailton Krenak [ambientalista e líder indígena] fala sobre a ecologia como ‘estar junto’, e não separar o coletivo da terra. Os cientistas não saberiam explicar o que os pajés, xamãs, povos da terra e quilombolas sentem e explicam pra gente. Tudo isso tem a ver com a terra”, comenta Felipe.
Assim como o ecologista político, Moema cita que povos não cristãos, sobretudo indígenas e tradicionais, já têm essa compreensão de que a natureza é mãe, é a “pachamama” [termo utilizado por povos andinos para definir, entre múltiplos significados, a Mãe Terra] e que não existe, portanto, uma separação dos seres humanos e sua cultura da natureza.
O peso dos conflitos ambientais
A Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN) produziu um caderno temático da Revista ABPN, com o tema “Racismo Ambiental e Re-existência de Territórios Negros em Todo o Mundo”, que reflete sobre os efeitos do racismo ambiental. O fenômeno leva países europeus e estadunidenses, por exemplo, a descartarem lixo na África, Ásia e América Latina. Portanto, “o racismo ambiental molda a geopolítica ambiental mundial desde uma geografia dos proveitos e dos rejeitos, que transforma os países de baixa ou média renda em quarto de despejo, isto é, em ´lixeiras do mundo´ inscritas no capitalismo neocolonial ambientalmente tóxico.”
O racismo ambiental também se faz presente em situações emergenciais produzidas por contextos de descuido para com a natureza, como é o caso de rompimento de barragens, por exemplo. Cecilia Godoi, coordenadora da assessoria técnica Associação Estadual Defesa Ambiental e Social (AEDAS), pesquisadora negra e integrante da recémcriada Articulação de Mulheres Negras de Minas Gerais (AMN-MG), está, atualmente, coordenando um estudo de diagnóstico de racismo ambiental no caso do rompimento da barragem de Brumadinho, em 2019, analisando os efeitos na categoria denominada “atingidos por barragens”.
Foto: Arquivo pessoal
“Atualmente, nossa meta enquanto equipe é garantir a inserção de políticas afirmativas no processo reparatório, pensando os grupos prioritários, considerando que a maioria da população é negra e a maior parte daqueles [que sofrem] com danos agravados são mulheres negras.”
Nesse contexto, Cecília reforça a importância de uma perspectiva e abordagem decolonial, inclusive dos saberes ecológicos muito praticados por comunidades tradicionais e povos indígenas. “Existem grupos de mulheres negras quilombolas que atuam no campo da agroecologia defendendo uma ‘afroecologia’, indicando que, em diversos momentos, as técnicas agroecológicas desenvolvidas e aplicadas de modo hereditário, inclusive, são apropriadas pela branquitude no campo da academia.”
Em uma visita recente a Milho Verde, município do interior de Minas Gerais, Cecília esteve em duas comunidades quilombolas, e reforça que a vinculação delas com a proteção e valorização da natureza merece destaque. “A percepção sobre o fato de que aquele território era totalmente protegido e conseguia ter um funcionamento famosamente ecológico estava basicamente vinculada à quantidade de comunidades quilombolas na região, que é o que garante o funcionamento, a manutenção e a preservação das fontes de água, dos territórios e do campo.”
Conflitos, desigualdades e injustiças ambientais, como os casos citados, são campos de estudo da ecologia política. Felipe cita que é o racismo ambiental que explica porque há mais lixões em territórios de maioria da população negra do que em territórios de maioria branca. Assim, a luta por justiça ambiental torna-se uma luta antirracista. “Comunidades negras e povos indígenas têm seus territórios desproporcionalmente afetados pela industrialização, pelos processos de uso abusivo dos recursos naturais e pela contaminação”, analisa.
O quilombo de São Braz, por exemplo, é uma comunidade negra do Recôncavo Baiano cercada pela exploração de recursos naturais como chumbo, pela construção de um lixão e por uma indústria de papel. “São Braz denuncia o racismo ambiental, pois é vítima dessa exploração organizada pelo racismo, que hierarquiza e inferioriza essa comunidade e acha que pode fazer tudo de ruim e torná-la a chamada ‘zona de sacrifício”.
>> Acesse o artigo produzido pela Revista Casa Comum sobre o tema: Racismo ambiental: a resposta está nas mulheres pretas, indígenas e periféricas. bit.ly/RCC_E5_EmPerspectiva
Defender quem defende
Maria Bernadete Pacífico, coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), iyalorixá e liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, no município Simões Filho, na Bahia, foi assassinada em 17 de agosto deste ano, na frente de três netos. Mãe Bernadete fazia parte do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) do Governo Federal e, segundo familiares, sofria ameaças há, pelo menos, dois meses.
Para Felipe, mais do que lutar contra a exploração de madeira e a instalação de um lixão próximo ao quilombo, Mãe Bernadete representava a defesa de toda uma comunidade.
“A morte de Mãe Bernadete é resultado de uma situação trágica em Salvador, que está produzindo colapso e muitas mortes. Ela era uma só, mas era múltipla, uma das maiores lideranças quilombolas do Brasil. Ela se relacionava com entidades espirituais que, no candomblé, estão presentes na natureza. O ambientalismo de Mãe Bernadete era profundamente ecológico dentro da perspectiva de que nós somos ecologia”, explica.
Mulheres em ação
Outra liderança que, assim como Mãe Bernadete, figura no PPDDH, é Cacica Cátia. Do Território indígena Tupinambá de Belmonte, na Bahia, Cacica sofre sucessivas ameaças e hoje só se desloca com escolta. Sua história é marcada por perdas e golpes: perdeu o filho, em 2014, em um acidente, até hoje, sem esclarecimentos e, em 2019, seu enteado desapareceu no caminho para a aldeia.
Em entrevista à Revista Casa Comum para o especial Mulheres que cuidam da Casa Comum, Cacica contou que há um desejo de pessoas em exterminar seu povo, que ocupa uma faixa de terra fértil e repleta de minérios, além de sofrer os efeitos do machismo. “É uma luta ser aceita como mulher militante e guerreira, que quer ajudar na luta em defesa da vida e do território. Precisamos ser duplamente fortes, porque vivemos em uma sociedade patriarcal e machista.”
>> Conheça o especial e veja o depoimento de Cacica Cátia e de outras quatro defensoras de direitos: bit.ly/RCC_07_03
De acordo com um levantamento da organização Global Witness, pelo menos, 177 ativistas e defensores ambientais foram assassinados no mundo em 2022. A Colômbia ocupou o primeiro lugar no ranking de países mais violentos, com 60 assassinatos, seguido pelo Brasil, com 34 assassinatos. Segundo a análise, a Amazônia é um dos lugares mais perigosos do mundo para defensores: são 296 mortes desde 2014.
Dom Phillips, jornalista britânico do The Guardian, e Bruno Pereira, indigenista brasileiro, estão entre as pessoas assassinadas em 2022 na região, que, de acordo com o MapBiomas, concentrava, em 2022, 92% das áreas garimpadas em todo o Brasil, com quase metade (40,7%) dos garimpos abertos nos últimos cinco anos.
Uma das pessoas que viu de perto as ameaças e os ataques a defensores ambientais é Claudelice Santos. Em 2011, seu irmão e sua cunhada, José Claudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo, casal extrativista paraense, foram assassinados em um assentamento no Pará por contrariarem interesses de madeireiros, carvoeiros e médios e grandes fazendeiros da região.
“O Zé Claudio e a Maria entraram para a lista de ameaçados de morte no começo dos anos 2000, e só saíram em 2011, assassinados. Não basta matar o corpo, tem que criminalizar mesmo depois de morto. Na sentença que absolve o mandante do assassinato, está escrito que eles contribuíram para suas mortes. O que essas pessoas fizeram para merecer isso?”, questiona Claudelice.
Atualmente, ela é coordenadora geral do Instituto Zé Claudio e Maria (IZM), que apoia a luta por justiça, pelos defensores do meio ambiente ameaçados de morte, pela economia solidária e atua para manter viva a memória do que chama de “mártires socioambientais”
“Quando um defensor da sua cultura, do seu povo e do território se levanta contra esses modos predatórios de uso da floresta, isso incomoda. Enquanto ‘pedras no caminho’, essas pessoas passam por um processo de invisibilização e difamação para que, quando forem assassinadas, não haja comoção, seja simplesmente ‘mais um morreu’, como foi dito no caso de Zé Claudio e Maria no Congresso.“
Foto: Arquivo pessoal
Claudelice conta que ativistas locais denominaram de “consórcio da morte” o grupo que ameaça a vida de defensores ambientais. Trata-se de uma união de representantes dos interesses econômicos que não aceitam que os povos de comunidades tradicionais tenham livre acesso aos seus próprios recursos, e, entre eles, estão figuras políticas, empresários da região, fazendeiros, garimpeiros e mineradoras, por exemplo.
Papel do Estado
Para Felipe, por mais que conversas a respeito de ampliar a política de proteção aos defensores sejam válidas, reforçar a segurança e militarizar a situação não é o caminho mais indicado. Segundo o ecologista político, é necessário investir na pacificação da região de conflito a partir de ações como demarcação de terras indígenas e quilombos, e barrar a construção de usinas, por exemplo, que produzem a violência no entorno.
Claudelice, por sua vez, avalia que o programa de proteção brasileiro é ineficaz por uma série de motivos, como a falta de orçamento necessário e de orientações técnicas, a inexistência de um recorte de gênero para defensoras mulheres ameaçadas, e, até mesmo, a falta de programas estaduais de proteção, já que apenas algumas unidades da federação contam com a iniciativa.
“Nós não somos vulneráveis. Nos fazem vulneráveis quando o Estado está ausente. Há de se fazer um diálogo maior nas universidades e na malha social como um todo sobre o programa de proteção e sobre o estado brasileiro. Se há violação de direitos humanos por parte de empresas e megaprojetos contra comunidades ou defensores, é porque o Estado é permissivo.”
A coordenadora reforça, ainda, que é necessária a vontade pública de solucionar conflitos, pois, uma vez que uma pessoa denuncia uma ameaça, há um ameaçador e, portanto, um conflito nesse contexto.
Organizações em prol dos defensores
Campanha “A Vida por um Fio” realiza oficina sobre os desafios para a proteção de defensores de direitos humanos, em junho de 2023. Foto: Divulgação
Assim como o IZM, outra iniciativa que atua na pauta dos defensores ambientais é “A Vida por um Fio”, uma campanha de autoproteção das comunidades e lideranças ameaçadas, criada como resposta ao Sínodo da Amazônia, realizado em 2019, no Vaticano. Atualmente integrada por 22 organizações nacionais, a campanha foi construída a partir da parceria entre diversas organizações da sociedade civil que lutam por direitos humanos, além de pastorais e organismos da Igreja Católica.
A iniciativa aposta no que chama de “autoproteção a partir de mecanismos não violentos”, uma vez que essa estratégia trabalha a independência e autonomia das lideranças e organizações, e é formada com participação dos envolvidos.
Considerando que Francisco de Assis é padroeiro da ecologia, o Sefras – Ação Social Franciscana também conta com iniciativas que afirmam seu compromisso com questões e desafios socioambientais. Em uma das frentes, atua pela proteção de defensores e defensoras ambientais e de direitos humanos da Amazônia, a partir de um mapeamento de comunidades, causas e casos de violência na região.
Na outra frente, por acreditar na importância da construção de autonomia econômica e política de comunidades ameaçadas, o Sefras integra e apoia a Rede de Fundos Comunitários Socioambientais e Territoriais pela Autonomia dos Povos da Amazônia. Em agosto, por exemplo, a Rede divulgou uma carta, durante a Cúpula da Amazônia, apontando os fundos comunitários como a melhor ferramenta para o financiamento de ações voltadas aos povos da floresta e seus territórios.
Um dos principais posicionamentos de povos indígenas e tradicionais, além de todas e todos que atuam em prol do meio ambiente, é usar, de forma respeitosa e consciente, o que a biodiversidade local tem a oferecer, para, assim, garantir seu sustento e a continuidade da vida tanto humana como do ecossistema natural. Uma dessas opções é a chamada “economia da floresta em pé”.
De acordo com o estudo Nova Economia da Amazônia (NEA), um contexto de implementação de uma nova economia na Amazônia, orientado pelo desmatamento zero, expansão da bioeconomia, restauração florestal e adequação da agropecuária e matriz energética à produção de baixa emissão de carbono, levaria o Brasil, em 2050, a um Produto Interno Bruto (PIB) R$ 40 bilhões superior ao referencial.
“As experiências que estamos realizando e acompanhando comprovam que a economia da floresta em pé pode gerar mais receita do que derrubando, além de trazer futuro, ao contrário da insistência nessa visão errada de progresso, que está nos levando a mais pobreza. Precisamos dar uma guinada na lógica de desenvolvimento, para um modelo mais igualitário e harmônico com a natureza, combatendo esse modelo de subdesenvolvimento e a cultura do ilegalismo”, afirma Caetano Scannavino, coordenador do Projeto Saúde e Alegria, iniciativa da sociedade civil que atua desde 1987 na Amazônia brasileira, promovendo e apoiando processos participativos de desenvolvimento comunitário integrado e sustentável.
Caetano cita sistemas agroflorestais que envolvem, por exemplo, plantio e cultivo responsável de produtos como açaí e cacau, além de árvores nativas que, se bem manejadas, podem trazer recursos e segurança alimentar para a região, para a agricultura familiar e produtores. O trabalho desenvolvido pela organização, por exemplo, de recuperar roçados comunitários, contribui para o modo de vida das populações locais, ao mesmo tempo que atua na questão do reflorestamento. Tudo isso pensado em conjunto e parceria com organizações de base, usando princípios da agroecologia e bioeconomia.
Foto: Arquivo pessoal
“Quando as pessoas souberem que existem soluções que não são apenas desmatar para fazer pasto, ou plantar soja, ou buscar ouro, quem sabe tiramos um pouco da visão catastrófica para trazer uma visão de esperança”, comenta o coordenador, que cita, ainda, o profundo conhecimento da natureza dos povos que vivem na floresta, uma vez que ela é sua forma de sobreviver.
Morando há 35 anos na Amazônia e tendo participado de importantes espaços, como é o caso da Cúpula da Amazônia, realizada em agosto, Caetano reforça o papel fundamental de organizações da sociedade civil (OSCs) em todo o debate envolvendo meio ambiente e destaca três responsabilidades das instituições para a garantia da democracia: controle social e vigilância de órgãos públicos e privados, trabalhar a visibilidade de minorias e movimentos sociais e atuar na construção de soluções técnicas para desafios socioambientais.
De Belém a Belém
Caetano chama de “Belém a Belém” a conexão entre os dois grandes eventos que acontecem na capital paraense e colocam a pauta ambiental no centro do debate. O primeiro, a Cúpula da Amazônia, foi realizado em agosto deste ano e reuniu chefes de Estado dos oito países integrantes da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA): Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela.
O evento resultou na Declaração de Belém, documento assinado pelos oito países, que prevê posicionamentos como evitar o ponto de não retorno da Amazônia e cobrar dos países desenvolvidos recursos financeiros para mitigar o impacto da mudança do clima. O protocolo recebeu críticas, entretanto, por não citar a exploração de combustíveis fósseis, não pautar metas concretas para combater o desmatamento e por não considerar diversos posicionamentos e demandas de populações locais.
Com o fim da Cúpula, Belém se prepara para receber a COP30, a Conferência da ONU sobre mudanças climáticas em 2025, dez anos depois do Acordo de Paris, assinado por 195 países comprometidos com metas de redução de emissões de gases de efeito estufa. Entretanto, a escolha da sede traz consigo alguns desafios. Estimativas apontam que a cidade precisaria quadruplicar sua capacidade hoteleira para atender os cerca de 50 mil participantes do evento.
Para Caetano, são dois anos que decidirão o século, e o Brasil pode estar à frente do debate. “O país tem uma oportunidade única de pautar, a partir do Sul Global, uma nova governança do clima, que seja mais justa, igualitária e pragmática. Precisamos discutir se queremos um desenvolvimento só para alguns e no presente, ou se para todos e para o futuro também. O governo brasileiro tem tudo para liderar esse debate global, colocando em pauta os países que mais emitiram gases até esse momento”, aponta. >>
Diante da compreensão da gravidade, do tamanho e da complexidade da questão ambiental que se coloca à frente da humanidade, Moema reforça que, ao contrário da paralisia, os seres humanos devem buscar a chamada “esperança em meio à catástrofe”, termo cunhado por um estudioso do livro do Apocalipse, da Bíblia.
“A esperança na catástrofe não nega a seriedade do momento que estamos vivendo, mas diz como ampliamos a margem de esperança e como ganhamos tempo enquanto alguma saída está sendo construída a partir de milhares de pequenos atos de generosidade, de solidariedade e de comunhão com a terra. Durante a pandemia isso aconteceu aos montes. Milhões de pequenos gestos que só são pequenos de uma dimensão, mas quando se articulam numa grande rede de solidariedade, eles fazem toda a diferença e são imensos.”
Roselita Albuquerque, citada no início da reportagem, por sua vez, relata como centenas de agricultores estão arborizando suas propriedades em uma lógica de não apenas tirar da natureza, mas, a partir de um novo olhar sobre sua propriedade e comunidade, desenvolver uma relação de complementaridade com o ambiente. “São formas solidárias e ecológicas de construirmos esse mundo rural a partir da relação harmoniosa com a natureza. Se não existir mais Cerrado, Amazônia ou Caatinga, não existiremos nós. É uma questão de vida que nos faz compreender que a luta tem que ser coletiva e integral.
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Por Beatriz de Oliveira, do Nós, mulheres da periferia
Jaciara Borari atua pela defesa de seu território e traz à tona a luta das juventudes
Boa parte das atividades de que Jaciara Borari participa em seu dia a dia estão profundamente ligadas ao ativismo ambiental. Aos 28 anos, a jovem indígena do povo Borari, reside em Alter do Chão (PA) e estuda Antropologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).
Ela integra a Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós, organização que combate a violência contra mulheres indígenas da região, promovendo acolhimento, programas de capacitação e autonomia financeira por meio de oficinas.
A associação conta também com um grupo de carimbó que, por meio da música, ecoa mensagens sobre os direitos dos povos indígenas e a importância do cuidado com os territórios. Jaciara é uma das integrantes do grupo, que já se apresentou em festivais nacionais de música e lançou o álbum “kirībasáwa Yúri Yí-tá – A Força Que Vem Das Águas”, em 2021.
A jovem afirma que não pode precisar exatamente quando passou a se nomear como ativista ambiental, pois a preocupação com o território está sempre presente em toda a sua trajetória. “Desde que me entendo por gente, meu pai e minha mãe faziam essa defesa dos territórios, dos rios, contra a especulação imobiliária. Eu fui aprendendo com eles”, relembra.
Foi por meio da organização Engajamundo que Jaciara aprendeu técnicas de ativismo e compreendeu a importância da participação das juventudes em espaços de tomada de decisões. A organização reúne uma rede de ativistas por todo o país.
“Nós, jovens, não somos levados a sério em vários espaços, mas sabemos que nossa luta é válida, principalmente para que possamos ter um agora e um futuro melhores”, afirma .
Atualmente a ativista está se preparando, juntamente com outros jovens da organização, para participar da COP28, a Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas, que ocorrerá nos Emirados Árabes no fim deste ano. “É importante estar em conferências como essa, porque se não estivermos lá, continuarão falando por nós, sem nós”, pontua.
Foto: Arquivo pessoal
Crime ambiental despertou Mikaelle Farias para a urgência do ativismo
Foto: Arquivo pessoal
Em agosto de 2019, apareceram as primeiras manchas de petróleo em praias do nordeste brasileiro, marcando o início do maior crime ambiental causado por vazamento de petróleo da história do país. Nesse momento,
Mikaelle Farias, moradora de João Pessoa (PB), despertou para a urgência do ativismo ambiental. “Eu vi o impacto aqui no meu território e isso me chocou muito. Era início do governo Bolsonaro e não houve ação eficaz para mitigar aquele evento”, conta. Mikaelle iniciou então uma jornada de pesquisa sobre questões ambientais e se aprofundou nos temas das mudanças climáticas e do racismo ambiental.
Atuou, por um período, como voluntária do Greenpeace Brasil, organização ambiental, e, logo depois, ingressou no Fridays for Future, movimento mundial de jovens pelo clima, também conhecido como Greve Global pelo Clima.
Sua escolha de cursar a graduação em Engenharia em Energias Renováveis foi guiada pelo ativismo ambiental. “Eu comecei a dar um norte melhor para o que atuava dentro do ativismo, então, hoje minha ação perpassa pelas questões de racismo ambiental e de uma transição energética justa pensando o Nordeste como centro dessas discussões”, diz.
Antes mesmo da educação formal, foi sua avó, membro do povo cigano, quem transmitiu a importância de lutar por uma causa. “Ela me passou muito essa questão de luta e ancestralidade do povo”, pontua.
Lutar contra as mudanças climáticas e presenciar os efeitos do aquecimento global frequentemente gera frustração para a ativista. “Temos que bater de frente com uma cadeia de inúmeros sistemas para conseguir que os avanços de fato aconteçam. Quando a gente bate de frente, isso acaba atravessando muito os nossos corpos. É difícil lidar com as frustrações. Quando voltei da COP27, realizada ano passado no Egito, fiquei meses abalada e tentando me recuperar.”
“Precisamos realmente de uma revolução em todo sistema para que as pessoas despertem para a urgência das mudanças climáticas”, convoca.
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