Publicado em
24/04/2025
Em entrevista exclusiva, o cantor, compositor e ator fala sobre como o rap abriu seus olhos para a realidade dos territórios periféricos no Brasil e as soluções transformadoras que são criadas pela cultura nas quebradas.
Por Daniele Próspero
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“Em todos os cantos do país, as pessoas estão se dedicando e entendendo que a cultura é o caminho que encurta o encontro com o outro, para que as transformações possam acontecer. Pensar cultura nesse lugar é pensar ações de possibilidades. Porque cultura a gente está criando todo dia. Ela se constrói hoje, se desconstrói e se reconstrói todos os dias.”
A fala é do cantor, compositor e ator, Criolo, artista indicado sete vezes ao Latin Grammys, iniciativa que reconhece e celebra a música latino-americana. Criolo ganhou recentemente o prêmio de “Homem do ano 2024” da GQ Brasil – revista mensal sobre moda, estilo e cultura para os homens –, na categoria “Visão além dos 40”, e dedicou o reconhecimento a todos os professores do Brasil. “O país que não valoriza seus professores é um país que está fadado ao fracasso”, disse na ocasião.
Nascido e criado no bairro do Grajaú, periferia da cidade de São Paulo, Kleber Cavalcante Gomes – o Criolo –, é filho do ex-metalúrgico Cleon Gomes e da professora, filósofa e escritora Maria Vilani, com a qual conheceu de perto a importância de valorizar as potencialidades e o bem das pessoas, tendo a cultura como a agregadora do território.
“Ela sempre foi inquieta com injustiça, valorizou muito o ser humano, foi essa pessoa de acreditar no outro, gostava muito de arte, provocava encontros, fortalecia o sonho do outro. A primeira feira de artes e artesanato no Grajaú foi ela quem fez. Juntava todo mundo para cada um mostrar a sua arte, para todo mundo brilhar, todo mundo celebrar o outro”, relembra.
E foi ali, justamente ali, na periferia da capital paulista, que Criolo conheceu o rap, começando a participar de disputas de rimas aos 13 anos, e, desde então, a música se tornou um espaço para ecoar seus pensamentos, denunciar as mazelas da sociedade brasileira e esperançar novos caminhos, como diz a sua canção Esperança: “Hoje eu vim realizar todo sonho dos meus ancestrais. E deixar para trás todo pesadelo que os desfez.”
Para refletir sobre a cultura potente que pulsa nas periferias brasileiras e, também, analisar como tem se dado as perspectivas de apoio e políticas públicas para o campo cultural, a Revista Casa Comum promoveu um bate-papo especial com Criolo, que tratamos a seguir. Optamos por mudar o formato desta editoria, que normalmente traz um artigo, para apresentar a opinião do artista, destacando os principais pontos da conversa, a partir de temáticas centrais. Confira:
O rap como uns óculos para a realidade local
“O que me levou ao rap foi o próprio rap. Escutei uma música no final de 1986, tudo rimava, e aquilo foi mágico. E aconteceram duas magias no mesmo momento. Eu não sabia que palavras podem rimar e, segundo, aquele texto rimado parecia que descrevia o meu bairro, alguma situação em casa, da rua. De um modo muito instantâneo, aquele rap apresentou o que é contextualizar as coisas, o que é se perceber inserido em algo porque, até então, quando a gente é criança, a gente só vive e tenta não fazer traquinagem para não levar ‘puxão de orelha’. E o que aquele rap trazia de texto fez com que eu compreendesse que eu tinha vida e coisas acontecendo ao meu redor. E, a partir disso, um teste de responsabilidade sobre os meus pensamentos.
Eu sou filho de nordestinos, meus pais vieram do Ceará fugindo da fome, ‘tentar a sua sorte’, como diz o texto. Quando aquele rap mostrou que existia alguma coisa para se falar, comecei a perceber mais a minha rua, o que as pessoas falavam, o que era a verdade que eu estava inserido. De um lado muito natural, comecei a ver que lá também tinha esgoto a céu aberto e, então, tinha algo errado. Antes parecia que isso era natural. É comum as pessoas dizerem: ‘Agradeça que está aí e cuidado para não perder o que tem, mesmo morando num barraco, com um banheiro só para 10 moradias.’
Desse turbilhão de situações e emoções, alguma coisa mudou quando aquele rap me visitou, mas não só a estética sonora, mas de eu me perceber, que eu existo, e que existe algo ao meu redor, e que eu posso ser influência para o meu meio. E assim eu conto essa história.”
O hip-hop como revolução
“Respirei muito rap e, depois, fui conhecer o hip-hop, pois eu era muito isolado na minha rua. Era tudo muito solitário e eu era muito novo também. Em outros lugares da cidade, as pessoas estavam mais próximas. Pude conhecer a Casa do Hip Hop, em Diadema, por meio do Dandan. Lá eu vi que os jovens se reuniam não só para fazer rimas, mas para dançar, aprender o grafite, tinham rodas de leitura. Eles estavam juntos.
E o hip-hop, como um todo, é uma receita de transformação. Ele é revolucionário porque do mesmo jeito que eu pude enxergar de modo diferente a vida quando eu vi aquela letra de rap, que me deu ‘óculos’, quando você encontra um grupo maior de jovens, que estão respirando esse mesmo olhar, mas fazendo artes diferentes, é magnífico, é maravilhoso. É revolucionário mesmo. Mexe com as suas moléculas, você respira diferente, o seu coração bate diferente.”
A formação das lideranças comunitárias
“Começaram a ter grandes bailes de hip-hop e as pessoas se encontravam e conversavam. E, em algum momento, você vai falar sobre o bairro: ‘Tenho que voltar cedo para casa, porque eu cuido do meu irmão para os meus pais trabalharem, porque lá não tem creche. E a sua escola? Ah, vai fechar o período noturno, não vai ter mais. Mas, espera, isso não pode’. As pessoas começam a saber o que está acontecendo.
Eu acredito que as ações humanitárias, de construções políticas, começam a nascer nesses lugares. Eu vi muitas lideranças dos direitos humanos nascendo na minha frente, sem saber essa nomenclatura. Você vê as pessoas criando, na sua frente, liderança de modo natural. Quando as pessoas se reúnem, a mágica acontece.”
O papel dos artistas na defesa dos direitos humanos
“Para mim é tão natural isso, porque eu cresci numa São Paulo tão cruel, mas com pessoas tão incríveis. Cresci numa cidade desumana, com pessoas ultra-humanas. É uma cidade horrível, mas feita por pessoas lindas. Acredito, então, que a gênese de tudo é se isso te toca. Se te tocar, vai permear todo o seu trabalho.
Ver uma pessoa sofrendo te toca, te emociona? Saber que tem uma criança bebendo água de esgoto mexe com você? Te emociona ver uma senhora, na melhor idade, juntando coisas na cidade para o ferro-velho para ver se paga a janta dela?
É algo muito pessoal. É como respirar, sobretudo para quem já sofreu na vida, que não quer ver o outro sofrer. Quando algo te machuca, cada um reage de um jeito. Como é transformar tudo isso? É entender que não é legal o jeito que o país trata o que é mais importante, que é o seu povo.”
Políticas públicas de acesso à cultura no país: fortalecer e ampliar as ações
“O que tem hoje é de extrema importância e solto fogos por isso. Mas, acho que são poucas políticas e ainda num lugar de emergência. E digo, ainda, tem que ter mais, porque as soluções são incríveis, os retornos são extremamente positivos. As quebradas sempre deram um retorno muito positivo com os poucos recursos que são enviados. As quebradas já estão fazendo, as lideranças comunitárias já estão fazendo, cada um está fazendo o que está ao seu alcance. O que falta é ouvir mais a quebrada, dar mais atenção e levar com um pouco mais de respeito e consideração as soluções que são construídas a partir daquele território. Porque não é só enviar a grana, é ser parceiro, estar junto. Da mesma forma que o governo é parceiro de empresas, tem que ser parceiro do cidadão. O maior parceiro da cidade é quem habita a cidade.
Além disso, as políticas são ainda sazonais. A gente não tem um linear, sempre está com coração na mão, perguntando: Será que vão conseguir fazer o trabalho com as crianças no ano que vem? E com os idosos? Não sei!’. Esse não linear também atrapalha a pessoa que está no território, fazendo acontecer. Ou seja, é preciso fortalecer o que existe e criar novas políticas, trazer mais subsídios e se sentir parceiro.
Outro ponto é que vamos levar mais uns 50 anos para recuperar o que tínhamos conquistado na cultura depois dos últimos anos de retrocessos. Vamos ter que lutar de novo e ver o que vai ser daqui para frente.”
O apoio e a valorização da sociedade
“Tem parte da sociedade que não entende, por exemplo, que um edital de cultura é um trabalho como qualquer outro. Não é uma migalha ou coisa melhor. É trabalho. Só que parte da sociedade não valida isso. Acha que toda favela tem que ser um campo de concentração. Acha que não tem que ter cultura, não tem que ter apoio, que o dinheiro tem que servir para outra coisa, porque ali vai ser perda de tempo. É como o ser humano abrindo mão da própria raça. Há milhares de pessoas que trabalham de modo sério, que entregam a sua vida a isso. E as outras esferas da sociedade, enxergam como? Dificulta muito ainda.
Da mesma forma que existe um legado maravilhoso do que se constrói da cultura, do que esses agentes sociais que estão, no dia a dia, tentando construir uma cidade melhor, algumas pessoas acham que periferia não é cidade. Como vou lutar para melhorar algo que eu acho que não faz parte da cidade?”
Cultura e educação e os caminhos para esperançar
“Não dá para pensar em cultura sem educação. E os agentes que movem a cultura do país, as pessoas que estão nos seus territórios, se tem isso natural no coração, é passado para frente, de que é necessário transformar o nosso ambiente, buscar um espaço com mais dignidade para todos, de que é preciso valorizar mais o ser humano, acreditar no ser humano, que tem jeito, que é possível, e ter força para propagar essa ideia. Tem gente que não canta isso, não escreve sobre isso, mas de algum jeito, fortalece uma ação como essa. Minha palavra hoje é de agradecimento a todas essas pessoas que estão fazendo a cultura no dia a dia, que tem dedicado a sua vida, seu sangue, seu suor, suas lágrimas, seu sorriso, sua juventude, para querer uma transformação. Mantenham o sonho vivo, sigam seus corações. Se o ser humano não estivesse desacreditando no próprio ser humano, não precisaríamos ter essa conversa.”
Conheça mais sobre a atuação e trabalhos do Criolo em: www.instagram.com/criolomc