Publicado em
01/08/2024
Artigo do historiador e escritor Célio Turino analisa contexto de mudanças climáticas no Brasil, suas consequências em diferentes territórios, e como a crise do clima se relaciona com decisões políticas.
Por Célio Turino
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“Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social;
mas uma única e complexa crise sócio-ambiental”
(Laudato Si’, 139)
Silêncio…
Ecoa o som das hélices.
O helicóptero se aproxima com um cesto amarrado.
No telhado, um velho, uma velha e um cachorro,
Todos molhados, a casa com água até a cumeeira,
Vinte e quatro horas no telhado,
Água por todos os lados.
Devastação.
Silêncio…
O velho coloca a velha no cesto, sua amada esposa,
Décadas de vida comum, tudo que tinham estava naquela casa.
É a vez do cão.
Ensopado, se nega a ir sem o velho
Até que é colocado no cesto.
Sobe ao helicóptero entre latidos.
Chega a vez do velho.
Silêncio…
A fúria das águas leva tudo, incluindo o velho.
É o clima em colapso.
Ocupação nas cabeceiras dos rios, nas encostas.
Sem cílios de mata a proteger as barrancas,
Nem floresta a proteger o clima.
Só plantação, pasto
E devastação.
Tragédia no Rio Grande do Sul: um alerta urgente
Entre secas e inundações, o estado do Rio Grande do Sul é retrato dos eventos climáticos extremos e do que está por vir no Brasil e no mundo. Até meados de 2023, o estado enfrentava uma seca histórica, fruto do resfriamento das águas do oceano Pacífico. Foram mais de três anos com pouquíssimos períodos de chuva e seguidas quebras de safra agrícola. A quem prefere os dados macroeconômicos à poesia de vida, segundo dados do Departamento de Economia e Estatística do governo do Rio Grande do Sul, nesse período a participação do estado no PIB [Produto Interno Bruto] do país caiu de 6,53% em 2019 para 5,90% em 2023.
O colapso do clima chegou. Haverá tempo para detê-lo? Mitigá-lo? Como será a adaptação? Quem vai se adaptar? Quem vai sobreviver?
Desde meados de 2023 o tempo virou. El niño substitui La niña e a água do oceano Pacífico aquece. É a chuva, é a chuva! Temporais, trombas d’água e lama provocando um rastro de destruição e sofrimento. Começou com um ciclone extratropical em setembro de 2023 (em minha infância cantávamos que no Brasil não havia terremotos, nem furacões ou ciclones). Aquelas terras do sul, antes atormentadas pela secura, estavam debaixo d’água. Mais de cinquenta pessoas morreram. Poucos meses depois, nova chuvarada afetando quase a metade dos municípios gaúchos. Outras 30 pessoas mortas e mais 70 desaparecidas, conforme dados da Defesa Civil.
Padrões climáticos cada vez mais imprevisíveis. Ora seca, ora enchentes. Enchentes devastadoras. Desabamentos, pontes e estradas destruídas, ruas alagadas, casas inundadas, plantações arrasadas, animais afogados, móveis, documentos, memórias… A água foi levando tudo. O mundo desabou em dilúvio. Novamente, inúmeras vidas humanas foram perdidas, mais de uma centena, outras tantas desaparecidas com a água que tudo levou.
Maio de 2024, nova calamidade sem precedentes. A cidade de Porto Alegre permaneceu alagada por mais de um mês. Chuvas incessantes alimentavam as cabeceiras dos rios que desciam a serra arrastando tudo. As imensas terras planas ao nível do mar permaneceram alagadas por mais de mês. O rio-lago do Guaíba se expandiu em imenso pântano. Muros e comportas não deram conta de proteger a cidade. Pudera, estavam sem manutenção há mais de uma década.
A tragédia do clima não tem fronteiras e os problemas são complexos, porém, há como mitigar seus efeitos no território.
Desde a década de 1970, Porto Alegre conta com um eficiente sistema de contenção das cheias do Guaíba. São 60 quilômetros de diques e barragens cortando a cidade de norte a sul. No auge da inundação, das 23 Casas de Bomba (Estações de Bombeamento de Água Bruta), 19 colapsaram por falta de manutenção ou pane elétrica, bem como as 14 comportas, todas sem manutenção adequada. Esse desmazelo do poder público municipal permitiu que a água atravessasse os diques. Medidas simples, como a troca de borracha das comportas, não eram realizadas há anos. Segundo especialistas, medidas preventivas teriam mitigado os efeitos da enchente em 90%.
Esse evento não pode ser visto isoladamente, mas sim como parte de um padrão crescente de desastres naturais exacerbados pelas mudanças climáticas globais. A intercalação de períodos de seca e chuvas incessantes é um claro reflexo das mudanças climáticas em todo o globo. A inundação prolongada no Rio Grande do Sul afetou especialmente as comunidades mais empobrecidas, que vivem em áreas de risco e com infraestrutura mais precária. Mas também se voltou contra aqueles que danam a natureza pelo descumprimento de medidas de conservação ambiental. Por ganância, ocupam cada palmo de chão, desmatando, alterando cursos d’água, desprezando medidas preventivas.
A tragédia do Rio Grande do Sul deve servir como um chamado à ação. A degradação ambiental e a crise climática não são fenômenos distantes ou abstratos; eles estão aqui, afetando diretamente nossas comunidades. Uma hora irão avançar sobre nossas casas, sobre nossas famílias. Será o retorno do dano que provocamos. Como afirmou o Papa Francisco em sua encíclica Laudato Si’, “nunca maltratamos e ferimos a nossa casa comum como nos últimos dois séculos” (LS 53).
A despeito de as áreas alagadas nas cidades do sul do país terem diminuído, o povo segue sofrendo em abrigos improvisados, com frio, falta de saneamento básico e o aumento de doenças transmitidas pela água. Com a perda de tudo em suas casas, desemprego e falta de moradia, terão que recomeçar. Consequências diretas dessa catástrofe evidenciam a vulnerabilidade dos mais vulneráveis. Como afirmou o Papa Francisco: “os mais pobres são os que mais sofrem as piores consequências de todas as agressões ambientais” (LS 48).
Dessa vez o povo do Rio Grande do Sul foi o mais atingido. Mas, outras situações semelhantes ocorreram e estão a ocorrer em todo o território nacional: como a tromba d’água em São Sebastião, no litoral norte do estado de São Paulo, com a destruição de centenas de casas e incontáveis mortes; na serra fluminense, em Petrópolis; os rios amazônicos secando; o Pantanal, agora ardendo em chamas…
O fracasso das políticas neoliberais e o Estado mínimo
O neoliberalismo, com sua ênfase na desregulamentação, privatização e redução do papel do Estado, tem se mostrado inadequado para enfrentar a complexidade dos desafios climáticos atuais. O conceito de Estado mínimo (para os pobres), da mesma forma que desregulamenta as proteções sociais e ambientais, protege as destruições e explorações. É, portanto, o Estado máximo (para os ricos). Essa forma de Estado, preconizada pelo neoliberalismo como dogma, prioriza a eficiência econômica e a acumulação privada sobre a proteção ambiental e social, contribuindo para a vulnerabilidade das populações mais pobres e para a degradação dos recursos naturais.
Porto Alegre, assim como muitas outras cidades brasileiras, é exemplo estampado da ineficácia dessa ideologia. Nos últimos quinze anos, houve um desmonte deliberado de todos os meios para uma gestão eficaz do bem comum; da privatização ou extinção de departamentos especializados no cuidado com a cidade ao sucateamento de seus meios de trabalho, demissão ou aposentadoria de quadros técnicos especializados e desprezo a qualquer possibilidade de ingresso de novos técnicos ou na formação de novas gerações.
A falta de infraestrutura adequada e políticas públicas eficientes, que poderiam mitigar os impactos das mudanças climáticas, foram escancarados aos olhos de todo o país. A ausência de um planejamento urbano resiliente e a precariedade dos serviços públicos vistos em Porto Alegre, antes cidade referência em políticas públicas, são reflexos diretos de um modelo de gestão que desvaloriza o papel do Estado como garantidor do bem comum, submetendo o aparato estatal aos interesses das grandes corporações privadas. Desde 2019, o governo do Rio Grande do Sul alterou quase 500 pontos do Código Ambiental do estado, alterações que hoje se voltam até mesmo contra os interesses daqueles que as promoveram, como o agronegócio, que, em nome de uma ganância imediata, agora amarga enormes prejuízos.
O professor da Unicamp, Luiz Marques, com o livro “Capitalismo e Colapso Ambiental”, destaca a crise ambiental global como um problema sistêmico do capitalismo. A lógica da acumulação e crescimento infinito do capitalismo é incompatível com a vida em um planeta finito, conclui. Há limites ecológicos para ganâncias sem fim. Outro livro, “Colapso”, de Jared Diamond, faz uma análise ao longo da experiência histórica de diversos povos e demonstra vários momentos em que sociedades escolheram o fracasso, exatamente pela incompatibilidade de seus modelos econômicos e o entorno que as cercava.
A crise ecológica é também a crise da civilização, particularmente do capitalismo. São crises indissociáveis, porque a busca incessante por crescimento econômico e lucro – características do capitalismo – leva à exploração excessiva de recursos naturais e à degradação ambiental. Esse sistema intrinsecamente predatório está conduzindo a vida humana ao colapso, assim como está provocando um profundo desarranjo – e extermínio – de outras formas de vida no planeta.
Desde a Revolução Industrial até os dias atuais, a expansão capitalista tem estabelecido um padrão de exploração e destruição que provoca danos ambientais progressivos. Danos como a emissão de gases do efeito estufa e o aquecimento global são exacerbados pelo modelo de produção capitalista, resultando em efeitos devastadores no clima e na inação das políticas públicas e governamentais dominadas por interesses econômicos das classes dominantes.
O Rio Grande do Sul não é um caso isolado; nem o Brasil. A continuar esse sistema, tudo que resultará às populações do planeta, sobretudo aos pobres, será dor e sofrimento. “Estamos a caminho do desastre”, alerta o secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), António Guterres, quando a apresentação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), em 2022:
“Isso não é ficção ou exagero. É o que a ciência nos diz que resultará de nossas atuais políticas energéticas. Estamos no caminho para o aquecimento global de mais que o dobro do limite de 1,5 grau Celsius que foi acordado em Paris 2015”.
Se quisermos garantir um futuro habitável, se nossa geração não pretender ficar marcada como aquela que, de tão egoísta, rouba o ar, a água e o futuro de suas crias, precisamos mudar urgentemente a nossa forma de ser e de estar no planeta. É preciso repensar a economia e a sociedade, a agricultura industrial e a forma de extração dos recursos naturais, as fontes de energia e suas formas de uso.
Cidades permeáveis, com absorção da água da chuva, naturalização dos rios e cursos d’água, arborizadas, com parques e jardins, são um bom caminho. Outro é a redução da necessidade de grandes deslocamentos, abrindo empregos próximos à moradia das pessoas. E não só. Há que gerar energia de forma distribuída e não poluente. Não mais megacidades sugadores de energia e poluidoras; e sim cidades sustentáveis, com produção próxima do consumo, com economia solidária e de vizinhança, economia circular com aproveitamento total das matérias-primas e reincorporação dessas ao processo de fabricação de novos produtos. Consumo consciente, comércio justo, generosidade intelectual. Investimentos públicos adequados, sob um Estado não mínimo nem máximo, mas necessário à redução de desigualdades e à construção da equidade, que ampare sua população e proteja o meio ambiente. Justiça climática é também justiça social, tributária, educacional, cultural. É preciso mudar o padrão civilizatório. Ou fazemos isso já, ou assistiremos a barbárie e o colapso.
É o fogo, é o fogo!
Floresta em chamas,
Fagulhas dançam no vento,
Bichos correm, pânico no ar.
Tudo arde,
Patas, focinhos,
Pelagem incandescente,
Tudo arde,
Tronco vira tocha.
Queimada na floresta.
Pantanal a virar pasto.
O Solimões secou
Na Amazônia.
Fogo no cerrado,
Na Canastra, Mantiqueira
Mata Atlântica.
Queimada na floresta.
Tudo é pasto
Seco.
Rio transformado em deserto de areia.
Fuligem na cidade,
Fumaça apaga o sol.
Asma, bronquite,
Pulmões cheios de fumaça.
Queimada na floresta.
Não é natural.
Há causas e efeitos.
A biodiversidade está em perigo.
As matas e os animais das matas.
Os oceanos e rios e os seres das águas, salgadas, doces ou salobras.
Os montes, os solos. Os ares.
As gentes.
Nós.
Tudo está em perigo.
Eu não consigo respirar!
Eu não consigo respirar!
A herança
Queiramos, mas queiramos de verdade, a transição para fontes renováveis e sustentáveis de energia. E que venha acompanhada de vida boa, justa e alegre para todo mundo.
É imperativo que repensemos nossas prioridades e estratégias. O Papa Francisco, em sua incansável defesa pela Casa Comum, nos lembra da interconexão entre todas as criaturas e da necessidade de uma conversão ecológica.
Para enfrentar os desafios das mudanças climáticas, a humanidade precisa de políticas públicas que integrem justiça social, sustentabilidade e solidariedade. É simples. Não é? Por qual razão não praticamos e executamos? Para defender a Casa Comum é preciso fortalecer as instituições públicas, promover a participação cidadã e implementar estratégias de adaptação e mitigação, sobretudo em relação ao que se projeta sobre os mais vulneráveis. Quem se habilita? Quem vem junto a erguer e defender a Casa que deveria ser de todos?
Com esse artigo procurei abordar as mudanças climáticas e políticas públicas à luz dos ensinamentos do Papa Francisco, enfatizando a necessidade de uma abordagem integrada e solidária para enfrentar os desafios globais. A tragédia de Porto Alegre, e tantas outras que assistimos diariamente pela televisão (mas que um dia enfrentaremos na carne, não nos autoenganemos), é um triste lembrete da urgência com que devemos agir.
As mudanças climáticas exigem de nós uma nova visão de progresso, que vá além dos paradigmas do consumismo e do neoliberalismo, e reconheça a centralidade do bem comum. Como nos exorta o Papa Francisco, que nossas ações sejam guiadas pela compaixão, justiça e respeito pela criação. Só assim poderemos construir um futuro sustentável e digno para todas as gerações.
Para finalizar, uma história imaginada e real
Naquele canto do sul do Brasil, o céu parecia ter desabado sobre a terra. Os dias tornaram-se um sopro úmido e gélido. As chuvas, impiedosas, desceram em torrentes, transformando campos férteis em zonas alagadas. E, assim, o ano de 2023 se dissolveu em 2024, não como um novo ciclo de esperança, mas como uma sequência inexorável de tragédias.
Num canto daquele canto do sul do Brasil havia um refúgio de simplicidade. Nele viviam mãe e filho. A vida era moldada pelo compasso da natureza e pelo trabalho árduo. A mãe, com suas mãos calejadas de tantas colheitas, observava o céu cinzento com uma premonição silenciosa. Seu filho, rapaz de sonhos grandes e pés findos no chão, tentava proteger a pequena horta que alimentava os dois. Mas o céu não teve clemência. Chuvas ferozes e incessantes transformaram a vida de mãe e filho.
Rápidas e vorazes, as águas avançavam como um monstro desperto. Ruas viraram rios violentos. Casas, pequenas ilhas de desespero. Tudo era varrido pela correnteza, e o que não era levado restava coberto de lama e tristeza. Passado o dilúvio, água por todos os lados. De partes sólidas, só os telhados. Foi então que surgiu Caramelo, o cavalo. Pelagem dourada e temperamento aparentemente dócil, resistia sozinho. Seus olhos expressavam um misto de medo e esperança. Imóvel, permaneceu por dias com as quatro patas sobre o telhado de uma casa alagada.
Provavelmente arrastado pela força das águas, Caramelo subiu ao telhado da casa e ali ficou. Como um farol de resistência, sintetizava fragilidade e força a desafiar as águas e o destino. A gente daquele canto, já exausta e desolada, encontrara naquele animal uma fonte de esperança e união.
Foram organizados grupos de resgate e pessoas de todo o país acompanharam, comovidas, o drama daquele ser altivo e indefeso. Se viam nele. Após dias de incerteza e tensão, finalmente conseguiram salvar o cavalo. As mudanças climáticas, antes uma abstração distante, agora eram uma realidade tangível, sentida pela força e a fragilidade de um animal. Caramelo, símbolo de esperança.
O sol voltaria a brilhar (sempre volta), e a terra, dadivosa (sempre dadivosa), voltaria a dar seus frutos. Naquele canto marcado por sucessivas tragédias, a resistência se fez verbo, e a esperança, colheita. Mãe e filho, com suas mãos firmes e corações renovados, replantariam a horta. A terra, como velha amiga, responderia com generosidade.
Célio Turino. Historiador e escritor, doutor em Humanidades pela Universidade de São Paulo (USP), autor de diversos livros e ensaios publicados no Brasil e no exterior. É integrante do Instituto Casa Comum. Caminha por aí, difundindo as ideias da Cultura Viva e do Bem Viver. Esteve como Secretário da Cidadania Cultural no Ministério da Cultura (2004/10) quando idealizou e implantou os Pontos de Cultura.
Estudiosos, ativistas e defensores ambientais afirmam sobre a centralidade de um pensamento ecológico para desacelerar o contexto de emergências em razão das mudanças climáticas e o colapso ambiental.
Publicado em
23/11/2023
No Dia Internacional da Mãe Terra, 22 de abril, Revista Casa Comum aborda a exploração do planeta e destaca a importância dos povos originários para a manutenção da vida.
Publicado em
22/04/2024
O sangue de pescador artesanal de Alexandre Anderson, 53 anos, vem de seus avós, os quais viviam na Ilha da Madeira, situada no Oceano Atlântico e pertencente a Portugal. A luta do neto de portugueses também se dá em águas atlânticas, porém na Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro.
Publicado em
23/11/2023