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Em Pauta

Publicado em

29/08/2023

Igrejas e iniciativas sociais e religiosas abrem as portas para pessoas excluídas em outros espaços e expressões de fé

Valores universais e acolhimento ao próximo devem abraçar as diversidades em todas as religiões.

Por Maria Victória Oliveira

De acordo com a pesquisa Global Religion 2023, realizada em 26 países, 89% dos brasileiros dizem acreditar em Deus ou em um poder superior; 90% – a maior taxa entre as nações pesquisadas – afirmam que essa crença em uma força maior ajuda na superação de crises; enquanto 70% acreditam que pessoas com uma fé religiosa são mais felizes.

Os dados apontam que, em momentos desafiadores e de dificuldades, seja por motivo de doenças, desastres, seja por conflitos, grande parte dos brasileiros busca, na religião, consolo e refúgio para renovação de forças e enfrentamento aos desafios diários.

É fundamental, portanto, que ambientes de expressão de fé, independente da religião à qual pertençam, estejam abertos a abraçar as múltiplas diversidades do povo brasileiro. Nesse contexto, o país tem visto surgir inúmeros espaços religiosos que acolhem os grupos minorizados e invisibilizados, que não se sentem bem-vindos em religiões e templos tidos como mais tradicionais.

Esse é o caso de Alexya Salvador. Se hoje, com seus quase 43 anos, soma conquistas – realizou sua transição de gênero, é professora, empreendedora, mãe de três filhos, a primeira travesti a se tornar reverenda na América Latina e a concluir, em 2015, um processo de adoção no Brasil –, nem sempre foi assim.

Foto: Wanezza Soares

Desde os sete anos, frequentava a igreja católica, onde se sentia protegida. Com o tempo, passou a encontrar muita dificuldade em poder realizar sua transição de gênero dentro da vida pautada no cristianismo. No ano de 2009, entrou em contato com a Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), de vertente protestante. “Foi lá que pude ressuscitar a minha fé e, depois de três anos, fazer a minha transição de gênero com calma. Encontrei uma igreja que me disse: “se é isso o que você realmente deseja, te daremos todo o suporte.’”

Intolerância que mata

Quando o assunto é violência contra grupos minorizados e intolerância religiosa, o Brasil ainda soma números alarmantes.

• Segundo o Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras, pelo 14o ano consecutivo, o Brasil figura como o país que mais assassinou pessoas trans e, ao mesmo tempo, o que mais consome conteúdos pornográficos trans nas plataformas digitais de conteúdo adulto.

• O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 aponta um aumento na violência contra pessoas LGBTQIA+: 35,2% mais agressões, 7,2% mais homicídios e 88,4% mais estupros.

• De acordo com o relatório Respeite o Meu Terreiro – Mapeamento do Racismo Religioso Contra Os Povos Tradicionais de Religiões de Matriz Africana, 78% dos entrevistados relataram que membros de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência, física ou verbal, por racismo religioso.

• Entre 2021 e 2022, houve um aumento de 106% no número de denúncias de intolerância religiosa no Brasil, com média de três denúncias por dia.

Cristianismo acolhedor

Fazer uma faculdade de teologia e estudar a teologia queer – que abarca vieses relacionados à identidade e à orientação sexual – possibilitou que Alexya Salvador fosse ordenada clé- riga em 26 de janeiro de 2020, três dias antes do Dia Nacional da Visibilidade Trans, e, com isso, se tornar reverenda da ICM. Hoje, usando uma faixa com as cores da bandeira trans por cima da batina, prega por um cristianismo acolhedor.

O verdadeiro ambiente cristão acolhe a pessoa em sua totalidade, da forma que Deus a fez. Mas precisamos ir além. Falamos em comunidades afirmativas, que percebem as pessoas como um arcabouço de vida, e, com isso, afirmadas naquilo que são em sua identidade, passam a se sentir amadas, valorizadas, queridas e recebidas com carinho. E quem não gosta disso?”, reflete Alexya.

Acenos da igreja católica

Em janeiro deste ano, o Papa Francisco declarou em entrevista à Associated Press – e amplamente divulgada pelos meios de comunicação na ocasião – que ser homossexual não é crime, e que leis que criminalizam a homossexualidade, mesmo que em relações privadas e consensuais – como acontece em 66 jurisdições pelo mundo, segundo o The Human Dignity Trust –, são injustas, já que Deus ama a todos os seus filhos como são.

Essa posição da mais alta autoridade da igreja católica ganha ainda mais relevância ao considerar que, segundo a pesquisa Global Religion 2023, realizada em 26 países, 70% dos brasileiros dizem acreditar em Deus como descrito no livro sagrado – como Bíblia, Alcorão e Torá –, atrás apenas de África do Sul e Turquia e empatado com a Índia. O Brasil se configura, de acordo com o estudo, como um dos países de maior porcentagem cristã, com 70% dos respondentes.

A fé que supera barreiras de religiões

Por mais que Alexya fale sob a ótica de pessoas LGBTQIA+, a premissa de inclusão e respeito vale para todos. Enquanto pastora, vê as religiões e os espaços de fé inclusivos como fundamentais, pois permitem uma espiritualidade libertadora. “É, na igreja, que posso recorrer aos meus irmãos e irmãs, onde podemos sarar ‘minhas dores’ e renovar as forças. A igreja não pode ser o espaço que condena e aponta o dedo”, reforça Alexya.

A reverenda faz uma análise de que o direito à vivência da fé, característica dos seres humanos, sempre foi concedido, majoritariamente, a pessoas pertencentes a cis-heteronormatividade, mas que é fundamental que a sociedade compreenda a grande demanda por espaços mais acolhedores.

“Quando encontro uma igreja, um terreiro de candomblé, um templo budista, enfim, um espaço dito para cuidar e acolher pessoas espiritualmente, eu entendo que as pessoas LGBTQIA+ também devem ser acolhidas. Jesus foi ressignificando a própria cultura e a si mesmo, pois era um homem judeu. Usou de parábolas e atos para mostrar que excluir não é um projeto de Deus, como se fazia com viúvas, com leprosos, com pessoas com deficiência, com os pobres. Marginalizavam em nome do Sagrado, e Jesus combateu essa exclusão. Portanto, espaços historicamente constituídos pela opressão, exclusão e mentira não refletem Deus.”

A harmonia do ecumenismo

Comunidade da Trindade no Natal de 2022. Foto: Acervo Henrique Peregrino

Esse espaço acolhedor que Alexya encontrou é o que prega, diariamente, o Irmão Henrique Peregrino. Francês, deixou a Europa pela vontade de viver o Evangelho. Depois de 11 anos andando sozinho, recebeu, em 1998 em Salvador, na Bahia, um pedido do novo bispo para criar um espaço seguro para acolher pessoas em situação de rua. Depois de solicitar à arquidiocese, Henrique e um grupo de pessoas passaram a dormir e ocupar, no ano 2000, a, até então, abandonada Igreja da Trindade, no bairro de Água de Meninos.

Com o passar do tempo, as casas ao redor da Igreja tam- bém foram ocupadas e, assim, foi surgindo a Comunidade da Trindade, voltada, sobretudo, a receber e acolher pessoas em situação de rua. Apesar de seu templo pertencer à igreja católica, é uma comunidade ecumênica que conta com pessoas de 5 a 94 anos, onde já foram acolhidos des- de pais de santo até pessoas espíritas.

“A partir do momento que a pessoa deseja morar na Co- munidade e viver essa espiritualidade ecumênica, não tem nenhuma dificuldade. Acolhemos e procuramos valorizar cada tradição de fé na sua originalidade e expressão”, conta.

O exercício do amor ao próximo

Henrique se emociona ao contar a história do Vovô, um senhor em situação de rua que alegrava crianças e todos com quem tinha contato. Uma noite, Henrique se deparou com o senhor chorando em um beco durante a madrugada, que contou: “Se estou na rua hoje, é porque nunca ninguém me amou de verdade.”

A frase de Vovô deixou uma marca no peregrino, que reflete: “O que a humanidade mais precisa hoje é amar, para que cada um se sinta amado. Quando começar a agir assim, pode aparecer na sua frente um travesti, alguém que saiu da prisão, que usou droga ou um doutor da Universidade. Você vai tratar todos igualmente, pois são pessoas nas quais existe uma presença divina que você deseja reverenciar e manifestar esse amor e ternura para outro ser humano tal como ele é.”

O mesmo vale para diferentes expressões de fé. Pessoas verdadeiramente movidas pela ternura, amor e compaixão ao outro, valores expressos de múltiplas formas e sob diferentes textos e formatos pelas religiões, não podem ter a vida reduzida a uma única expressão formal de fé, como explica o peregrino, já que esses são pilares inter-religiosos. Assim, busca-se se abrir para incluir todas as pessoas eventualmente excluídas pela sociedade. “É por isso que, na Comunidade da Trindade, todos são sempre bem-vindos.”

Nova vida

Semanalmente, a Comunidade da Trindade realiza cultos e orações abertos, onde pessoas em situação de rua podem ter acesso a refeições, aos momentos de fé e a dormir na igreja. Aqueles que desejam permanecer e seguir uma vida comunitária, assim o fazem. Henrique se orgulha ao dizer que a igreja está há 23 anos de portas abertas.

Pensando em uma forma de as pessoas conquistarem mais autonomia e, com isso, qualidade de vida, a Comunidade deu início à Aurora da Rua, revista que já soma 15 anos e nasceu para que os moradores da igreja possam vendê-la, e, com isso, ter uma fonte de renda. “A Aurora da Rua é o início de uma nova vida. É um despertar a partir da realidade da rua, e representa a frase de Jesus: ‘Levanta-te e anda’, como se dissesse para cada um acreditar na sua energia, valor e força, mesmo que muito feridos pela vida.”

Há 15 anos a frase orienta o trabalho desenvolvido na Comunidade da Trindade, e dá nome ao projeto que a Comunidade realiza na Igreja São Francisco de Paula, com uma equipe de assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros, educadores e terapeutas prontos para ajudar a despertar esse desejo de “levantar-se e andar”.

“Em cada lugar onde a vida é ferida, Jesus nos convida a trazer essa mensagem, seja nas pessoas que se sentem excluídas, nas terras indígenas não reconhecidas, nos quilombos negados, nos trabalhadores sem terra para trabalhar, nas pessoas sem casa, naquelas não respeitadas em suas orientações sexuais ou discriminadas em suas profissões de fé. Todas as igrejas deveriam, na sua ação pastoral, dar significado a essa frase e despertar a vida onde está ferida”, acredita Henrique.

Fique por dentro
Acesse as pesquisas e estudos citados na reportagem:

Global Religion 2023 bit.ly/RCC_06_17

Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras bit.ly/RCC_06_18

Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022 bit.ly/CasaComum_E5_55

Respeite o Meu Terreiro – Mapeamento do Racismo Religioso Contra Os Povos Tradicionais de Religiões de Matriz Africana (via BBC) bit.ly/RCC_06_19

Papa Francisco: Homossexualidade não é crime bit.ly/RCC_06_20

Map of Countries that Criminalise LGBT People bit.ly/RCC_06_21

Pastora Alexya Salvador no Instagram @alexyasalvadoroficial

Igreja da Trindade no Instagram @igrejadatrindade

Aurora da Rua no Instagram @auroradaruaoficial

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