Publicado em
17/05/2022
Historiador e mobilizador social chama atenção para a necessidade de “humanizar o humano” e recuperar a capacidade de sonhar
Por Daniel Giovanaz e Elvis Marques
Gestor de políticas públicas, historiador, escritor, mobilizador social e fundador do Instituto Casa Comum, Célio Turino foi um dos responsáveis pela implementação dos pontos de cultura que se espalharam por mais de 3 mil comunidades entre 2004 e 2010.
Após deixar o Governo Federal, Turino viajou por dezenas de países para difundir aquelas experiências. No percurso, estabeleceu relações com o Papa Francisco, com quem compartilha o interesse em promover a “cultura do encontro” – construção de pontes de diálogo e de entendimento a partir das diversidades.
Em maio de 2019, o pontífice convocou jovens empreendedores e transformadores sociais do mundo para um “compromisso no espírito de São Francisco, a fim de tornar a economia de hoje e de amanhã justa, sustentável e inclusiva.” A partir desse chamado, o brasileiro foi um dos idealizadores da Articulação pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC), que inclui uma referência ao nome de Santa Clara de Assis e propõe uma economia baseada na acolhida, na solidariedade e no afeto.
Em conversa com a Revista Casa Comum, Turino ressalta as aproximações entre a Encíclica Laudato Sí, documento publicado pelo Papa em 2015, a filosofia africana Ubuntu e o conceito de Bem Viver dos povos originários da América Latina. O autor do livro Por todos os caminhos – pontos de cultura na América Latina defende a valorização desses modos de vida e interpretação do mundo como caminho para superar o individualismo e os retrocessos políticos, econômicos, sociais e ambientais.
Confira a entrevista:
A Encíclica Laudato Sí, escrita pelo Papa Francisco, marca a sua posição em diversas pautas, como o cuidado com a Casa Comum, o planeta. Sete anos após sua publicação, diversas obras, análises e artigos têm se baseado nesse conceito. O que esse chamado do Papa representa para você?
Célio Turino: Criamos o Instituto Casa Comum em função desse processo, inspirados pela Laudato Sí, pela ideia do planeta como uma casa de todos, e a partir de relações que estabelecemos diretamente com o Papa Francisco.
Trabalho há mais de 40 anos na formulação de políticas públicas. Estive como secretário da Cidadania Cultural, no Ministério da Cultura, de 2004 a 2010. Naquele período, desenvolvi os pontos de cultura e o programa Cultura Viva, que chegou a 3,5 mil comunidades no Brasil, com 8 a 9 milhões de pessoas envolvidas.
A partir de 2011, comecei a circular pela América Latina para difundir essa ideia. Ela chegou com muita força na Argentina, sobretudo nas periferias. Hoje há mais de mil pontos de cultura no país.
O Papa conheceu essa experiência e, em 2015, um pouco depois da Laudato Sí, me convidou para ir ao Vaticano. Há uma identidade muito grande entre o conceito dos pontos de cultura e o conceito que o Papa trabalha, da cultura do encontro.
Estabelecemos, então, várias ações em comum, via programa Scholas Ocurrentes [Escolas do Encontro, em latim] criado pelo Papa. Em função desses acordos e ações pela América Latina, criamos o Instituto Casa Comum. Hoje trabalhamos com a produção de podcasts e vídeos junto com o Scholas Ocurrentes.
A ideia de Casa Comum está muito presente entre os povos ancestrais ameríndios: é o conceito do Bem Viver – no idioma guarani, Teko Porã, “o modo bom de viver na casa” –, fundamental para a sobrevivência da humanidade no planeta.
O planeta sobrevive sem a humanidade, mas a humanidade não sobrevive sem o planeta. Se não houver uma compreensão profunda do significado do que é viver em uma Casa Comum, ameaçaremos a existência da nossa espécie e das demais.
A Encíclica do Papa Francisco ressoou muito nas organizações de base, nos movimentos, nas igrejas, enfim, em todos os campos. Como você avalia a aderência desse documento e de seus conceitos na sociedade?
Célio Turino: Vejo que tem avançado a consciência planetária, e a Igreja Católica tem um papel importante, mas alguns setores estão capturados por uma cultura tradicionalista, que fomenta muito ódio.
Quando o Papa propõe a “Igreja em saída”, está se referindo a uma Igreja que dialoga com o povo, de braços abertos.
Quando se fala em Casa Comum, há que se compreender que os povos originários de todo o continente [americano], do Alasca até a Terra do Fogo, praticam isso há milênios.
A ideia do Bem Viver se aproxima muito à da Casa Comum, assim como a ideia de Ubuntu, de matriz africana: a humanidade de uma pessoa só se realiza na relação com a humanidade da comunidade. Isso precisa ser incorporado. O que a gente propõe é que a Igreja faça esse diálogo em igualdade com outras filosofias e pensamentos.
O Brasil vive o enfraquecimento dos conselhos nacionais e dos espaços institucionais de participação da sociedade civil na construção e gestão de políticas públicas. Quais impactos desse processo já são perceptíveis?
Célio Turino: É uma regressão muito grande. Houve 72 conferências nacionais temáticas entre 2003 e 2010. Eu participei do encaminhamento de algumas. A última de Cultura foi em 2010, com a participação de 200 mil pessoas em 2 mil municípios do Brasil. Isso se deu nas mais diversas áreas e foi uma marca importante para a democratização do país.
Essas iniciativas foram perdendo fôlego a partir de 2011, com o impeachment da presidenta Dilma (PT). Houve também uma regressão, que se consolidou em 2019.
Nenhum retrocesso ocorre de uma única vez. O desfazimento dos conselhos e das conferências que mencionei retirou a participação popular para consolidar os interesses dos mesmos grupos que governam o país desde o tempo das capitanias hereditárias – associados a outros grupos, vinculados ao crime, garimpo e desmatamento ilegal.
Por outro lado, o Brasil tem uma tradição de participação popular muito consistente, que começou a ser retomada no final dos anos 1970.
O Sistema Único de Saúde (SUS), por exemplo, é resultado de um processo de 40 anos de participação popular, de movimentos populares de saúde. Agora, que o país teve que enfrentar a pandemia, o SUS se mostrou capaz de dar respostas – por mais dificuldades que houvesse do ponto de vista da condução dos governos.
Teríamos o dobro de mortes, ou mais, caso não houvesse a ação decidida de profissionais de saúde, agentes comunitários, unidades espalhadas por todos os cantos do país, em favelas, cidades pequenas, aldeias indígenas.
Como você avalia o atual momento do país e do mundo?
Célio Turino: O mundo passa por uma fase de totalitarismo neoliberal. É o “pensamento único”, que foi se impondo desde os anos 1990, e hoje se revela de forma muito intensa.
Na América Latina e no Brasil, em particular, enquanto havia o avanço do neoliberalismo, também houve resistência, formando os chamados governos progressistas ou neodesenvolvimentistas, que abriram espaços de participação popular.
Isso se deu aqui, na Bolívia, na Argentina, em muitos países, mas os oligarcas do mundo não admitem esse espaço amplo de pluriversidade de opiniões, de participação social, e agiram para liquidar essas possibilidades.
Vivemos uma nova fase de totalitarismo. Não é aquela ditadura escancarada, mas impõe pensamento, uma forma de ser e de interpretar do mundo, que é totalmente mercantilizada. Precisamos recuperar o que o Papa Francisco chama de economia com alma. O grande desafio é recuperar a alma humana, estabelecer relações econômicas, sociais, culturais e educacionais de outra forma, humanizando o ser humano.
O desafio para as pessoas que pensam em uma Casa Comum, que querem humanizar o humano, é o de recuperar esse espaço da política para as relações humanas e para a defesa do planeta.
Vivemos um processo de desmonte das políticas públicas em várias áreas. Quais você considera as perdas mais importantes e quais políticas em vigor hoje precisam ser revistas ou reestruturadas para ampliar o acesso a direitos?
Célio Turino: De imediato, as reformas trabalhista e previdenciária. O que se prometia era gerar empregos, mas o resultado foi o aumento do desemprego e da precarização do trabalho. Hoje, as pessoas têm mais dificuldade de se aposentar e se aposentam com um salário mínimo – não muito além disso.
Não há nenhum outro país que adote um “Teto de Gastos” como o do Brasil. Note que esse teto exclui o dinheiro que vai para os bancos. São medidas absolutamente prementes. Precisamos de uma revogação dessas reformas.
Em políticas públicas, nós tínhamos, por exemplo, o Mais Médicos, que enviou profissionais de saúde aos municípios mais distantes, onde médicos brasileiros não queriam ir.
Algumas pessoas eram contra a vinda de profissionais de fora para atender indígenas, moradores de municípios onde não havia médicos. Depois que eles foram embora, os médicos brasileiros não ocuparam o lugar deles. Em torno de 30 milhões de pessoas ficaram sem assistência.
Por outro lado, há avanços. A aprovação da Lei Aldir Blanc conseguiu mobilizar grande volume de recursos, com aplicação de forma descentralizada, em 4,6 mil municípios. Isso permitiu que o setor da Cultura conseguisse atravessar este momento de forma um pouco menos pesada. Houve a preservação de cerca de 400 mil postos de trabalho a partir dessa lei.
Isso demonstra que, mesmo em tempos de profundo retrocesso, é possível haver reação.
Após viajar por várias partes do Brasil, quais você considera os principais desafios para fortalecer uma articulação nacional dos movimentos sociais? Como aproveitar essa diversidade de culturas, de modos de vida, para potencializar as ações por garantia de direitos?
Célio Turino: Em seis anos, estive em 600 comunidades no Brasil. Basicamente, em favelas, aldeias indígenas e pequenos municípios. Estive na Aldeia Apiwtxa, subindo o rio Amônia, em Marechal Thaumaturgo (AC). Estive no Xingu, cinco vezes na favela do Pirambu, em Fortaleza, e assim por diante. Depois de 2011, viajei pela América Latina, do México à Argentina, passando por 17 países.
Nós só vamos conseguir superar nossos problemas quando o povo perceber a potência que tem. Normalmente, as ações feitas nas periferias se baseiam em uma ideia de que o povo é carente, necessita de auxílio. É claro que isso é importante, mas o povo é potente.
A solução dos problemas de um povo, em qualquer lugar do mundo, só pode vir do próprio povo. O desafio está em localizar essas potências, essas capacidades transformadoras, e fazer com que elas se articulem em rede.
O Instituto Casa Comum tem se dedicado a produzir podcasts sobre filosofia africana, a partir das vozes das mulheres; cultura brasileira de raiz, a partir do Nordeste. Porque um povo que não gosta de si, que não gosta de olhar para si, sempre será escravizado, dominado. Essa é a grande estratégia do colonialismo.
O que a gente precisa fazer é criar meios para que o povo se perceba, descubra a força que tem a partir da sua beleza e, aí sim, comece a mudar as coisas. Só que isso tem que ser mais rápido do que antes.
Há alguns anos, a gente dizia que era necessária uma paciência histórica. Hoje, não é mais possível. Estamos na iminência de um colapso climático, vemos a guerra na Ucrânia, dos Estados Unidos contra a Rússia, e tudo isso pode levar a desgraças nunca antes imaginadas. As pessoas precisam compreender que é necessário incorporar o conceito da urgência histórica, não mais da paciência histórica.
O Brasil sempre foi uma referência para o mundo, e precisa recuperar esse papel. A gente precisa voltar a perceber uma característica do nosso país, que é juntar mil povos em um. A gente tem que aprender a habitar esse lugar, como tem que aprender a habitar o mundo.
Com um olhar para o futuro, quais desafios ainda presentes teremos de enfrentar?
Célio Turino: A mais difícil de enfrentar é a que está na cabeça do povo. Apesar de tudo que tem ocorrido no país – desamparo, negacionismo, vínculo com crime organizado –, o atual governo continua tendo uma base social considerável. Isso significa que há aderência a essas ideias.
Precisaremos de uma “anamnese social”, um diagnóstico do povo brasileiro, de forma intensa, afetuosa e inteligente, para identificar os pontos de ódio, rancor e ressentimento. Esse é o maior desafio.
As outras medidas podem ser revertidas. Penso que o correto seria a revogação de todas as medidas regressivas que vem ocorrendo. Até os ministros do Supremo [Tribunal Federal] reconhecem que não houve crime de responsabilidade que justificasse o impeachment [em 2016]. Então, as medidas tomadas depois foram ilegais e precisam ser revogadas.
Isso não significa manter a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) como estava, até porque ela foi modificada várias vezes desde 1942. É necessário incorporar o teletrabalho e o trabalho por aplicativo. A tecnologia, quando dissociada da ética humana, é escravizadora. Não é correto ter milhões de jovens se acidentando de moto ou morrendo enquanto trabalham em aplicativos de entrega. Eles precisam ter alguma garantia, salário mínimo, direito à aposentadoria. Se não, a gente volta ao horror do século XIX.
É necessário pensar no fim do capitalismo, mas sem uma visão binária. Superar o capitalismo não significa ter um modelo igual ao do socialismo do século XX. Se a gente procurar outras possibilidades, de uma vida mais humana, mais comunitária, a partir dos princípios do Bem Viver, da Casa Comum, do Ubuntu, a gente vai conseguir ter uma vida melhor.
Mesmo na pandemia, as pessoas se ajudaram, com economia de vizinhança, um comprando do outro, redes de solidariedade popular. Esse é um caminho alternativo ao caminho capitalista.
O que você recomendaria a quem está preocupado com a garantia dos direitos humanos no Brasil, mas ainda não faz parte de coletivos, organizações e movimentos sociais? Como as pessoas podem atuar, como indivíduos, e qual a importância da organização coletiva?
Célio Turino: Tem um verso do poema “A Rosa do Povo”, do Carlos Drummond de Andrade, que eu gosto muito. Diz assim: “São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto.”
Penso que o primeiro passo é não se deixar coisificar, não entrar nesse mundo do consumismo, individualismo, hedonismo e da competição a qualquer custo.
Um segundo passo é ter uma postura diferenciada em relação ao planeta, avaliar como a gente pode mudar nossas atitudes aqui e agora: desde separar resíduos até reduzir o consumo de carne, ter uma vida mais frugal, sem consumismo.
Terceiro, olhar com mais consciência para o ambiente político, ter mais responsabilidade no voto, perceber a implicação de suas decisões, se informar melhor, construir candidaturas melhores, e não olhar só para a eleição presidencial.
O chamado campo progressista tem de 120 a 140 votos [na Câmara dos Deputados]. Essa bancada precisa ser ampliada, mas não adianta renovar tudo. É preciso uma diversidade complementar, que junte representatividade e renovação com experiência e capacidade de articulação.
Qual o caminho para esperançar o futuro, diante de retrocessos?
Célio Turino: A capacidade de sonhar. Para isso, precisamos de contatos intergeracionais. O mundo, nos últimos tempos, segregou muito as pessoas, e isso trouxe muito desamparo. Vejo que a juventude está muito perdida, sem capacidade de sonhar e esperançar.
Chegamos até aqui, e o Brasil teve muitos avanços, em função de períodos de sonhos e esperanças. Os últimos 40 anos foram intensos, com muita transformação. De 1970 a 1980, falar em posto de saúde, sistema público de saúde, era “coisa de comunista”. Pessoas morreram para defender isso. Sem conexão entre as gerações, as pessoas perdem a dimensão disso.
Precisamos perseverar. Primeiro, por necessidade, porque se não a vida vai piorar, mas também porque o mundo tem que ser bom e justo para todos. Cabemos todos neste planeta – nós, humanos, e outros seres também, que estão padecendo por decisões nossas.
>> Acesse os podcasts e documentários do Instituto Casa Comum
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