Publicado em
29/08/2023
Por Lívia Lima*
Quando eu era criança, no 27 de setembro, todas as meninas e os meninos da rua saíam para receber doces em uma das casas que os entregava em saquinhos de presente. Era uma grande alegria no bairro, tal qual o Dia das Crianças. Além disso, era o aniversário de uma de minhas primas e, para mim, parecia que tudo era comemoração em sua homenagem.
O costume, no entanto, advinda do Dia de São Cosme e Damião, os gêmeos pequenos santificados pela igreja católica. Mais tarde, descobri que se tratava de uma celebração para os erês, dentro das práticas das religiões de matrizes africanas. Cresci dentro da igreja católica, em uma comunidade de São João Batista, do bairro Jardim Nordeste, na periferia da zona leste de São Paulo (SP).
Quermesse e fogueira sempre fizeram parte de meu calendário. Já adulta, fui apresentada à ideia do paralelo entre o santo católico, profeta que denunciava os poderosos, e Xangô, o orixá da justiça. Todas as tradições de sincretismo religioso estavam lá, mas não as reconhecíamos como tal.
O Terno das Pescadoras das águas do Rio Paraguaçu. Andaraí (BA), 2023. Foto: Thomas Bauer
A história do Brasil foi construída a partir do encontro (nem sempre cordial) de diversos povos. Cada um deles contribuiu para a cultura do país em diferentes realizações e, em muitos casos, aconteceram fusões e cocriações, assimilando diferentes tradições, inclusive religiosas.
O que hoje chamamos de cultura popular, muitas vezes, representa rituais e celebrações de fé. As festividades juninas, Folia de Reis, Tambor de Crioula, Congadas, entre tantas outras manifestações, são alguns exemplos.
Dentro do contexto cultural contemporâneo, ainda é possível perceber resquícios de preconceito e racismo relativos a essas manifestações, caracterizadas como naif ou folclore, devido à predominância de uma ideologia ocidental que renega a espiritualidade da dimensão humana. A técnica e a ciência se sobressaíram em detrimento das práticas do sagrado. A separação entre razão e emoção tornou-se padrão.
Comunidade do Rosário da Penha. Foto: divulgação
No que diz respeito às tradições das culturas afro-brasileiras e indígenas, elas estão em consonância com cosmopercepções, em que esses elementos não são dissociados. O ser e estar no mundo, muitas vezes, pressupõe uma conexão com a espiritualidade que orienta todas as ações.
No romance Um Defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves, a protagonista Luísa (ou Kehinde) sempre consultava seus líderes religiosos para obter previsões do futuro e, assim, entender que decisões tomar. Essa obra, que narra a trajetória de uma personagem real a partir de pesquisas além dos relatos ficcionais, mostra como historicamente ocorreram assimilações de crenças e como elas faziam sentido para as pessoas escravizadas.
É comum atribuir ao sincretismo religioso uma forma de alternativa para a prática de religiões africanas dentro do catolicismo, única oficialmente aceita no Estado brasileiro por séculos. Porém, é necessário considerar que essas populações tinham a possibilidade de incorporar elementos do cristianismo em suas tradições politeístas. Foi dessa forma que se estabeleceram irmandades em diferentes regiões, como a da Boa Morte na Bahia, que se tornaram fundamentais para o fortalecimento do povo preto e no enfrentamento à escravidão. Ainda hoje, há comunidades como a do Rosário dos Homens Pretos da Penha, na zona leste de São Paulo, reunindo pessoas negras, católicas ou não.
O intelectual e líder quilombola Antônio Bispo dos Santos utiliza o conceito de “confluência” para definir a convivência entre elementos diferentes, mas com aproximações a partir de suas cosmopercepções, sobretudo em relação aos povos tradicionais. Nos territórios onde o sistema capitalista ocidental não foi plenamente implementado, nas fissuras do projeto colonial, é possível afirmar que coexistem modos de vida de forma mais orgânica.
As periferias urbanas são, em alguma medida, espaços onde essas fissuras também se revelam. Não à toa, em minha infância, era natural a participação de pessoas de diferentes crenças em rituais das religiões afro-brasileiras, porque eles fazem parte da base de nossa cultura comum, constituída a partir da transmissão da memória coletiva.
Atualmente, a colonização segue em andamento, manifestada em tentativas de impor uma única e legítima orientação político-religiosa, comprometendo essa convivência pacífica. Em muitos territórios periféricos, sobretudo nas favelas, é frequente a denúncia de criminosos que proíbem manifestações das religiões de matrizes africanas. Dados do Disque 100, canal para denúncias de violações de direitos humanos, apontam que o número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil aumentou 106% entre 2021 e 2022, sendo a maioria das vítimas mulheres praticantes de umbanda e candomblé.
Enfrentar a intolerância e o racismo religioso, valorizar e preservar os saberes e as culturas tradicionais são atitudes fundamentais para reconhecer nossa ancestralidade e a importância da dimensão espiritual.
*Lívia Lima é jornalista, mestre em Estudos Culturais e cofundadora da organização jornalística Nós, mulheres da periferia.
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