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Publicado em

17/05/2022

Conflitos no campo: a organização coletiva como forma de enfrentamento

Ameaçadas por grandes fazendas e empreendimentos, comunidades se unem para defender direitos e continuar resistindo em seus territórios

Agricultoras colhem verduras para almoço coletivo no acampamento Marielle Vive, em SP. Foto: Pedro Aguiar / Brasil de Fato

“Sem o coletivo, sem união, não tem como resistir à pressão.” O relato de Maria das Dores Pereira da Silva, pescadora no quilombo Croatá, em Januária (MG), se aplica a milhares de comunidades ameaçadas por grandes fazendas e empreendimentos no Brasil.

Mesmo com o território certificado como remanescente de quilombo pela Fundação Palmares desde 2016, os 158 moradores de Croatá resistem a sucessivos pedidos de reintegração de posse por parte de pecuaristas da região.

“Somos 38 famílias, mas um dia fomos 64. Muitos morreram ou foram embora”, lamenta a pescadora e quilombola, conhecida como Dora, que mora há 54 anos no território. Em fevereiro, as famílias foram expulsas da comunidade em um despejorealizado pela Polícia Militar sem ordem judicial. Graças à organização coletiva, foi possível retornar ao quilombo, que passou a sofrer ainda mais intimidações.

A história de Croatá é uma das 1.768 contabilizadas pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) no relatório Conflitos no Campo, de 2021. Os casos mais comuns são disputas por terra (1.242) e por água (304). O número de conflitos caiu em relação a 2020, mas os assassinatos saltaram de 20 para 35.

A história do quilombo Croatá

“Nossa estrutura agrária sempre foi pautada por grandes extensões de terra. O processo de modernização da agricultura tornou os conflitos muito latentes a partir dos anos 1970”, contextualiza Isolete Wichinieski, coordenadora nacional da CPT.

“Na década de 1980, era muito forte a pauta dos sem-terra, com as ocupações. A partir dos anos 2000, há um avanço do agronegócio sobre terras indígenas e sobre comunidades com áreas de posse garantidas.”.

Além do discurso agressivo do governo Jair Bolsonaro (PL), Wichinieski diz que as disputas por terra na década atual estão diretamente associadas ao mercado financeiro.

“A terra e a água são negociadas na bolsa de valores, e os grandes investimentos são cada vez mais na própria natureza. Há um discurso de preservação do meio ambiente que, no fim das contas, busca impor um modelo em que os mesmos atores continuem lucrando”, critica. Esse processo, que Wichinieski define como “falsas soluções” ambientais, resulta em mais assédio e pressão sobre as comunidades tradicionais.

Imagem: Reprodução Conselho Pastoral dos Pescadores

Em Senador José Porfírio (PA), a mineradora canadense Belo Sun tenta há anos implementar o Projeto Volta Grande, com produção anual estimada em 5 toneladas de ouro. Na área atingida, vivem comunidades tradicionais, extrativistas, ribeirinhos e agricultores familiares, além das etnias indígenas Juruna, Arara e Xikrin – que já sofrem os impactos da instalação da hidrelétrica de Belo Monte, inaugurada em 2016.

Este ano, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) cedeu à Belo Sun uma área de 2,43 mil hectares, que deveria ser destinada à reforma agrária. Antes de firmar esse contrato, a empresa adquiriu terras de forma irregular na região.

“Durante todo o processo, a empresa agiu para desarticular os povos”, avalia Ana Laide Soares Barbosa, educadora popular do Movimento Xingu Vivo para Sempre. “Hoje, nosso esforço é para restabelecer os laços de vizinhança e solidariedade entre as pessoas que defendem o rio [Xingu] e se opõem ao projeto.”

O licenciamento ambiental do empreendimento está suspenso por violações da empresa ao direito de consulta prévia, livre e informada das populações atingidas.

“Como a decisão judicial é frágil e pode ser revertida, nossa prioridade é anular o acordo da empresa com o Incra para se apropriar de terras da reforma agrária”, explica Barbosa. “Eles estão tirando o povo na marra e entregando a terra para uma mineradora que vai envenenar o rio, o ar, e destruir a mata. Muitas vidas já estão perecendo”, lamenta.

A Belo Sun alega que o empreendimento trará benefícios sociais e econômicos à região e que o licenciamento ambiental está de acordo com a legislação.

Impactos dos megaprojetos na vida das comunidades De volta a Minas Gerais

“O Rio São Francisco é a nossa vida. Sem rio não há território, e sem o território não há rio”, afirma Dora, que vive no quilombo Croatá com o marido, filha e netos. “Trabalhamos de modo artesanal, não usamos agrotóxicos, e toda nossa renda é para a comunidade.”

A pescadora alerta que o avanço do agronegócio já provoca a contaminação do solo, do ar e da água e intimida os moradores. “Homens armados nos ameaçam, nos vigiam o tempo todo. A gente não consegue dormir um sono justo por medo de tiro, ou de que vão atear fogo na nossa barraca”, conta.

Para resistir à violência e permanecer no quilombo, em luta pela demarcação, a comunidade aposta na união e no trabalho coletivo.

“A gente faz mutirão para capinar a estrada, construímos juntos nossa igrejinha, o salão comunitário”, lembra Dora. “Tenho orgulho de dizer quem sou, de onde vim e o que faço. Precisamos do rio vivo, e temos que estar unidos para resistir”, finaliza.

Unidade e resistência frente aos conflitos por território 

Infelizmente, esse tipo de conflito acontece no Brasil inteiro. No acampamento Marielle Vive, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em Valinhos (SP), desde 2018, 450 famílias ocupam a fazenda Eldorado Empreendimentos, que se tornou um espaço de produção agroecológica e formação política.

Para Tassi Barreto uma das lideranças, “Não tem assistência técnica nem fomento para a produção. Como não temos água, dependemos do caminhão pipa da Prefeitura”, conta. “Há uma situação objetiva, que é o risco de despejo. É muito guerreiro e guerreira quem está produzindo aqui.”

Em 2019, um dos acampados, Luiz Ferreira, foi assassinado em frente ao terreno justamente durante um protesto pelo direito à água. Hoje, Ferreira dá nome à escola do acampamento, em uma área dominada por condomínios de luxo. 

Apesar das dificuldades, os acampados cultivam hortaliças, legumes, mandioca, milho e feijão, realizam feiras, mantêm cozinhas solidárias e doam alimentos às periferias da região. “A última decisão judicial foi pela reintegração de posse, mas estamos na luta pela permanência. Nosso foco é debater com a sociedade civil: vocês querem mais um condomínio, ou querem um assentamento rural que produza alimentos saudáveis e acessíveis?”, explica a militante sem-terra.

Para saber mais sobre o tema:

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