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Papo reto

Publicado em

19/10/2023

Laudate Deum: nova exortação apostólica afirma que natureza não é um mero recurso a serviço dos seres humanos 

Papa Francisco faz apelo e ultrapassa barreiras do catolicismo ao destinar exortação apostólica a ‘todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática’, aponta estudioso

Por Maria Victória Oliveira

Foto: Frei Atílio Dalla Costa Battistuz

O Papa Francisco escolheu o dia 4 de outubro, data em que se comemora o Dia de São Francisco de Assis, para publicar uma nova exortação apostólica. Com o título Laudate Deum, Louvai a Deus, e destinada a “todas as pessoas de boa vontade sobre a crise climática”, o documento é uma continuação da encíclica Laudato si’, publicada em 2015, que se tornou referência quando o assunto é o estudo das causas, bem como os caminhos possíveis e a urgência de combater os efeitos das mudanças climáticas em diferentes partes do mundo. 

Ao longo de seis capítulos, o Papa reflete, na nova publicação, sobre temas diversos dentro do grande guarda-chuva que representa a problemática do clima: justiça climática e os grandes responsáveis pelo aquecimento do planeta; os danos irreversíveis e suas causas humanas; o conceito de poder e seu uso desenfreado; a importância de repensar a política internacional e suas fragilidades; as Conferências do Clima (COPs) da Organização das Nações Unidas (ONU); entre outros aspectos. 

Em determinada passagem da exortação, Papa Francisco reforça a necessidade de uma reflexão sobre a herança que será deixada ao mundo para as futuras gerações:

“Realizamos progressos tecnológicos impressionantes e surpreendentes, sem nos darmos conta, ao mesmo tempo, que nos tornamos altamente perigosos, capazes de pôr em perigo a vida de muitos seres e a nossa própria sobrevivência.”

Representantes de diferentes setores têm apontado a importância da clareza da mensagem e o tom de urgência trazido pelas palavras do Papa, como é o caso de Luiz Marques, historiador de arte, ex-curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo e diretor do Instituto de História da Arte do museu, um dos fundadores do programa de pós-graduação em História da Arte da Universidade Estadual de Campinas, onde atualmente exerce o cargo de professor de História Medieval e Moderna no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. 

A Revista Casa Comum conversou com Luiz Marques para compreender a importância de disseminar essa mensagem e como o Papa Francisco se coloca como uma figura fundamental no alerta ao combate das mudanças climáticas. Confira a seguir. 

Revista Casa Comum: Qual é, hoje, o significado de documentos como a encíclica Laudato si’ e sua continuação, a exortação apostólica Laudate Deum

Luiz Marques: A encíclica Laudato si’ e a exortação, que é um prolongamento da encíclica, é o documento mais importante, mais substancial e radical e o que foi mais capaz de equacionar a questão atual na medida em que propõe esse conceito de ecologia integral. Nenhum outro movimento no momento tem essa radicalidade, essa capacidade de compreender a raiz do fenômeno que está exatamente na Laudato si’. Tenho para mim que esse é um documento farol que pode nos levar à possibilidade de termos um futuro no planeta. E digo isso com a mais absoluta convicção de alguém que não é religioso, e que, portanto, tem no Papa Francisco atualmente um líder não apenas religioso, mas um líder da humanidade, capaz efetivamente de levar uma mensagem de prudência, sensibilidade, sensatez e, ao mesmo tempo, de radicalidade, porque, hoje, ser sensato é ser radical. 

Revista Casa Comum: Logo no início da exortação, o Papa Francisco chama atenção para o fato de que uma reduzida porcentagem mais rica do planeta polui mais do que os 50% mais pobres de toda a população mundial e que a emissão per capita dos países mais ricos é muitas vezes superior à dos mais pobres. Por que deve-se fazer essa distinção quando falamos em mudanças climáticas? 

Luiz Marques: Essa questão da justiça climática é fundamental. Não se trata, em hipótese alguma, de estender à humanidade de forma geral a responsabilidade pelas crises socioambientais. Essa minoria mais rica é a que deve ser responsabilizada e sobre cujos ombros recai a obrigação de uma reatividade muito maior do que os 70% mais pobres do planeta. O grupo dos mais ricos é beneficiário de uma engrenagem que é dominada por grandes corporações e burocracias estatais que controlam investimentos estratégicos da sociedade, principalmente energia e alimentação. É preciso que as sociedades obriguem e pressionem as elites econômicas e governamentais a mudar de trajetória, pois dessa forma já estamos caindo em uma situação irreversível.

Revista Casa Comum: O Papa também dedica quase um capítulo inteiro à política e uma proposta de redesenhar o multilateralismo, pontuando que não se trata de substituir a política, mas estabelecer espaços de diálogo, consulta, arbitragem, resolução dos conflitos, supervisão e, em resumo, uma espécie de maior democratização na esfera global. De que forma essa mudança pode ajudar o cenário de emergência climática?

Luiz Marques: Quando a ONU [Organização das Nações Unidas] foi criada em 1945, ela se baseou em uma ordem jurídica internacional segundo a qual os estados nacionais têm o direito da soberania nacional absoluta. Por isso, quando um estado invade o outro é considerado uma transgressão visceral da ordem jurídica internacional.

Hoje, nós temos um conjunto de problemas que é essencialmente mundial. Se nós pegarmos o aquecimento global, se trata de um aquecimento da atmosfera, que não é nacional. A poluição dos oceanos é global, assim como a destruição da biodiversidade. Os pássaros migratórios ou os peixes não reconhecem os estados nacionais. As pandemias que nós estamos vivendo – e vamos viver cada vez mais – são globais. 

Há um descompasso hoje no mundo, pois se defronta com grandes problemas globais, mas está lidando a partir de uma estrutura disfuncional que é nacional. Então nós temos que superar esse conceito de soberania nacional absoluta e nos encaminhar para uma ideia de soberania nacional relativa, até o ponto em que uma decisão nacional não afete o conjunto do bem-estar global. Isso supõe a criação de uma instância de autoridade, de um outro ordenamento jurídico, no qual tenham instâncias de autoridade superiores ao conceito de soberania nacional absoluta. Isso só será possível se a sociedade de cada nação entender a necessidade de superar o conceito de soberania nacional absoluta. É difícil, mas isso precisa acontecer.

Revista Casa Comum: Em conexão com essa necessidade de mudança do conceito de soberania nacional, você avalia que é, de fato, possível mudar o caminho da humanidade e repensar todas as questões que englobam o que o Papa chama de ‘aumento do poder’, que nem sempre é necessariamente bom? 

Luiz Marques: Se antigamente havia uma disputa de perspectiva sobre qual modelo de sociedade seria melhor, se o socialismo ou o capitalismo, o século 21 nos trouxe uma situação completamente diferente. Temos que entender que não existe mais um mundo melhor. Estamos diante de um mundo necessariamente pior, pois já estamos condenados ao aquecimento de 1,5 a 2 graus Celsius nesse segundo quarto do século 21, e um planeta nesse nível de temperatura é necessariamente pior. É inevitável que nós mudemos. Como diz o Papa, temos o poder de nos aniquilar cada vez mais, mas temos também o poder de mudar, porque não se trata de um meteoro que está caindo como na época dos dinossauros. Somos nós que estamos produzindo isso, então temos a capacidade de mudar. 

Revista Casa Comum: Você avalia, então, que o Papa Francisco tem desempenhado esforços para espalhar sua mensagem para pessoas, por exemplo, que não seguem o catolicismo? 

Luiz Marques: O Papa não está defendendo os interesses de uma nação, mas os interesses da humanidade. Isso confere a ele uma força, uma autenticidade e autoridade moral que os representantes dos estados nacionais não têm. Ele é extraordinário por defender um ecumenismo muito grande com outras religiões. É uma mensagem que transcende os interesses do Vaticano. O grande esforço do Papa é transcender essa limitação, digamos assim, e falar com as outras religiões e, sobretudo, com os não religiosos. Eu convivo muito com pessoas que não têm religião e o Papa desfruta de um respeito imenso entre os não religiosos que eu nunca vi acontecer, apesar de ter antecedentes belíssimos. A minha grande esperança é que o seu sucessor continue a sua obra e que não haja regressão. Se tivermos um Papa que continue a obra de Francisco, acredito que há muita esperança, pois a igreja católica é uma instituição com dois mil anos e uma capacidade de falar para os não católicos. 

Revista Casa Comum: Estamos nos aproximando da COP28, que será realizada em Dubai, ao que o Papa cita vontade e coragem para efetuar mudanças necessárias e propostas por acordos estabelecidos nesses espaços. Quais são os papéis dessas Conferências?

Luiz Marques: Pessoalmente, acredito que quem não está na posição de um líder político e universal como o Papa tem quase a liberdade de desacreditar completamente da COP. Até agora ela não se mostrou capaz de fazer avançar o processo global. O artigo 2 da Convenção Quadro das Nações Unidas de Mudanças Climáticas diz que é preciso evitar uma interferência antrópica perigosa no sistema climático. Não se sabia muito bem ainda o que era isso, e somente na COP15, em 2009, chegou-se ao número de 2˚C de aquecimento como limite. Vamos levantar dois critérios. Primeiro: o que era necessário fazer para evitar chegar aos 2˚Cs? Diminuir as emissões de gás de efeito estufa. As emissões só aumentaram desde então. Segundo: se nós definimos que 2˚C é o limite a não ser ultrapassado, hoje a ciência em peso nos diz que esse patamar já é inevitável no segundo quarto do século 21. Então por esses dois critérios, nós podemos dizer que as COPs falharam e foram um fracasso monstruoso e completo. 

Dados alarmantes 
Setembro foi o mês mais quente (veja) já registrado na história, segundo a Organização Meteorológica Mundial (OMM), que também afirma que 2023 está se encaminhando para se tornar o ano mais quente (veja).

Ainda, anualmente a organização faz um prognóstico para os próximos cinco anos, intitulado: Atualização Global Anual para Decadal do Clima. Os resultados mais recentes não são animadores. 

A Organização estimou que há 66% de probabilidade (veja) de a média anual de aquecimento ultrapassar 1,5ºC entre 2023 e 2027, além de 98% de chance de um, dentre os próximos cinco anos, ser o mais quente desde o início dos registros das temperaturas globais.

“A cada um desses relatórios, a OMM afirma: ‘E as chances aumentam com o tempo’. Ou seja, em 2024, para a projeção até 2028, vai ser mais de 66% de probabilidade”, alerta Luiz.  

Revista Casa Comum: Com base na exortação, como mudar o paradigma de que a realidade não humana, ou seja, os recursos naturais, consistem em um mero recurso a serviço dos seres humanos? 

Luiz Marques: Acredito que a ideia de que a natureza não é recurso é a definição mais importante da Laudato si’, de que a natureza não está como um meio está para o seu fim, sendo o fim nós, seres humanos. Essa percepção não é apenas do Papa. É de muitas pessoas, mas nenhuma delas com o poder e a representatividade do Papa. Isso faz com que a Laudato si’ e a Laudate Deum sejam um grande passo à frente, porque pela primeira vez uma instituição do nível de uma igreja, como a igreja católica, reconhece essa questão. É a primeira vez na história da humanidade que nós temos uma afirmação como essa que transcende o antropocentrismo. E não por acaso o Papa Francisco se chama Francisco. São Francisco e Santo Antônio, que também foi franciscano, talvez sejam os dois grandes santos que tenham percebido que existe essa dimensão não antropocêntrica no cristianismo de forma geral. Isso é notável. Mas, ao mesmo tempo, essa é a barreira mais difícil de se superar, mentalmente falando. Existem muitas barreiras políticas e econômicas, mas superar a barreira mental de que nós, humanos, não estamos no centro do planeta e acabar com essa dicotomia humanos e natureza e pensar o ser humano como parte da natureza, é a grande revolução mental que define o mundo contemporâneo e um novo horizonte de autodefinição do ser humano. 

Revista Casa Comum: O documento valoriza esforços pessoais, que, sob um ponto de vista de um país, por exemplo, podem ser pequenos, mas que o Papa defende estarem criando “uma nova cultura”, como consumo consciente e tentativa de reduzir a poluição. Que efeito esses micropassos têm diante de um contexto tão complexo e desafiador? 

Luiz Marques: Existe uma continuidade muito grande entre o individual e o coletivo. São coisas que, embora diferentes, estão profundamente interligadas e são interdependentes. O coletivo se define por ser algo mais do que a soma dos indivíduos. Ele é um sistema político que tem que ser mudado em sua lógica, e isso passa pela transformação individual. Eu, por exemplo, deixei de comer carne, mas tenho uma enorme dificuldade nisso. Cada um deve fazer o máximo que pode, e esse máximo vai crescendo. Temos que trabalhar para aumentar nossa capacidade de renúncia, e isso é muito importante: achar que vamos mudar sem renúncia e sacrifício é um mundo de fantasia. Temos que renunciar a muitas coisas, porque temos uma pegada ecológica completamente acima da capacidade de carga do planeta. Então temos que diminuir. E quem pode diminuir? As grandes pegadas, e não as pequenas. Enquanto uma pessoa da classe média, eu tenho um nível de consumo que não tem nada a ver com uma pessoa que ganha um ou dois salários mínimos. Cabe muito mais a mim renunciar.

Revista Casa Comum: O Papa encerra a exortação com a citação: “Laudate Deum é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo.” Que mensagem a frase nos traz?

Luiz Marques: Quando achamos que somos capazes de gerir e administrar a biosfera, estamos nos colocando na posição de um ser divino. E não há nada mais grotesco do que achar que você é mais do que realmente é. Mesmo os cientistas que estão preocupados com a questão climática falam: ‘vamos retirar dióxido de carbono da atmosfera’. Isso é acreditar que somos capazes de gerir um processo de tal maneira complexo que toda a tentativa tem um risco de causar problemas ainda maiores do que imaginamos em nossa infantil pretensão de administradores do planeta. E não é apenas a questão ambiental. Temos a inteligência artificial, as guerras, toda essa maquinaria que está substituindo a força de trabalho, são várias questões. 

Mas o ponto central é o fato de que nós estamos nos definindo no planeta de uma maneira errada. A forma correta é: somos apenas uma espécie entre tantas outras, e somos dependentes delas. Não podemos prescindir dos insetos, por exemplo, porque eles polinizam as plantas que têm flores e 90% da vitamina C que nós precisamos ingerir provém de plantas com flores, que só podem existir porque existem insetos. Não podemos viver sem o funcionamento do ecossistema. Então a mensagem é: vamos parar de achar que somos Deus e começar a entender que somos uma peça de um sistema complexo do qual nós somos existencialmente dependentes.

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