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Publicado em

29/05/2025

As boas palavras: como o acesso aos livros e à literatura pode apoiar a formação e a atuação cidadã de crianças e jovens  

Experiências coletivas de leitura da infância até a fase adulta mostram potencial da palavra escrita em temáticas sociais, como racismo, pertencimento, protagonismo, bem-estar, saúde mental e outras.

Por Maria Victória Oliveira

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Publicação de livros pelo Sarau da Brasa. São Paulo (SP). Foto: Sonia Bischain

Que atire a primeira pedra quem nunca abandonou um livro da metade, dormiu no meio de um capítulo ou consultou algum resumo online de uma obra sugerida pela escola ou na faculdade. Muitas pessoas enfrentam verdadeiras dificuldades na hora de se dedicar à leitura. Mas, a realidade é que, quando se fala sobre livros, um ponto central é a construção do hábito de ler, seja no meio físico ou digital. 

De acordo com a 6ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, uma iniciativa do Instituto Pró Livro (IPL), o Brasil contava, em 2024, com 53% de sua população como ‘não leitora’, isto é, aqueles que declararam não ter lido nenhum livro, ou parte de um livro, nos últimos três meses que antecederam o levantamento. Do outro lado, são cerca de 93,4 milhões de leitores no país, quase sete milhões de pessoas a menos do índice registrado em 2019, de 100,1 milhões de leitores. 

Realizada com mais de 5.500 pessoas, a partir dos cinco anos de idade, alfabetizadas ou não, a pesquisa preocupa por mostrar que o Brasil está longe de ser considerado um país leitor. As cinco principais razões apontadas entre os não leitores entrevistados para não ter lido nos últimos três meses foram: falta de tempo, não gostar de ler, não ter paciência para ler, porque prefere outras atividades e porque tem dificuldade para ler. 

53% da população brasileira é não leitora: que declararam não ter lido nenhum livro, ou parte de um livro, nos últimos três meses

Ao mesmo tempo, quando questionadas sobre o que gostam de fazer em seu tempo livre, as seis respostas com maior percentual estão, de alguma forma, relacionadas à internet e ao consumo audiovisual: usar a internet (78%), usar WhatsApp ou Telegram (71%), assistir televisão (60%), escutar música ou rádio (57%), assistir vídeos ou filmes em casa (53%), usar Facebook, Twitter (X) ou Instagram (49%). 

Já o Panorama do Consumo de Livros, uma pesquisa publicada em janeiro deste ano, iniciativa da Câmara Brasileira do Livro (CBL) realizada pela Nielsen BookData, afirma que apenas 16% da população com mais de 18 anos comprou algum livro nos últimos meses, o que significa que 84% dos adultos brasileiros não compraram nenhuma obra no último ano, apesar de a maioria desses não leitores (61%) afirmar que a leitura é uma atividade muito importante.

Incentivar o hábito da leitura desde cedo pode ser um caminho promissor para a formação de jovens e adultos leitores. Entretanto, considerando que crianças e adolescentes passam cada vez mais tempo online, essa missão pode ser um desafio. Segundo a pesquisa Digital 2025 – Brazil, da plataforma DataReportal, 183 milhões de pessoas usavam a internet no início de 2025 (86,2% da população). Dessas, 144 milhões (67,8%) estão nas redes sociais

Foi pensando em conectar dois mundos, a leitura e o audiovisual, que Vanessa Martins, mestre e doutora em comunicação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e professora de Cinema e Animação da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG) criou o Clube de Leitura Audiovisual. A experiência, inclusive, foi sistematizada em uma cartilha homônima, disponível online gratuitamente. 

Possibilitar o despertar do gosto pela leitura literária; favorecer a democratização da leitura a partir de experiências em diferentes meios; auxiliar na utilização e no entendimento de diferentes tipos de linguagem – oral, escrita, impressa, audiovisual e midiática -; e contribuir com o desenvolvimento de pensamento crítico sobre os conteúdos midiáticos que atravessam o cotidiano diariamente foram apenas alguns objetivos da proposta. 

Foto: Arquivo pessoal Vanessa Martins

Para isso, foi criado um clube de leitura em duas escolas da rede pública com alunos do Ensino Médio: uma em Cataguases e outra em Juiz de Fora, ambas em Minas Gerais. Denominado Biblioteca Azul, o clube de leitura apostou no audiovisual como porta de entrada para despertar o interesse dos jovens para a leitura. A saga Harry Potter foi escolhida para ser trabalhada inicialmente. Vanessa explica que, entre os recursos audiovisuais utilizados, estava o uso de um óculos de realidade virtual para que os alunos pudessem conhecer o Castelo de Hogwarts, por exemplo, onde se passa grande parte da história. As turmas também tiveram acesso a um jogo online gratuito para conhecer mais sobre o quadribol, esporte fictício da obra. 

Foto: Arquivo pessoal Vanessa Martins

Vanessa reforça, ainda, que a proposta foi elaborada de forma conjunta com os estudantes, que trocaram ideias, pensamentos e vivências, em um movimento de refletir sobre questões atuais presentes na mídia e também de produzir novos conteúdos a partir dos aprendizados. 

Nesse sentido, foram promovidas oficinas de criação de narrativas audiovisuais e processos de animação, no qual os estudantes tiveram contato com a técnica de rotoscopia (desenho de um movimento, quadro a quadro, que dá origem a uma animação). “Selecionamos trechos audiovisuais das narrativas que lemos e colorimos, que é a fase manual da rotoscopia. Foi um processo muito grande de reflexão da própria condição social e de retomar os temas que foram debatidos. No final, isso virou um produto audiovisual. Então, acredito que tem três instâncias do pensamento crítico: no consumo, na análise da narrativa e, depois, em uma forma de expressão”, analisa Vanessa. 

O potencial dos clubes de leitura

O clube de leitura audiovisual Biblioteca Azul foi, na verdade, inspirado por outras experiências que Vanessa teve, como o estudo, durante seu mestrado, de um clube de leitura virtual sobre Harry Potter que acontecia no antigo Twitter (atual X), e também a própria criação de um clube de leitura e do podcast Hogwarts, Mil Histórias sobre o universo do menino bruxo. 

A proximidade com esse tipo de iniciativa ensinou à Vanessa o poder das vivências coletivas que envolvem a literatura. “Tanto em ambientes online quanto em encontros presenciais, eu acredito que a potência do clube de leitura não está apenas no desenvolvimento da habilidade de leitura literária, mas no potencial de criar afetividade e laços sociais entre os leitores, de sermos mais sociáveis, trocarmos vivências e, principalmente, [de realizar] uma mudança interior.” 

A educadora compartilha relatos recebidos de participantes do clube Hogwarts, Mil Histórias, que dividiram que o clube serviu como um ‘refúgio’ nos momentos mais agudos da pandemia de Covid-19. 

O acesso à literatura como porta para outras trajetórias 

O que o livro, a literatura, a arte e a cultura têm a ver com discussões sociais e experiências vividas coletivamente, como compartilha Vanessa? Tudo, como afirma Bruninho Souza. “A palavra é uma ferramenta primordial e muito poderosa para construir uma sociedade mais justa, igualitária e equânime para todos.” 

Pedagogo, ativista pela educação e cofundador do Coletivo Encrespad@s, que se dedica a promover uma educação antirracista, Bruninho defende a importância de que todas as pessoas, sobretudo crianças e jovens, tenham acesso ao que ele chama de ‘boas palavras’: os livros e uma literatura engajada. 

Bruninho Souza. Foto: wfprod

Hoje com 30 anos, Bruninho conheceu a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura, na zona sul de São Paulo, por acaso, ainda no Ensino Médio, e passou a frequentar regularmente. Para ele, foi transformador ter contato com outras histórias e com autores e autoras negros, que ajudaram na construção de sua própria identidade enquanto jovem negro periférico. Tempos depois, foi convidado a se tornar também um mediador de leitura, cargo que carrega orgulhosamente até hoje. 

“Encontrar no texto essas outras possibilidades imagéticas e de narrativas, contribui para que cada vez mais o leitor, o mediador de leitura, as pessoas que têm contato com essa cultura letrada, se coloquem como atores e atrizes ativos nas mudanças que querem ver no mundo. E as mudanças passam também pelas escolhas das palavras.” 

Guardar para si todo esse conhecimento e transformação promovidos pelo acesso à literatura e às boas palavras não estava nos planos de Bruninho. Por isso, ajudou a criar o Coletivo Encrespad@s, formado atualmente por 13 jovens educadores negros, a maioria pedagogos, de diferentes periferias da cidade de São Paulo, que, em 2025 completa 10 anos de existência. 

Criado em um contexto de escola pública, o Coletivo se dedica a pensar a educação antirracista no chão da escola. “Às vezes, nas nossas casas, as nossas mães falavam que nós éramos lindos e incríveis, mas quando chegava na escola, tinha gente falando que nosso cabelo ou a nossa cor não era legal. Mas ao mesmo tempo, encontramos tantos jovens querendo conversar sobre assuntos da contemporaneidade, tantos professores engajados, que percebemos que tinha muita gente bacana querendo pensar questões étnico-raciais a partir de uma perspectiva que contribuísse para mudança desse ambiente [escolar]”.

Bruninho conta que, depois de um tempo, o Coletivo percebeu que já tinha desenvolvido muitas metodologias para trabalhar com gestores, professores, jovens e outras organizações, mas ainda não havia olhado para a questão das infâncias. O pedagogo comenta sobre como pesquisas, dados e indicadores têm mostrado que o racismo também está muito presente entre bebês e crianças, seja a partir de frases direta ou indiretamente racistas direcionadas a crianças negras ou pela descoberta de pesquisadores de que crianças negras são menos acalentadas por educadores na Educação Infantil do que as brancas (saiba mais). 

Foi então que o Coletivo decidiu criar o projeto Encrespadinhos. “A gente se perguntou: ‘O que aconteceria se a gente ficasse numa escola durante pelo menos dois anos, lendo literatura negra afetiva – um conceito da professora Sonia Rosa, que é uma literatura onde personagens negros têm histórias complexas, com suas família, seus medos e desafios -, para crianças pequenas, tanto negras como não negras?’”, reflete Bruninho. 

A proposta tem acontecido e está indo para seu terceiro ano na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Vargem Grande II. Trecho da iniciativa foi retratado no programa Boas Práticas Escolares, da TV Cultura. “Tem sido incrível perceber toda uma comunidade escolar se transformando a partir de livros de literatura negra afetiva e como ela tem contribuído para que essas crianças valorizem a sua própria identidade, reconheçam as diferenças, mas, ao mesmo tempo, vejam como potência, e não como desigualdade.”  

Ponto importante da iniciativa é a parceria com a Companhia das Letras, que possibilitou a escolha, por conta da equipe do Coletivo, de 50 obras: 30 dedicadas para a leitura com as escritas e outros 20 livros dedicados para a formação de profissionais da educação da escola em questões étnico-raciais. 

O Coletivo Encrespad@s também desenvolve diferentes iniciativas que visam promover espaços seguros de escuta e troca com as múltiplas juventudes. É o exemplo do Percurso de Formação de Jovens Lideranças Periféricas, uma jornada que vai reunir, durante oito meses, jovens do Jardim São Luís e Parelheiros em encontros formativos que vão terminar com uma missão: colocar em prática uma transformação real nas suas comunidades com apoio de um recurso pílula. A iniciativa tem apoio da 9ª edição do Programa de Fomento à Cultura da Periferia, da Secretaria de Cultura de São Paulo.

Para Bruninho, a literatura e a palavra escrita podem ser bons caminhos para abordar assuntos difíceis com grupos de jovens, adolescentes ou crianças. “Eu acho que o livro pode ser ponte entre um interlocutor e um ouvinte, entre os dilemas e as complexidades que existem na sociedade para com essas juventudes. Ele pode ser esse objeto que vai tecendo um caminho para construirmos, juntos, cada vez mais respostas coletivas.” 

O conceito de coletividade, inclusive, é caro ao pedagogo, que reforça a importância de um pensamento conjunto para a construção de um outro futuro possível. 

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