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Publicado em

29/08/2023

O ensino social do papa francisco e a espiritualidade do cuidado



Por Pe. José Ivo Follmann sj*

Procissão durante a Festa do Dia do Pescador na Lagoa do Curralinho. Juazeiro, (BA), 2022. Foto: Thomas Bauer

Muitas vezes já se ouviram formulações com o seguinte teor: “a humanidade parece estar retrocedendo em seu processo civilizatório” ou “estamos perdendo o senso de humanidade”. A prepotência arrogante e autossuficiente de uns poucos vem assumindo formas sempre mais visíveis e descaradas. O descaso e a irresponsabilidade diante da dignidade do ser humano parecem sempre mais ostensivos, em muitas situações políticas, econômicas e sociais.

São irresponsabilidades patéticas e humanamente incompreensíveis, mas infelizmente, talvez, perversamente calculadas. Isto está demonstrado, principalmente, no acúmulo inominável da concentração de riquezas de uns poucos e na exclusão, no descarte e na morte da maioria dos mais sofridos. Também se tornaram ostensivas e assustadoras diversas manifestações extemporâneas de racismos, xenofobias e demais fobias preconceituosas e discriminatórias. Tudo isso em um contexto de violência crescente, ou mesmo, de guerras extemporâneas e sem explicação.

É, a rigor, o descuido para com a vida. Isto parece ter se tornado uma chaga incurável. É o descuido para com o ser humano em si; mas, também, para com todos os seres vivos e, especialmente, para com a própria “Mãe Terra”. Vivemos tempos que ameaçam levar de roldão os esforços gigantescos e as conquistas da humanidade, depois de séculos de sofrida construção civilizacional. Infelizmente o quadro que se desenha parece ser o quadro de aceleramento agudo de uma “cultura da indiferença” perante a vida, em todos os sentidos.

O Papa Francisco, colocando-se em profunda sintonia e diálogo com outras lideranças religiosas e humanitárias, tornou-se uma voz vigorosa diante de todo esse desmando da humanidade. A sua contribuição para o Ensino Social da Igreja, por exemplo, é vigorosa e nova, focando em uma “espiritualidade do cuidado” ou, talvez, num sentido mais amplo de apelo profético para o “cuidado da Casa Comum”. Isto está evidenciado sob diferentes aproximações, tanto no apelo por uma “Igreja em saída” no anúncio do evangelho no mundo atual (Evangelii Gaudium, 2013), quanto no convite para o paradigma da “ecologia integral” como caminho necessário nesse cuidado (Laudato Si’, 2015), e através do aceno profético para uma “fraternidade universal” e prática da amizade social (Fratelli tutti, 2020).

É urgente que um conhecimento novo, formas de engajamento novas e hábitos novos, iluminados por uma “espiritualidade do cuidado”, refletindo o ensino social cristão com os parâmetros referidos do Papa Francisco, sejam sempre mais afirmados para a superação da “cultura da indiferença” que, como uma doença silenciosa, vem matando a humanidade.

A espiritualidade, que hoje nos é solicitada, é uma “espiritualidade do cuidado”. É um convite para uma profunda disposição pessoal de busca dos melhores caminhos na construção de sociedades geradoras de vida; de nos refazermos em nossa capacidade de reconhecer o outro em sua dignidade; de nos indignarmos perante as desigualdades escandalosas e inaceitáveis e a situação desumana vivida por muitos irmãos e irmãs; de cuidarmos da vida e dos dons da criação, impelidos pelo amor a todas as formas de vida que pulsam neste planeta Terra, no presente, e que, a depender de nós, pulsarão no futuro.

Nos últimos anos, talvez em grande parte como resposta ao alerta com relação aos riscos impostos pela “cultura da indiferença”, ou como resultado do impacto da grave pandemia de Covid-19 sofrida, presenciamos a manifestação de muitos testemunhos individuais e grupais de reação importante contra os desmandos que acontecem. Entre outras iniciativas, foram se constituindo e reforçando, por exemplo, redes e iniciativas de educação popular para rearticular uma produção de conhecimento autêntica e democrática, fortalecendo novas práticas e hábitos. Testemunhamos muitas pessoas demonstrando extrema atenção e cuidado vigilante para que, nos tempos tenebrosos vividos, as coisas não desandassem de vez e o prejuízo fosse grande demais para a população.

Mesmo que a gravidade do impacto de toda degradação presenciada turve nossos horizontes, talvez possamos celebrar novos alentos para um tímido incremento na civilidade, no cuidado pelos outros, perceptível em certos comportamentos e nos espaços públicos. Trata-se de uma novidade que também se fez visível em algumas lideranças empresariais. Talvez sejam resultados da reação ao impacto da pandemia.

É importante povoar o nosso próprio habitat dessa consciência, refletindo-se tanto no cuidado e atenção às pessoas que conosco vivem e que nos procuram, como vigiando o bom uso de tudo, evitando desperdício e favorecendo reaproveitamentos. Que as crianças e os jovens que crescem em nosso meio possam beber de nossas vidas e de nosso testemunho, uma autêntica “cultura do cuidado” impulsionada pela “espiritualidade do cuidado”.

*Pe. José Ivo Follmann é jesuíta, sociólogo, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, membro do Instituto Humanitas Unisinos (IHU) e assessor de Extensão Universitária, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

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