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Publicado em

29/08/2023

Humanismo profundo e democracia socioecológica: como seres humanos podem retomar caminho de cuidados consigo e com a casa comum

Em entrevista exclusiva à Revista Casa Comum, o filósofo, teólogo e escritor Leonardo Boff faz uma análise da falta de humanidade enquanto um dos problemas mais angustiantes da cultura mundial atual e reforça a importância da vida do espírito como caminho para um olhar cuidadoso para com os irmãos e irmãs e para o meio ambiente.

Por Maria Victória Oliveira

Além de mostrar que todos os seres humanos estão suscetíveis a padecer de um vírus de surgimento repentino, a pandemia de Covid-19, uma das maiores tragédias da história recente, também demonstrou como a ação humana prejudica o meio ambiente, diariamente e a todo minuto, e faz uso indevido e incansável de seus recursos finitos. Desde os canais de Veneza, na Itália, cujas águas ficaram mais claras com a ausência dos turistas e barcos, até mesmo satélites apontando melhoria na qualidade do ar simultaneamente em diferentes cidades brasileiras, fato é que a natureza se beneficiou dos carros parados nas garagens, de menos aviões no céu e da humanidade em quarentena.

Os efeitos da globalização têm sido amplamente debatidos por diferentes personalidades, pesquisadores e especialistas e suas linhas de estudo, que criticam a diminuição de cuidados para com o meio ambiente em prol do acúmulo desenfreado e do consumismo acelerado. Na encíclica Laudato Si’, o Papa Francisco cita a chamada Casa Comum enquanto “irmã que clama contra o mal que lhe provocamos por causa do uso irresponsável e do abuso dos bens que Deus nela colocou.

Foto: Acervo leonardoboff.org

Para Leonardo Boff, filósofo, doutor em teologia, escritor, professor e membro da Iniciativa Internacional da Carta da Terra, a falta de um olhar atento para o outro e as múltiplas agressões à Mãe Terra são sintomas da falta de humanidade, o que chama de um dos problemas mais angustiantes da cultura mundial atual.

Autor de mais de 60 livros sobre teologia, espiritualidades, filosofia e antropologia, entre eles Ética e Espiritualidade: como cuidar da Casa Comum, o filósofo defende que é somente o chamado humanismo universal, sem qualquer discriminação, que poderá devolver a humanidade aos seres humanos, atualmente coberta pelo individualismo, egoísmo, insensibilidade e falta de compaixão e cuidado de uns com os outros e com o meio ambiente.

Em entrevista à Revista Casa Comum, o autor comenta sobre como a espiritualidade extrapola os limites de cada religião e une todas e todos enquanto seres capazes de transformar a realidade, e, portanto, cuidar de sua Casa Comum. Confira a seguir.

Revista Casa Comum: Se a falta de humanidade é essa ausência de olhar para o outro em suas dores, buscas e necessidades, o que seria esse humanismo radical ao qual você se refere?

Leonardo Boff: Uma das consequências das religiões e, principalmente, da tradição judaico-cristã, é a promoção do ser humano em sua humanidade. Todas as religiões, além de promover o encontro com a divindade, buscam uma humanização do homem, pois todas dão centralidade ao amor, à solidariedade, à compaixão e à reverência face ao Sagrado.

Os neurocientistas identificaram o que chamaram “o ponto Deus no cérebro”. Ao abrir-se a Deus ou ao Sagrado, verificaram que, na parte frontal do cérebro, há uma significativa aceleração dos neurônios. Assim como temos órgãos exteriores, como os olhos, o ouvido e outros, dizem que temos um órgão interior pelo qual captamos aquela energia poderosa e amorosa que tudo sustenta, que costumamos chamar de Deus. Ocorre que nossa cultura materialista e consumista cobriu com cinzas esse ponto Deus. Cabe liberá-lo para nos fazer mais sensíveis, mais abertos ao mistério de todas as coisas e àquele Ser que faz ser todos os seres, vale dizer, Deus. Abrir-se a essa Suprema Realidade significa realizar um humanismo profundo, verdadeiramente radical.

Revista Casa Comum: Essa centralidade do amor, solidariedade e compaixão expressa por todas as religiões dialoga com a encíclica Fratelli tutti, do Papa Francisco. O texto fala de um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço e uma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas, independentemente da sua proximidade física, de onde nasceu ou habita. Apesar de ser um posicionamento da igreja católica, a encíclica pode ser encarada como uma “forma de vida” conectada à espiritualidade e ao respeito a todos os seres e ao meio ambiente?

Leonardo Boff: O amor pertence ao DNA do ser humano. Quem o diz é o grande biólogo James D. Watson, que, em 1952, decodificou o código genético humano em seu livro DNA: o segredo da vida. Ele diz que “a essência de nossa humanidade reside no amor, esse impulso que nos faz ter cuidado com o outro e que permitiu nossa sobrevivência neste planeta”. Esse dado científico vem corroborar a mensagem de Jesus e da fé cristã. Segundo São João, Deus é amor. Já São Paulo, nos seus textos, de forma resumida, afirma: “quem tem o amor tem tudo”. Esse amor não é monopólio do cristianismo e de nenhuma religião, é um dado objetivo de nossa própria realidade humana. Como diria o poeta e escritor italiano Dante Alighieri, no final dos três cânticos: “O amor move o céu e todas as estrelas.” E eu diria, também, nossos corações.

Revista Casa Comum: Além desse amor que representa a essência de nossa humanidade, que outras características nos fazem ter esse olhar cuidadoso para com o outro e também para com a Mãe Terra?

Leonardo Boff: A solidariedade é um traço essencial do ser humano. Foi ela que permitiu o salto da animalidade para a humanidade. Isso ocorreu quando nossos ancestrais buscavam o alimento e não o comiam sozinhos, mas o levavam ao grupo, serviam primeiro os mais novos, depois os mais velhos e, finalmente, todos comiam juntos. Essa solidariedade, uma verdadeira comensalidade, nos fez humanos. O que valeu ontem, possui valor ainda hoje. E como ela nos faz falta.

Revista Casa Comum: No contexto da Covid-19, você comentou que o mais difícil de sustentarmos é a esperança, já que estamos todos cansados. No que se baseia essa esperança? Fé, religião e espiritualidade podem ser fontes de renovação para o cuidado conjunto e responsável da Casa Comum?

Leonardo Boff: A esperança é mais que uma virtude. É um princípio, vale dizer, uma energia interior que nos leva sempre a melhorar, a projetar sonhos de um futuro bem-aventurado. Como acentua [a encíclica] Fratelli tutti, ela pertence ao profundo humano e, também como o amor, pertence à nossa essência. Somos seres de esperança que continuamente vivem o esperançar do educador Paulo Freire, que é o empenho humano de transformar a esperança em impulso para o novo e para a geração de uma nova forma de viver, na qual não seja tão difícil o amor.

Revista Casa Comum: O que abrange o conceito de democracia socioecológica? Essa abordagem pode nos guiar em direção a um melhor e mais intencional cuidado?

Leonardo Boff: Hoje as Ciências da Terra e da vida se deram conta de que todos os seres, especialmente os vivos, são compostos com os mesmos elementos que maduraram nas grandes estrelas vermelhas. Estas explodiram e espalharam os elementos por todo o espaço. Surgiram as galáxias, as estrelas e os planetas, como o nosso. Um laço de parentesco une a todos os seres, como o enfatiza a Carta da Terra e a Fratelli tutti.

Por causa disso, todos os seres possuem um valor próprio, independentemente do uso humano, como diz o líder indígena, ambientalista e filósofo, Ailton Krenak, em A vida não é útil. Daí a Organização das Nações Unidas (ONU) ter declarado os direitos da natureza e, especialmente, da Mãe Terra. Como são sujeitos de direitos, todos eles são nossos cidadãos e compõem a nossa convivência humana. Daí ser a democracia uma biocracia, ou uma democracia socioecológica.

A lógica capitalista tem sido amplamente criticada enquanto abordagem econômica que não considera os efeitos da ação humana na natureza.

Em A vida não é útil, Ailton Krenak, líder indígena da etnia Krenak, ambientalista, filósofo e escritor, recorre ao rompimento de uma barragem de contenção de resíduos, que poluiu mais de 600 quilômetros de rio, para afirmar que “quando nós despersonalizamos os rios e as montanhas e tiramos deles o seu sentido, que consideramos ser um atributo exclusivo dos humanos, nós lideramos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista.”

Trata-se, então, de uma dualidade: enquanto os povos da floresta tratam montanhas, rios e suas águas e a floresta e suas árvores e frutos como entidades vivas e, portanto, usam a natureza com responsabilidade, consideração e respeito, única e exclusivamente para sua sobrevivência, a sociedade capitalista, majoritariamente encabeçada por homens brancos, depreda, explora, desmata e violenta o meio ambiente, sem considerar a importância de ciclos naturais para a continuidade da vida no planeta.

Alguns movimentos e organizações têm surgido para mostrar – e tentar executar – outros caminhos e alternativas para o capitalismo, isso porque muitas economias têm mostrado sua insustentabilidade. No contexto brasileiro, por exemplo, 49% dos brasileiros (23% da população) afirmam não ter renda suficiente para se manter e precisam do apoio do governo, segundo dados do Cadastro Único (CadÚnico); já a Confederação Nacional de Dirigentes Lo- jistas aponta que quatro em cada dez brasileiros estavam negativados até setembro de 2022; no segundo trimes- tre de 2022, mais de 10 milhões de pessoas estavam desempregadas no país, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Assim, especialistas reforçam não só a importância, mas a necessidade de novos modelos econômicos, como acredita Ladislau Dowbor, professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.

“Um denominador comum é que nós precisamos de uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável. Não podemos continuar nesse rumo destrutivo ambientalmente, é inviável”, afirmou na terceira edição da Revista Casa Comum, que teve como tema as economias transformadoras.

A edição traz reportagens e análises sobre economias solidárias para a construção de outros mundos possíveis e um olhar cuidadoso para a humanidade e para o planeta.

Na opinião de Naiara Bittencourt, advogada na organização Terra de Direitos, integrante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida e do Coletivo de Articulação Política (CAP) da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), é preciso “pensar como é possível fortalecer o Estado brasileiro, para coibir práticas ilegais [desmatamento, queimadas, elevação das milícias rurais, do garimpo ilegal e de armas de fogo], ao mesmo tempo em que valorizamos os povos que ocupam esses territórios: povos originários, comunidades tradicionais e quilombolas, que tradicionalmente preservam essas áreas. Ou seja, é preciso retomar outras possibilidades de vida, de preservação, e valorizar modelos que já existem”, destacou em entrevista à Revista Casa Comum.

Revista Casa Comum: Como você mencionou, Ailton Krenak fala sobre como os povos originários, que estão vivendo na pele os efeitos da lógica do ocidente, “escaparam” e resistiram para não serem engolfados pelo mundo utilitário. Como aprender, principalmente com os povos originários, sobre o exercício da espiritualidade e conexão e respeito para com o meio ambiente?

Leonardo Boff: Os povos originários mantêm com a natureza não uma relação utilitarista, mas de participação e comunhão. Nós, da cultura dominante, sentimo-nos senhores e donos da natureza, como o formularam os pais do paradigma da modernidade nos séculos 17 e 18. Na verdade, como enfatiza a Fratelli tutti, somos parte da natureza. Todos os seres vivos possuem o mesmo código genético de base, desde a bactéria que surgiu há 3,8 bilhões de anos, passando pelos dinossauros e os colibris, e chegando ao ser humano, temos os mesmos 20 aminoácidos e as mesmas 4 bases fosfatadas. Quer dizer, somos de fato, e não poeticamente, irmãos e irmãs. Mas não nos tratamos como tais. São Francisco intuiu essa realidade e chamava sinceramente a todos os seres com o doce nome de irmãos e irmãs. Só sairemos de nossa atual crise se fizermos a travessia do “senhor e dono” (dominus) para o irmão e irmã (frater, soror).

Revista Casa Comum: A ética do bem-viver dos andinos baseia-se no equilíbrio entre humanos, natureza e o universo, enquanto parte e não donos da natureza. Como é possível adotar e seguir essa postura e evitar o que você chama de relativização dos valores éticos, uma das consequências da globalização?

Leonardo Boff: A ética trata do bem-viver. A moral aborda as formas como os humanos, em suas diferentes culturas, procuram realizar o bem-viver. Então, surgem as várias formas da moral, mas todas elas se baseiam na ética fundamental do bem-viver, ou, como os clássicos diziam, a busca da felicidade. Hoje perdemos o sentido da ética e vivemos a confusão das morais, próprias de cada cultura. Não se busca mais o bem comum, o que seria a ética. Esta foi enviada ao limbo. Todos procuram meios para buscar satisfazer seus desejos, identificados por itens superficiais, como o acúmulo de riqueza, de status, de prazeres frívolos. Seriam essas as várias morais.

Como cada cultura apresenta o seu caminho, busca-se o que mais convém a cada um, sem maiores compromissos com o bem comum. Todos vivemos, hoje, sob a cultura do capital, que nos obriga a trabalhar para acumular, para consumir e para desfrutar dos bens e serviços escassos da natureza. Só com uma espiritualidade da autocontenção, da justa medida e da solidariedade podemos nos livrar da força sedutora da cultura do capital.

Revista Casa Comum: Como essa espiritualidade da autocontenção se relaciona com a vida do espírito e como isso se traduz em um maior cuidado e atenção para com o planeta?

Leonardo Boff: A importância da vida do espírito foi vista por Antoine de Saint Exupéry, conhecido pelo seu famoso O pequeno príncipe. Em 1944, antes de tomar o avião e depois se precipitar no Mediterrâneo, deixou sobre a mesa Uma Carta ao General X. Nela, diz que conhecemos a vida do corpo e, para isso, temos a medicina; temos a vida da psique, e nos assistem os psicólogos e psicanalistas. Só que esquecemos a vida do espírito, que vive do amor, da solidariedade e da reverência. Se tivéssemos cultivado a vida do espírito, não teríamos, diz ele, a guerra atual que ceifa milhares de vidas. E termina dizendo: “Como temos saudade de Deus.”

A vida do espírito nos faz sensíveis a tudo o que é bom, justo, amoroso e sagrado. Quem cultiva a vida do espírito, cuida de seu espírito, dos outros e da natureza da qual se sente parte, e, especialmente, da vida do espírito que tem a ver com Deus, que confere coesão e sentido à vida.

Fique por dentro
Acesse os links e saiba mais sobre a relação entre espiritualidade, ecologia e o cuidado com a Casa Comum.


A importância fundamental da vida do espírito [link]
O colapso atual da ética [link]
Princípio-bondade: um projeto de vida [link]
– Um humanismo radical [link]
A vida não é útil [link]
Encíclica Laudato Si’ [link]
Encíclica Fratelli tutti [link]

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