NOTÍCIAS >

Papo reto

Publicado em

24/08/2022

Deslegitimação do processo eleitoral de um presidente é um movimento autoritário

Especialista em comunicação e ciência política, está à frente de uma rede de organizações em defesa da democracia, que congrega mais de 200 membros
Por Elvis Marques

“Em breve teremos eleições gerais no Brasil, as mais desafiadoras da nossa história recente”, destaca o manifesto do Pacto pela Democracia, criado após as eleições de 2018, e sob coordenação executiva de Flávia Pellegrino. Em entrevista concedida à Revista Casa Comum, a mestre em Ciências Políticas e Estudos Latino-americanos pela Université Sorbonne Nouvelle apresenta elementos para a criação da rede de organizações da sociedade civil e elenca riscos à jovem democracia brasileira.

Não apenas entidades e órgãos nacionais estão preocupados com o regime democrático, organismos internacionais, como a Organização das Nações Unidas (ONU), têm se manifestado nesse sentido. Em comunicado enviado ao governo brasileiro no primeiro semestre deste ano, o Comitê de Direitos Humanos da ONU listou uma série de questões que resumem um mal-estar internacional diante do desmonte de políticas públicas de direitos humanos e da própria democracia. 

A criação do Pacto pela Democracia se deu em “um período turbulento”, cercado por ataques ao processo eleitoral e aos direitos democráticos, de uma forma nunca vista “antes na história do país”, contextualiza Flávia, a qual já liderou a coalizão Estratégia ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), na Agenda Pública.  

Na entrevista, a coordenadora-executiva aborda o boom de emissão de títulos de eleitor por jovens, a proposta para o aperfeiçoamento do regime democrático e a sua atuação para barrar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 18, que anistia partidos políticos que não cumprirem com as cotas raciais e de gênero nestas eleições. Sobre o tema, ela é enfática: “É impossível pensar em democracia sem pensar em diversidade.”

Confira a entrevista: 

Qual ou quais fatos motivaram a criação do Pacto pela Democracia, articulação que reúne mais de 200 organizações, coletivos e movimentos da sociedade civil brasileira em defesa do direito fundamental ao voto?

Flávia Pellegrino: O Pacto pela Democracia foi formado em 2018 a partir da urgência de reunir as organizações da sociedade civil em defesa da democracia no Brasil. 

Este é o quinto ano e o terceiro processo eleitoral de atuação do Pacto, que foi criado frente aos inúmeros episódios ao longo da última década que evidenciaram que a construção democrática brasileira passava por momentos muito turbulentos e que era urgente reunir e rearticular o campo democrático brasileiro a partir da sociedade civil com o objetivo de defender e revigorar a construção democrática em nosso país.

Manifestações mais enfáticas sobre riscos à democracia eram ouvidas, principalmente, de setores mais progressistas após as eleições de 2014. O que mudou nesses últimos anos para que esse discurso fosse ouvido também de outros espectros políticos, da sociedade e de personalidades e organismos internacionais?

Flávia Pellegrino: Nos últimos anos, os ataques ao processo eleitoral foram institucionalizados pelo governo federal e, especialmente, o funcionamento das urnas eletrônicas tornou-se alvo de desinformação com o objetivo de afetar a integridade do processo eleitoral. 

Esse ataque incentivado, principalmente pelo Executivo, é um movimento novo que acabou por mobilizar diferentes setores da sociedade na defesa dos direitos eleitorais adquiridos no Brasil ao longo de décadas, e, também, do voto eletrônico, que, a cada eleição, se prova seguro e transparente e que nunca antes havia sido criticado e atacado com tamanha intensidade. 

Em seu perfil no Twitter, você manifestou: “Todos os setores sociais e todas as instituições democráticas brasileiras precisam agir com máxima assertividade pela defesa das eleições. Não podemos permitir que as ameaças golpistas sigam escalando.” Quais ameaças são essas e de onde elas partem com maior frequência?

Flávia Pellegrino: O exemplo mais claro de ameaça ao processo eleitoral que temos observado desde 2019, e com principal intensidade em 2021, é o ataque às urnas eletrônicas, que é um ataque direto à integridade do processo eleitoral

No projeto Diário de Ataques, do Pacto pela Democracia, monitoramos os ataques à democracia desde 2019 e pudemos perceber a intensificação da agenda de deslegitimação das urnas eletrônicas por parte do presidente da República e, também, de representantes das Forças Armadas. 

Os ataques às urnas precisam de respostas urgentes e certeiras, por parte de diversos setores da sociedade, não apenas da sociedade civil organizada que vem se articulando em torno da defesa do resultado das urnas, mas também o Legislativo e o Judiciário precisam responder à altura da defesa do processo eleitoral e não minimizar a gravidade do discurso de deslegitimação que está sendo institucionalizado. 

O atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Edson Fachin, se reuniu com lideranças religiosas com o objetivo de que se comprometam a promover ações de conscientização sobre a tolerância política, a legitimação do pensamento divergente e a exclusão da violência durante as pregações, sermões e homilias. Como o Pacto pela Democracia avalia essas iniciativas do órgão eleitoral?

Flávia Pellegrino: É extremamente importante o olhar do TSE para os diferentes segmentos da sociedade, não apenas como forma de promover a transparência do processo, mas também para engajar a sociedade civil na defesa das eleições. 

O TSE está certamente enfrentando o maior desafio de sua história e tem cumprido papel vital na defesa da integridade do processo eleitoral brasileiro em 2022. A narrativa de suspeição de um sistema eleitoral mundialmente reputado por sua qualidade e credibilidade vem sendo fabricada e semeada há anos pelo presidente e seus aliados de maneira absolutamente deliberada, infundada e mal intencionada. O TSE, por sua vez, tem realizado o esforço hercúleo de enfrentar as campanhas de desinformação e a disseminação de mentiras sobre as urnas e todo o sistema eleitoral lançando mão das estratégias mais democráticas possíveis: com informação, transparência e participação social.

Em 2022, o órgão inaugurou o Observatório da Transparência Eleitoral (OTE), um espaço inédito de contato direto entre o tribunal e as organizações do espaço civil, composto por mais de 20 organizações da rede do Pacto pela Democracia e que tem o objetivo de criar um espaço mensal de trocas e diálogos para tornar o processo eleitoral ainda mais participativo, o que o torna também mais forte.

Por conta do Inquérito das fake news, aberto em 2019 pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em resposta, principalmente, às mentiras difundidas nas eleições do ano anterior e aos ataques à corte, parlamentares estão sendo investigados e até presos. Qual o impacto dessa ação para o combate à desinformação nas eleições atuais?

Flávia Pellegrino: O combate à desinformação deve ser uma mobilização coletiva, em todos os espaços. O inquérito é essencial para dar pontapé à fiscalização. 

O Judiciário deve atuar na fiscalização de canais e pessoas que proliferam notícias falsas no intuito de prejudicar os indivíduos e o funcionamento pleno da democracia, principalmente neste ano eleitoral. E deve ser acompanhado de todos os setores. As notícias falsas devem ser cada vez mais monitoradas e desmentidas em um esforço coletivo da sociedade civil e das plataformas de tecnologia. 

Há, principalmente por parte de líderes conservadores, vários exemplos de ataques ao sistema eleitoral vigente, mesmo após estes serem eleitos por meio deles, como ocorreu nos EUA com Donald Trump. Como você analisa esse movimento de a pessoa ser eleita por um sistema e depois querer “mudar as regras do jogo” em seu favor?

Flávia Pellegrino: A deslegitimação do processo eleitoral por parte de um presidente da república é um movimento tipicamente autoritário que vai contra, não apenas o sistema eleitoral, mas também os valores democráticos construídos por uma sociedade. 

Nos Estados Unidos, vimos que as palavras de descrédito à transparência das eleições e ao resultado das urnas se materializaram em ações violentas, como a invasão do Capitólio. É preciso evitar que o discurso, hoje institucionalizado pelo governo federal, também incentive ataques e violência durante as eleições no Brasil.

De quais maneiras os cidadãos e a sociedade civil podem atuar, não somente em anos eleitorais, para o fortalecimento e o aprimoramento da democracia no país?

Flávia Pellegrino: Recentemente acompanhamos o lançamento do relatório da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre governo aberto e participação cívica no Brasil e pudemos observar que o país cultiva espaços inovadores de participação política e democrática. 

Diversas organizações da rede do Pacto pela Democracia foram citadas no documento pelas boas práticas em fomentar espaços de interlocução entre a sociedade civil e o poder público. 

Para além da defesa do processo eleitoral, que é o grande foco do Pacto neste ano, trabalhamos também com projetos e campanhas para a qualificação da democracia no Brasil, que justamente visam incentivar as práticas democráticas, desde os espaços de capacitação e educação política da população, até campanhas de conscientização sobre projetos de lei que afetam diretamente os direitos cívicos voltados para a sociedade. 

Nas eleições deste ano, diversos grupos sub-representados nas assembleias legislativas, no Congresso Nacional e no Executivo, como os LGBTQIA+, negros, indígenas, mulheres, ativistas ambientais, têm se organizado e lançado candidaturas. Essas iniciativas de representatividade nos espaços de poder contribuem para que tenhamos um país mais igualitário e democrático?

Flávia Pellegrino: Quando falamos de qualificação da democracia e, especialmente este ano, do processo eleitoral, lançamos um olhar especial às diversas iniciativas da sociedade civil brasileira de capacitação, promoção e defesa das candidaturas diversas. Essas ações estão pulsantes na sociedade civil e principalmente nas organizações da rede do Pacto pela Democracia, que defende ativamente a maior representação política de grupos minorizados. 

Este ano, acompanhamos de perto a votação da PEC 18, um projeto que foi aprovado no Congresso e que garante anistia aos partidos políticos que não cumprirem com as cotas raciais e de gênero nestas eleições. 

Coordenamos a cooperação entre as organizações da rede do Pacto nos esforços para barrar a aprovação da PEC. Agora, reunimos essas organizações em um grupo de trabalho sobre violência de gênero para apoiar iniciativas conjuntas durante o período eleitoral. Ou seja, o tema da representatividade democrática está sempre na agenda do Pacto, é impossível pensar em democracia sem pensar em diversidade

2022 entra para a história como o ano com maior emissão de títulos de eleitor por jovens entre 16 e 18 anos. Como você interpreta esse engajamento juvenil pela emissão do documento e por depositar esperanças no primeiro voto? Em sua visão, qual a principal motivação que levará esse eleitor às urnas? 

Flávia Pellegrino: O Voto Jovem foi a principal pauta abraçada pela sociedade civil organizada durante os primeiros meses de 2022, e foi graças ao esforço das diversas organizações que esse tema entrou com força na agenda pública e fez com que o número de novos títulos aumentasse consideravelmente.

É importante dizer que as juventudes são um grupo diverso e que têm motivações muito distintas para participar da política e da democracia. Tenho, porém, a impressão de que a onipresença do debate político por meio das redes sociais é um fator determinante na relação da juventude com esse universo, ainda que, segundo pesquisas, seja uma relação bastante conturbada e até negativa, dada a intolerância que marca o debate público. 

Ainda assim, acredito que a centralidade das nossas escolhas políticas tenha invadido as vidas dos jovens em todo o país em razão das consequências práticas e profundas causadas pela pandemia de Covid-19 desde 2020. 

Passou a ser impossível fechar os olhos ao impacto da política e dos governos nas condições básicas e cotidianas das nossas vidas, e, talvez, essa vivência tenha sido um dos elementos ativados pelas campanhas que incentivaram a emissão do título por novos eleitores e eleitoras. 

Após estas eleições, qual caminho você vislumbra para atuação da sociedade civil e dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário de forma a aperfeiçoar o sistema democrático nacional?

Flávia Pellegrino: Nesse momento, o foco é garantir que o processo eleitoral ocorra na normalidade e que o resultado das urnas seja respeitado, posteriormente vamos retomar nossos trabalhos de qualificação democrática, com o projeto Democracia que queremos, que é justamente pensar em como ampliar os valores democráticos, com o apoio, não apenas da sociedade civil organizada, mas também dos três poderes, para vislumbrar novas possibilidades de participação popular, com mais diversidade e transparência. 

>> Conheça o Pacto em www.pactopelademocracia.org.br

>> Saiba mais sobre o tema no Manifesto em Defesa das Eleições

Outros conteúdos:

Célio Turino: Paciência histórica precisa dar lugar à urgência histórica

Historiador e mobilizador social chama atenção para a necessidade de “humanizar o humano”

Publicado em

17/05/2022

Afinal, qual é o impacto da Carta Pela Democracia?

Documento lançado no último dia 11, na Faculdade de Direito da USP, já recebeu mais de mais de 1,1 milhão de adesões

Publicado em

19/08/2022

Brasil chega às eleições com fome de comida e de democracia

No Brasil, mais da metade da população sofre com algum grau de insegurança alimentar. Por Daniel Giovanaz

Publicado em

24/08/2022

ASSINE NOSSO BOLETIM

Receba nosso conteúdo por e-mail, de acordo com nossa Política de Privacidade.

    Botão do whatsapp

    Entre para nossa comunidade!