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Publicado em

22/03/2024

De Graciliano Ramos à crise climática: reflexões sobre o Dia Mundial da Água

O Velho Chico, tão retratado pelo escritor brasileiro, tem sofrido múltiplos revés, mas também é palco de lutas socioambientais e iniciativas populares de gestão das águas.

Por Elvis Marques

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Com a falta de chuva na nascente do Rio São Francisco, o reservatório de Sobradinho vive a maior seca de sua história. Foto Marcello Casal Jr – Agência Brasil

“É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento”, descreve o vaqueiro Alexandre, no conto Canoa Furada, que integra o livro Alexandre e outros heróis, de Graciliano Ramos. As águas que o famoso personagem cita estão no Rio São Francisco, conhecido carinhosamente como Velho Chico.

Rio São Francisco. Foto: Fabio Pozzebom/Agência Brasil

Nessa história, o vaqueiro gaba-se aos amigos por ter conseguido atravessar esse “mundaréu” de águas com uma embarcação furada. Hoje, certamente, ele cruzaria o rio com tranquilidade, até mesmo a pé e sem canoa, devido às fortes secas, ao impacto das mudanças climáticas e a tantas outras problemáticas que atingem o Velho Chico e o povo que dele sobrevive.

Não tem como falar sobre águas no Nordeste e em parte do Sudeste sem navegar pelos relatos de Ariano Suassuna e Graciliano Ramos. Suas obras, mesmo décadas depois, ajudam a população, cientistas e poder público a refletir sobre a tragédia ambiental que as águas do país têm sofrido. 

Se antes o fato de o Brasil abrigar 12% da água doce mundial era sinônimo de paz hídrica, hoje é motivo de preocupação.

Neste ano, em virtude do Dia Mundial da Água, celebrado em 22 de março, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) apresentou a primeira edição do estudo Impacto da Mudança Climática nos Recursos Hídricos do Brasil, evento que também marcou o início à Jornada da Água 2024, que tem como tema A Água nos Une, o Clima nos Move.

Ao apresentar, de forma inédita, os efeitos da mudança climática na disponibilidade de água no Brasil, considerando a escala de sub-bacia, o relatório da ANA mostra um cenário bem diferente daquele vivenciado pelo personagem Alexandre. 

O documento indica uma tendência de redução na disponibilidade hídrica para quase todo o país, incluindo grandes centros urbanos e regiões importantes para produção agrícola e ribeirinha, como a Bacia do Rio São Francisco, considerando cenários de curto, médio e longo prazo – respectivamente entre os anos de 2015 a 2040, de 2041 a 2070 e de 2071 a 2100.

Alguns destaques do relatório Impacto da Mudança Climática nos Recursos Hídricos do Brasil:

>> A disponibilidade hídrica pode cair até 40% em regiões hidrográficas do Norte, Nordeste, Centro-Oeste e parte do Sudeste até 2040;
>> Com essa redução, existe uma tendência de aumento do número de trechos de rios intermitentes, aqueles que secam temporariamente, especialmente na região Nordeste;
>> Já o Sul apresenta uma tendência de aumento da disponibilidade hídrica de cerca de 5% até 2040, mas com uma maior imprevisibilidade e um aumento da frequência de cheias e inundações;
>> No Nordeste, há uma tendência de redução das vazões dos rios e dos volumes médios de chuvas, trazendo uma perspectiva de diminuição da disponibilidade de água da região e intensificação da seca tanto no semiárido quanto na faixa litorânea;
>> O Norte possui tendência de redução nas vazões e volumes médios de chuvas e a perspectiva de secas mais frequentes e intensas nessa região que abriga grande parte da Amazônia;
>> No Sudeste predomina, sobretudo na faixa litorânea, a tendência de redução nas vazões em função da mudança climática, ocasionando a diminuição da disponibilidade de água nas bacias hidrográficas da região. 

A importância da participação popular na gestão das águas

Foto: CBHSF

Maciel Oliveira iniciou a sua trajetória em defesa do meio ambiente e das águas em 2001, quando participou, em Alagoas, da mobilização para a criação do Comitê de Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF), tido como o maior parlamento das águas do país. “Na época não tínhamos muito recurso financeiro, e tudo era feito de forma colaborativa e voluntária. Ao longo dos anos, continuei participando dos bastidores do CBHSF como apoio à Secretaria Executiva, membro da câmara, e, 20 anos após a sua criação, me torno presidente deste comitê, o que tanto me orgulha”, relembra. 

O CBHSF é um órgão colegiado, integrado pelo poder público, sociedade civil e a população do entorno da bacia, cujo objetivo é a gestão descentralizada e participativa dos recursos hídricos da Bacia do rio São Francisco, na perspectiva de proteger os seus mananciais e contribuir para o seu desenvolvimento sustentável. 

Por meio de decreto presidencial em 5 de junho de 2001, o governo federal encarregou  o grupo de atribuições normativas, deliberativas e consultivas.

O comitê conta com 62 membros, sendo que os usuários somam 38,7% do total, o poder público (federal, estadual e municipal) representa 32,2%, a sociedade civil representa 25,8%, e as comunidades tradicionais 3,3%.

O diferencial do colegiado, justifica Maciel, é que se antes o poder decisório ficava restrito ao Estado, a partir do decreto em 2001 o CBHSF pode decidir sobre temas importantes em sua área de atuação, que é a bacia hidrográfica. “O Comitê é a voz do povo, da sociedade civil, dos pescadores, dos quilombolas, dos povos originários, dos usuários de água de vários segmentos e do poder público. Ou seja, o povo discute, decide e realiza”, enfatiza.

A participação social na gestão dos recursos hídricos é necessária, mas não esgota, por si só, os desafios para uma bacia hidrográfica de cerca de 641 mil km², o que corresponde a 8% do território nacional. Uma das principais bandeiras do coletivo, expõe Maciel, é a revitalização da bacia, para melhorar a qualidade ambiental e, consequentemente, a vida da população.

“O CBHSF realizou projetos importantes para o abastecimento de comunidades indígenas da bacia, inclusive o maior sistema de fornecimento de água para uma aldeia indígena do Brasil foi elaborado e financiado com recursos do Comitê, quase R$ 9 milhões, para atender ao povo Kariri Xocó, em Porto Real do Colégio (AL). Entretanto, temos muitas outras comunidades passando sede, e o comitê está em busca de parceiros para conseguir resolver”, destaca o presidente.

Outro ponto de atenção para o Comitê é o apoio às fiscalizações integradas na bacia, coordenadas pelos Ministérios Públicos. “Elas são fundamentais para mantermos o meio ambiente de forma equilibrada. Não adianta recuperarmos uma Área de Preservação Permanente (APP), nascentes e afluentes, se, por outro lado, o desmatamento continua. Por isso, o CBHSF apoia a FPI [Fiscalização Preventiva Integrada] em toda a bacia”, pontua.

“Agora a lagoa estava cheia, tinha coberto os currais que ele construíra. O barreiro também se enchera, atingia a parede da cozinha, as águas dele juntavam-se às da lagoa” 
Trecho do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos

A água no planeta azul

De acordo com relatório da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura, a Unesco, divulgado em 2023, cerca de 26% da população global não tem acesso à água potável, o que equivale a cerca de  2 bilhões de pessoas. 

Outro desafio é a falta de acesso ao saneamento básico,  que atinge cerca de 46% dos habitantes do planeta, ou 3,6 bilhões de pessoas.

Assim como o recente estudo da ANA, a Unesco alerta que a parcela da população urbana global que atualmente já enfrenta a escassez de água deve dobrar. Segundo a agência, em 2016, eram 930 milhões de pessoas com falta de água, o que deve saltar para cerca de 2 bilhões até o ano de 2050.

A luta pela água no oeste baiano

Em 2017, num período de forte seca, cerca de 10 mil pessoas saíram às ruas do município de Correntina, no Oeste da Bahia, para denunciar o uso abusivo das águas do rio Arrojado – principal responsável pelo abastecimento da região – e o seu baixo nível em consequência do intenso desmatamento, da retirada – legal e ilegal – de água superficial e subterrânea, sobretudo por empresas ligadas ao agronegócio. Com roupas pretas em sinal de luto, a população, do campo e da cidade, se uniu e deu início a uma série de ações nas ruas e nos tribunais contra a falta de água.

Foto: Thomas Bauer

Luciana Khoury, promotora de justiça regional ambiental de Paulo Afonso (BA) e coordenadora do Núcleo de Defesa da Bacia do São Francisco, acompanhou de perto a articulação popular e integrou algumas audiências públicas na região após as mobilizações. “A população de Correntina, em especial as comunidades tradicionais, são muito conscientes da importância da água. Por ser um bem público, ele precisa ter gestão e controle, de modo a assegurar que os seus usos por alguns não signifique a sua exaustão”, analisa.

Além da mobilização popular, a promotora destaca outra importante ação desenvolvida na região: a elaboração do Plano de Recursos Hídricos na Bacia do Corrente, que contempla a região baiana. “Foi uma oportunidade de considerar a situação da bacia, fazer um diagnóstico e levantar aspectos de preocupação quanto à qualidade e quantidade da Bacia do Rio Corrente, afluente de tamanha importância para o Rio São Francisco.”

A Bacia do Velho Chico não é a única situada na região. Debaixo do território situa-se um dos importantes aquíferos nacionais, o Urucuia, fundamental para a recarga de água do São Francisco e de outras fontes. Com tamanha importância hídrica regional e nacional, o Plano de Recursos Hídricos contribuiu, de acordo com Luciana, para uma pactuação entre os atores do Comitê da Bacia do Corrente sobre diretrizes para a gestão das águas. 

“Isso traz um horizonte relevante para a atuação na gestão da bacia, prevendo mais água para as funções ecológicas dos rios. O Comitê, ao aprovar o plano, aponta condições para a utilização da água para a irrigação, com limites e capacidade de suporte do ambiente, mantendo abastecimento para as comunidades e para a preservação dos rios e mananciais”, explica a integrante do Ministério Público.

Apesar desses avanços, Luciana apresenta mais elementos que podem ampliar e melhorar a qualidade da participação social na gestão das águas, confira:

  • É essencial que a gestão seja participativa, tendo os comitês de bacia o papel essencial de parlamento das águas, o qual aprova o plano de recursos hídricos, principal instrumento de gestão, e decide diante dos conflitos sobre o uso da água;
  • Se faz importante o fortalecimento dos comitês, principalmente por sua composição, com representações do poder público, população que é abastecida pela água e sociedade civil, o que permite um diálogo entre os diversos interesses e visões;
  • A gestão participativa das águas é essencial para que ocorra uma boa governança desse bem comum. Sem participação social, não se alcançará os objetivos da Política Nacional de Recursos Hídricos, que prevê a sua gestão participativa e descentralizada, por bacia ou sub-bacia hidrográfica;
  • É essencial incluir cada vez mais povos e comunidades tradicionais na gestão das águas, pois são os que cuidam de forma mais equilibrada e harmoniosa pela sua essência.

Iniciativa latina:  Rede Eclesial Platina

A defesa das fontes de água extrapola barreiras, questões nacionais e fronteiras, assim como esse bem comum. Bacias hidrográficas e aquíferos em solo brasileiro são fundamentais não apenas para a população, fauna e flora local, e sim para toda a América Latina. Isso suscitou a criação da Rede Eclesial Platina (REPLA), a qual reúne pastorais, organizações e movimentos sociais desse amplo território.

O nome da Rede faz referência à bacia Platina, formada por rios localizados na Argentina, Brasil, Bolívia, Paraguai e Uruguai.

O grupo tem se reunido para discutir a defesa das águas e a diversidade nos países, além de aprofundar o debate sobre questões sociais, culturais, econômicas, ambientais e os impactos da ação humana e das mudanças climáticas.

“Em sintonia com o Papa Francisco, que defende a ecologia integral, onde tudo está interligado, a Rede aprofunda a temática dos territórios a partir daquilo que surge e fere a obra da criação, fere a dignidade das pessoas humanas e que nos chama em conjunto a buscar transformações para o bem comum para que a vida possa existir”, explica frei Marx Rodrigues, diretor secretário do Sefras – Ação Social Franciscana, que compõe a rede.

Convite: participe do evento presencial e virtual, aberto ao público com inscrição prévia, da ANA em celebração ao Dia Mundial da Água, 22 de março, na sede da instituição em Brasília

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