Publicado em
19/08/2024
Construir protocolos e medidas de proteção pode estimular e fortalecer o processo de luta política por direitos no Brasil.
Por Letícia Queiroz, da Escola de Ativismo
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Ameaças, agressões, ataques, situações de risco de morte e exposições a algum tipo de vulnerabilidade física e psicológica. Esse é o cotidiano enfrentado por milhões de ativistas, comunicadores, defensores de direitos humanos e lideranças de comunidades originárias e tradicionais.
Em meio aos episódios de violência, algumas estratégias são importantes para a segurança integral de quem cumpre um papel essencial para o fortalecimento da democracia, a defesa de direitos e a proteção do meio ambiente e de modos de vida tradicionais.
O crescimento do campo conservador, da extrema direita e dos retrocessos no campo dos direitos humanos nos últimos anos fez crescer também o número de assassinatos, ameaças e incidentes de segurança envolvendo ativistas de diversas áreas. O foco é enfraquecer, despolitizar, deslegitimar, desqualificar e silenciar quem denuncia violações que atingem, principalmente, grupos em situação de vulnerabilidade.
Comunidades originárias e tradicionais estão entre os principais alvos. Conforme o último levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a violência no campo bateu recorde em 2023, quando 2.203 conflitos foram registrados. Entre as pessoas indígenas o número de assassinatos cresceu. Grande parte dos ataques estão relacionados à busca por regularização de territórios e a proibição da exploração de recursos naturais.
Fique por dentro
A Escola de Ativismo conta com três materiais que podem ajudar coletivos e indivíduos ameaçados:
> Guia para fazer uma avaliação de risco e adotar medidas de segurança;
> A Internet Também é Nosso Território – Dicas Essenciais da Escola de Ativismo para Proteção na Rede;
> Guia para Desenvolvimento de uma Avaliação de Risco e Medidas de Segurança.
Papel do Estado
O Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH), administrado pelo Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, promete oferecer proteção às pessoas que estejam em situação de risco, vulnerabilidade ou sofrendo ameaças em decorrência de sua atuação em defesa desses direitos.
O PPDDH é executado por meio de convênios, firmados voluntariamente entre a União e os Estados, quando da existência de Programas Estaduais. Atualmente, onze estados fazem parte do PPDDH e são responsáveis pela gestão técnica e política dos Programas Estaduais: Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Paraíba, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Nos estados em que não existe Programa Estadual, pessoas ameaçadas são acompanhadas por uma Equipe Técnica Federal.
A política, entretanto, pode não ser suficiente. Há registro de pessoas ameaçadas incluídas no programa que foram assassinadas, como é o caso de Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete. A liderança quilombola foi morta violentamente dentro do seu território.
Mãe Bernadete havia perdido o filho, Binho do Quilombo, de forma semelhante. Quando assassinada, era porta-voz de sua comunidade, integrava a coordenação da CONAQ – Coordenação Nacional de Articulação de Comunidades Negras Rurais Quilombolas e exigia justiça pelo assassinato do filho.
Estratégias diversas de proteção
A responsabilidade da garantia de segurança às vítimas é do Estado, mas com tantas falhas, é importante que as pessoas que vivem em contextos de vulnerabilidade também se auto protejam e participem de todo o processo da elaboração da sua própria proteção. Afinal, é quem assume papel de liderança e atua na linha de frente de diversas lutas que se expõe a múltiplos riscos.
Por isso, é necessário pensar estratégias e organizar medidas que possibilitem uma atuação com o maior nível de segurança possível para defensoras e defensores de direitos humanos e também para aqueles à sua volta, considerando cuidados digitais, mecanismos diversos e alguns comportamentos diários.
Ter um plano institucional de segurança pode ser outra forma de cuidado. A pessoa ameaçada tem direito de ser protegida quando atua para uma organização da sociedade civil e é dever do Estado garantir essa proteção.
Lideranças em situação de ameaça, seja ela direta ou indireta, precisam fazer registros formais, uma vez que essa é tipificada como crime no código penal brasileiro. O Boletim de Ocorrência (B.O), realizado em delegacias da Polícia Civil, comprova que uma situação de violência aconteceu e responsabiliza e obriga o Estado a agir. Se a vítima não confiar na polícia local, a recomendação é fazer o B.O em uma cidade vizinha, sempre que possível, acompanhado de um advogado(a) popular.
Comunicação e cuidados digitais
A comunicação é uma ferramenta importante para lideranças e ativistas, mas é necessário compreender que há situações que a exposição ajuda e outras que transformam as pessoas em alvo.
Uma liderança que está em perigo precisa analisar quando é melhor ficar mais retraída, inclusive da mídia ou redes sociais, para sair do foco. Em alguns casos, o mais indicado é deixar de dar entrevistas, de aparecer como liderança principal de determinadas lutas ou embates e evitar aparecer em fotografias.
É preciso tomar cuidados digitais sempre que utilizar a internet. O uso de senhas fortes, por exemplo, é essencial. Elas devem ser longas, com ícones e sem dados pessoais. Aplicativos seguros para a troca de mensagens também é regra para quem está em perigo. Existem opções, que não são as mais utilizadas, como o Signal, que tem como prioridade a privacidade dos usuários. O uso da tecnologia VPN, sigla para Rede Virtual Privada (do inglês, Virtual Private Network), por exemplo, aumenta a proteção e privacidade online e é recomendada para ativistas de diferentes áreas de atuação.
Os celulares são mais vulneráveis a ataques e invasões e é preciso ter cuidado com o que eles podem registrar. Ao falar assuntos sensíveis, é importante retirar dispositivos (telefones e computadores) de perto. Todos os aplicativos instalados devem ser configurados para não acessarem o microfone em tempo integral. Esse recurso deve ser habilitado apenas durante o seu uso.
Camadas de proteção
Considere que cada medida de proteção adotada, física ou operacional, é uma camada a mais que pode reduzir as vulnerabilidades da pessoa ameaçada ou ainda dificultar uma possível tentativa de violência por quem realiza a ameaça.
Tomando como exemplo uma casa, certamente nenhuma porta ou janela será suficiente para barrar alguém que esteja determinado a arrombá-la, mas a porta com tranca servirá para atrasar a pessoa, vai forçá-la a fazer algum barulho e pode dar tempo para alguma reação. Na mesma lógica, pode se incluir o uso de cães para alarde ou mesmo proteção, muros e cercas dos mais variados tipos, sistemas de câmeras de vigilância, alarmes sonoros simples (uma garrafa atrás de uma porta) ou sofisticados e assim por diante.
Estratégias diárias
Alguns cuidados diários devem ser seguidos pelas pessoas sob ameaça, como não andar sozinha, mudar sempre de rota e não ter uma rotina para dificultar qualquer tentativa de estabelecer um padrão de suas atividades e planejarem um possível ataque. Sair e chegar em casa ou no escritório sempre nos mesmos dias e horários, além de frequentar sempre os mesmos lugares, devem ser hábitos evitados nesse contexto.
Mudar de endereço, de cidade ou estado por um período pode ser necessário e é um recurso comumente utilizado, apesar de uma série de implicações, como deixar a família e dar uma pausa na luta e nos cuidados com o território.
Atenção redobrada pode salvar vidas. Sob ameaça, é prudente estar sempre atento a todos acontecimentos ou mesmo em sinais de que algo não está na normalidade ou pode vir a acontecer, principalmente porque os ataques violentos algumas vezes não seguem um padrão. Alguns grupos têm feito registros posteriores de incidentes, ameaças e ataques e, assim, conseguem debater e partilhar entre outras pessoas como está a situação baseada em fatos.
Incidentes de segurança, que são aqueles acontecimentos que deixam dúvidas, também merecem atenção. Alguns exemplos: uma visita de pessoas desconhecidas e/ou de fora da comunidade perguntando pela liderança, um carro que passa a seguir seus caminhos ou a rondar a casa, a tentativa ou mesmo o roubo do celular, uma invasão ao escritório onde levam pouca coisa.
Além de maior atenção, da possibilidade de fazer e analisar registros formais e mudança de rotinas, quando uma pessoa está sob forte risco devido a sua atuação política e/ou da defesa de direitos, é recomendado adotar um conjunto de práticas que levam em conta o princípio da precaução. Por exemplo, seus deslocamentos, mesmo dentro da cidade ou de seu território, devem ser de conhecimento de pessoas de confiança que sabem onde, como, quais horários e com quem a pessoa estará. Monitorar os deslocamentos e dar pronto apoio quando necessário é fundamental para diminuir riscos e até salvar vidas.
Ameaças, diretas ou indiretas, configuram um crime e é importante não normalizar a violência. Algumas pessoas recebem ameaças com tanta frequência que, com o tempo, deixam de levar a sério. As ameaças devem ser analisadas e todas elas levadas à polícia.
Proteção coletiva
A proteção não é uma prática individual e isolada de cada defensor, defensora ou liderança, mas um conjunto de ações também executadas por outras pessoas. E, neste sentido, a segurança em rede tende a ser mais efetiva. Diversos saberes locais e pessoais já são colocados em prática intuitivamente por coletivos ativistas. É necessário valorizar o que já existe nos territórios e comunidades.
Uma ação conjunta, que envolve o movimento, um círculo mais próximos de pessoas ou até a comunidade proporciona proteção e reduz a pressão sobre uma única liderança. Quanto mais conexão com as forças coletivas, sejam elas públicas, privadas ou da sociedade civil organizada, mais a proteção se estrutura a favor da integralidade do cuidado e a autonomia de pessoas ou grupos.
Reconhecer a insuficiência do Estado Brasileiro, construir estratégias individuais e coletivas de proteção, compartilhar boas experiências e apoiar movimentos de resistência fortalecem a luta de lideranças e instituições.
Lembrando sempre que esses são apenas alguns pontos e que a prioridade absoluta de toda luta passa pela segurança e pela vida dos defensores/as e ativistas.
*Esse texto foi escrito com colaboração de pessoas da Escola de Ativismo que atuam na área de segurança e proteção física/pessoal e operacional.
Segundo a Pastoral da Terra, 218 pessoas foram ameaçadas de morte no campo brasileiro em 2023. Já a Terra de Direitos e a Justiça Global contabilizam mais de 1.100 casos de violência contra defensores de direitos humanos e 169 assassinatos nos últimos anos.
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