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Publicado em

24/04/2025

Documentando memórias para a perpetuação dos nossos saberes e fazeres



Por Luciene Kaxinawá

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Lideranças indígenas em reunião dentro do território indígena. Foto: Sérgio Suruí

Nós, povos indígenas, apesar de uma diversidade cultural imensa, temos práticas semelhantes para perpetuar os nossos saberes e fazeres. A primeira delas é de forma oral. Durante muitos e muitos anos, os nossos aprendizados eram transmitidos somente de forma oral por meio dos cantos, rezas e contação de histórias, dependendo dos ensinamentos dos mais velhos e das nossas memórias. Também é possível encontrar nossos saberes por meio dos rituais, grafismos e artesanatos.

Com a chegada dos colonizadores em nossos territórios, tudo isso ficou em risco e fomos obrigados a também aprender a como guardar as nossas memórias com outros métodos, como a escrita e o audiovisual. Conheça as diversas maneiras como guardamos nossos saberes e fazeres hoje em dia nas comunidades:

Líder indígena Mopiri Suruí usando cocar tradicional Paiter Suruí e colar
vermelho e branco que simbolizam liderança e sabedoria. Foto: Luciene
Kaxinawá

Para preservar nossos costumes e cultura é preciso
preservar nossas memórias

Mopiri Suruí é liderança do Povo Paiter Suruí, o território fica localizado no Estado de Rondônia e parte do Mato Grosso. Já foi cacique geral e é um dos anciões do tempo antes do contato com o não indígena. Ele, ainda hoje, se lembra de como era a vida antes do contato e como tudo mudou depois disso. “Antes, vivíamos em união, éramos organizados, a comunidade vivia em grupos, mulheres, homens, jovens. As nossas comidas eram diferentes, tradicionais, sem tempero. Hoje mudou tudo. Atualmente comemos compras da cidade, carne, frango, esses tipos de comidas que não comíamos antes, vestimos roupas, comemos comidas temperadas. Hoje, cada um tem a sua terra para ter suas próprias necessidades!”

Pai de 12 filhos, muitos netos e netas e uma bisneta, ele se preocupa com a preservação da sua cultura. Para ele, a valorização dos saberes e fazeres deve permanecer, principalmente pelos mais novos. “A valorização da cultura indígena é ensinar os jovens da aldeia, para não perder o costume e a cultura, comer comidas tradicionais, usar nossos artesanatos, pinturas tradicionais, manter os mitos e histórias e contar para os mais novos!”

O Povo Paiter Suruí tem apenas 55 anos de contato com o não indígena, mas, infelizmente, foi tempo suficiente para muito de sua cultura desaparecer: não há mais pajé, nem celebração do casamento tradicional. Muitas pinturas e artesanatos só os mais velhos é que sabem.

Adilma Palitot foi a primeira professora não indígena que atuou dentro do território Sete de Setembro, do Povo Paiter Suruí, e ela tem várias lembranças desse tempo. “Muita coisa já mudou. Tem escola, estrada, energia”, diz a professora. Mas a perda da memória cultural foi uma das coisas que mais lhe chamou a atenção. Hoje, um dos projetos desenvolvidos na área da educação para o resgate da cultura é o Programa de Melhoria na Qualidade de Ensino-Excelência, com atividades interdisciplinares dentro do currículo escolar das escolas indígenas do Estado de Rondônia.

Além desse projeto nas escolas indígenas, o Povo Paiter também investe na formação de comunicadores que atuam no audiovisual. Atualmente existe o Coletivo Lakapoy, que se organiza para resgatar o acervo histórico do Povo Paiter Suruí na Pontifícia Universidade Católica (PUC) e é formado por indígenas que atuam com o objetivo de contar e documentar a história do seu povo. Existe também a primeira agência de turismo indígena do Brasil que realiza oficinas de contação de histórias, pinturas ancestrais e culinária tradicional e realiza o intercâmbio de saberes ancestrais para com os mais novos.

Medicina viva

Ubiraci Pataxó pertence ao povo Pataxó da aldeia de Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália, na Bahia – maior aldeia urbana da América Latina. Ele é guardião de saberes e fazeres do seu povo. Um jovem mestre do saber e aprendiz de pajé, graduado em Ciências da Natureza e Matemática, no curso de Licenciatura Intercultural Indígena, pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Também formado em Terapia Comunitária Integrativa (TCI), Massoterapia e Técnica em Resgate da Autoestima pela Universidade Federal do Ceará (UFC), em parceria com o Movimento Integrado de Saúde Comunitária Quatro Varas (MISMEC – Projeto 4 Varas).

O jovem atua como pesquisador nos projetos “Saúde Coletiva e Epistemologias do Sul e Interculturalidades”. Está como presidente do Instituto Korihé, organização que atua ofertando espaços de cuidado para as pessoas, em especial para as que estão em sofrimento, e formando cuidadores e/ou profissionais de diversas áreas a atuarem no reequilíbrio do corpo, mente e espírito de cada sujeito.

O Método Korihé consiste na reunião dos diversos saberes do Povo Pataxó relacionados ao ato de cuidar – interpretação de sonhos, massagem corporal, benzimentos, cantos, rezas, danças, chás, banhos de ervas, preparação de garrafadas, visões, encantaria, aconselhamentos, liderança, conhecimento da mata, acolhimento, cachimbo, rapé, defumação e limpeza do corpo e alma. O ensino de cada uma dessas práticas se dá no dia a dia da comunidade indígena, pelas crianças, jovens, adultos e idosos e se mantém firme, ao longo dos anos, resistindo a processos como avanços tecnológicos e a influência de outras culturas. A cultura é um dos produtos do patrimônio de um povo.

Transformando nossas memórias em documento nos museus

Tarisson Nawa no British Museum. Foto: Arquivo pessoal

Para o Mestre em Antropologia Social e antropólogo indígena do Povo Nawa, no Acre, Tarisson (Ykarunī) Nawa, existem algumas motivações para a preservação dos costumes e tradições dos povos indígenas. “É a valorização da história e da memória com protagonismo indígena. Nós falamos por nós mesmos. Esse é o motivo cultural e social, mas também existe o motivo muito mais político, o objetivo de direitos no Brasil, principalmente o de reconhecimento de direito territorial, das terras indígenas. Como são peças e elementos da cultura, são esses materiais que acionam a memória do passado e que podem ser mecanismo de retificação de territórios”, diz o antropólogo indígena.

Tarisson, que está passando pela transição de nome civil para seu nome na língua materna (Ykarunī), é também jornalista e cursa doutorado em Antropologia no Museu Nacional na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, Ykarunī é curador indígena das coleções etnográficas do Museu Nacional, sobretudo as coleções indígenas, um trabalho que atua diretamente nas comunidades e, principalmente, com as lideranças indígenas. “Recentemente, fui o primeiro indígena da América Latina a participar do programa de treinamento internacional do Museu Britânico, em Londres. Teve representantes de diversas partes do mundo.”

Nossos contos e a literatura

Papiõn Cristiane Santos é indígena em contexto urbano, escritora, ativista social atuante no combate à intolerância religiosa, LGBTQIAPN+, professora de moda decolonial indígena, idealizadora dos bonecos pedagógicos Pia e coordenadora da Oca Observatório Cultural das Aldeias. Ela faz parte, ainda, do Mulherão de Letras Indígenas e Diálogos de Paz criado por Don Orani Tempesta, e do Instituto Religare,
representando o Catimbó de Jurema.

“Meu primeiro livro, Boto Tucuxi, é uma coleção das histórias indígenas contadas na versão étnica, onde o que todos leem como lendas, falamos como sagrado e histórias locais dos indígenas brasileiros. Levou seis anos para ser publicado. Ouvi os ribeirinhos da Ilha de Marajó, de Macapá e meu Tio Dig Dig, exímio contador de histórias, causos e história local da minha terra Oiapoque”, relembra a escritora.

Um dos grandes desafios, segundo Papiõn, é ir além da oralidade e transformar os ensinamentos, os contos, as histórias indígenas em conhecimento escrito por meio da literatura. Mas, em sua opinião, com a globalização das culturas indígenas, foi possível avançar com as escritas literárias.

“Um desafio que ganhou prospecção com Ailton Krenak fazendo parte da Academia Brasileira de Letras e os encontros indígenas de literatura pelo Brasil. Mas ainda é um desafio com as editoras. O número de escritores indígenas independentes é maior que os indígenas com editoras”, diz Papiõn.

*Luciene Kaxinawá – primeira jornalista e apresentadora indígena da TV brasileira. Há 10 anos exerce a profissão. Atualmente, é apresentadora no Canal Futura e colunista Terra. É premiada nacional e internacionalmente pelo seu profissionalismo e representatividade. @lucienekaxinawa

Fique por dentro

> Agência Yabnaby: bit.ly/RCC_12_26
> Coletivo Lakapoy: www.instagram.com/paiter_surui
> Dissertação de Tarisson Nawa: bit.ly/RCC_12_27
> Instituto Korihé: www.instagram.com/institutokorihe
> Livro Boto Tucuxi: bit.ly/RCC_12_28
> Ubiraci Pataxó: www.instagram.com/ubiracipataxo


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