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Publicado em

15/06/2023

Fé, política e diversidade: por uma democracia permeada pelo cuidado com a Casa Comum

Como a fé tem sido cada vez mais utilizada para justificar opções políticas e líderes religiosos engajados na disputa de projetos societários, é preciso aprofundar a compreensão sobre essa relação e seus impactos na democracia brasileira.

Por Dayse Porto

Religião e política não se discutem! ” É muito difícil achar alguém que nunca tenha ouvido essa afirmação na tentativa de evitar uma conversa que pudesse gerar um embate de ideias. A frase é um reflexo do senso comum que reforça o mito da cordialidade, da passividade, do “bom hábito” brasileiro de sempre fugir de conflitos, especialmente os relacionados a esses dois temas: fé e política.

A diversidade religiosa é, frequentemente, pauta na mídia devido a casos de violência em decorrência de manifestações de fé. Segundo pesquisa coordenada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras, quase metade dos terreiros no Brasil registrou até cinco ataques nos últimos dois anos. Crimes dessa natureza aumentaram 45% no Brasil no mesmo período e as denúncias mostram que o alvo mais frequente são os cultos de matriz africana, ou seja, o racismo religioso tem gerado violência contra, majoritariamente, as pessoas negras.

Embora exista uma forte campanha de organizações da sociedade civil e movimentos sociais para que seja garantida a laicidade do Estado, a fim de assegurar que direitos e liberdades de todas as pessoas sejam respeitados, há também uma necessidade urgente de dar luz à relação entre religião e política. O conflito entre as duas áreas, que já era grande o suficiente para virar um clichê, se tornou ainda mais polêmico na última década devido ao aumento crescente da polarização política, acentuada e com forte participação de instituições religiosas e personalidades públicas que atrelam suas imagens e atuações à alguma doutrina e/ou prática religiosa.

Marchas, mobilizações, coletivos e até projetos de lei relacionados a pautas religiosas foram aumentando em todo o Brasil nos últimos anos e, consequentemente, a fé foi sendo usada como justificativa para opções políticas e, até mesmo, violências praticadas contra grupos divergentes. Cada vez mais, se apela ao religioso para atacar e defender interesses, projetos e grupos políticos.

“Toda comunidade religiosa aparentemente apolítica só favorece a política dominante, ainda que injusta.”
Frei Betto

A provocação acima é de Frei Betto, frade dominicano, jornalista, escritor e uma das maiores referências brasileiras quando o assunto é fé e política. Ela nos convoca a pensar sobre a relação intrínseca da religiosidade e da política brasileira e seus impactos na vida cotidiana, especialmente os efeitos para as minorias sociais.

Com o movimento de mobilização e engajamento político de grupos religiosos, especialmente a partir do governo de Jair Bolsonaro, apresentou-se um novo cenário: por uma lado, a fé motiva parte da sociedade em busca de mudanças sociais, que se envolve em campanhas por justiça social, direitos humanos e igualdade, que reflitam seus valores religiosos.

Mas a religião também pode ser usada para justificar atos discriminatórios e de intolerância e para respaldar ações violentas e extremistas, como os ataques realizados por fascistas em Brasília no início de 2023. Mas isso não é uma novidade: historicamente, no Brasil, candidatos e partidos políticos também utilizam a religião para ganhar apoio eleitoral, ou para justificar políticas e ações que violam direitos de alguns grupos sociais, mas que atendem a demandas de bases religiosas.

>> Analisamos os ataques em Brasília na última edição da Revista Casa Comum. Conheça mais sobre o assunto aqui.

A política do bem comum: tudo que existe é para todas as pessoas 

“Quando a gente nasce, a gente precisa das políticas públicas de saúde. Quando a gente cresce, precisa das políticas públicas de educação para se desenvolver e a gente vai vivendo e precisando de uma série de políticas públicas. Por isso, na Pastoral, trabalhamos tanto com formação, uma tentativa de compreender melhor qual é o nosso papel enquanto cristãos e cristãs na sociedade”, comenta. 

Para Mônica, a essência de todas as religiões é desenvolver os seres humanos para que caminhem para frente e vivam com dignidade, mas, nos últimos anos, ficou evidente que muitas vezes a teoria não coincide com a prática. “Diversos grupos religiosos atuaram politicamente com interesses completamente diferentes daquilo que o evangelho nos pede e ajudaram a fortalecer os movimentos de extrema direita.”

Por isso, ela defende a necessidade do engajamento das instituições religiosas no fortalecimento da democracia. “Se a religião é o pano de fundo de movimentos conservadores, também pode ser pano de fundo para a democracia avançar, para a construção de uma sociedade da justiça social, do amor, da igualdade, defendendo que tudo que existe é para todas as pessoas”, afirma. 

Sobre a importância da diversidade religiosa nesse processo de reconstrução da democracia e da necessidade de reforçar e ampliar as práticas ecumênicas, Mônica destaca o trabalho da Frente Inter-religiosa Dom Paulo Evaristo Arns por Justiça e Paz, da qual também faz parte. A iniciativa tem como objetivo aglutinar diversos movimentos religiosos em torno de pautas comuns “porque a casa comum é uma só”.  

Um dos desafios, em sua opinião, é avançar no ecumenismo para além das instituições cristãs, pois, nesse campo, já existem diversas iniciativas de aglutinamento em torno de agendas em comum, mas a articulação com religiões de outras matrizes ainda é deficitária. A Via Sacra do povo em situação de rua, realizada na sexta-feira santa deste ano, pela Pastoral Povo da Rua (@pastoralpovodarua no Instagram), em São Paulo, é um ótimo exemplo para Mônica, pois a manifestação contou com a presença de líderes de diversas denominações religiosas.

Mônica acredita que todas as religiões devem se apropriar da política para construir uma democracia permeada pelos princípios de amor, igualdade, liberdade, solidariedade e “de não deixar ninguém pra trás”. 

Papa Francisco em Genebra, nos 70 anos do Conselho Ecumênico das Igrejas, ao lado de outros líderes religiosos. Foto: Vatican News

A busca pela união não “apesar” das diferenças, mas sim “com” as diferenças

Certa vez, São Francisco de Assis foi questionado sobre o que seria um frade perfeito. Em sua resposta, ele elencou características de um por um dos frades presentes no grupo, afirmando que a perfeição não cabe em uma única pessoa, mas na fraternidade, em que cada um oferece o que tem de melhor.

Quem nos conta essa história é o Frei Lorrane Clementino, frade franciscano que vive em Salvador, na Bahia, e atua com populações em situação de vulnerabilidade social. Para o religioso, ela é uma síntese sobre a essência do ecumenismo e do diálogo inter-religioso, poisé nas diferenças que se constrói a vida comunitária.

O Frei explica que a prática franciscana tem essa característica de valorizar a vivência com as diferenças como um fator que potencializa a ação religiosa e fortalece o ecumenismo. “O mundo não é só cristão, tem esferas religiosas de todos os tipos, muitas doutrinas diferentes e podemos aprender muito com o diálogo e as diferenças entre elas”, afirma.    Retomando a definição do Papa Francisco para a política como um “instrumento para o bem comum”, Frei Lorrane argumenta que religião significa religar a relação do homem com o divino e que “essa ligação é também uns com os outros porque ninguém se salva sozinho”. Nesse sentido, ele aponta para a urgente necessidade de reconexão entre todas as pessoas enquanto sociedade e enquanto população que habita uma Casa Comum, relembrando os retrocessos dos últimos anos no campo dos direitos humanos e socioambientais.   

Nesse ponto, o Frei aponta a responsabilidade de líderes religiosos de todas as denominações. “É preciso ter cuidado com o que se fala, a forma que se fala e com a instrução que se dá”, destacando o crescente impacto da disseminação de fake news nos grupos religiosos e a necessidade de que as instituições combatam a desinformação para corroborar com tendências antidemocráticas. 

Para isso, o religioso acredita que é preciso descolonizar a mentalidade de que pregar o evangelho é apenas algo impositivo, como foi no passado. “É a partir das ações e do exemplo que podemos atrair mais pessoas para nossa fé, não por meio de imposições”. Ele defende que o valor das práticas ecumênicas e esforços para o diálogo inter-religioso está justamente na comunhão com outras religiões, “sem a pretensão de converter, e sim conviver na diferença”. 

As ilustrações utilizadas na matéria foram retiradas do caderno Encantar a Política, projeto tem como proposta atuar na formação do eleitorado brasileiro por meio de um processo que possibilite uma leitura crítica do momento atual e que aponte para o exercício de uma cidadania ativa. Acesse e conheça!

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