Publicado em
24/04/2025
Artigo da editoria Cidadania Digital, da 12ª edição, por Lucia Santaella
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Todas as vezes em que sou chamada a falar ou escrever sobre o tema do pós-humano, tomo como ponto de partida a necessária diferenciação entre o pós-humano crítico e a expressão que se tornou, infelizmente, bastante conhecida com o nome de trans-humanismo.
A diferenciação é de suma importância porque, enquanto o pós-humano é um movimento crítico que emergiu internacionalmente com ênfase, por volta dos anos 1990 na agenda intelectual, cultural e artística da filosofia e dos estudos culturais, o trans-humanismo se constitui em uma narrativa que brotou entre os tecnólogos ufanistas da Califórnia (EUA), cujo enredo salvacionista propõe que quanto mais a tecnologia avança, mais ela trará o aperfeiçoamento da espécie até o ponto de vencer a mortalidade.
Feita essa diferença, podemos passar a uma breve apresentação das propostas bastante distintas e, sobretudo, críticas que caracterizam o pós-humano.
Pode-se afirmar que a manifestação originária explícita do pós-humano teve origem em 1985, com a publicação do Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway. A natureza política pró-feminista desse manifesto acolheu a atenção de feministas, não só norte-americanas, engajadas na liberação das mulheres dos grilhões do patriarcado. Esse manifesto foi tão interpretado e divulgado que deu origem ao ciberfeminismo, um movimento que se expandiu, se transformou até se encontrar hoje com o movimento intelectual e ativista da interseccionalidade.
O pós-humano de ontem para hoje
Nos seus inícios, o que estava em questão no pós-humano eram as transmutações operadas no corpo e na vida humana pelos avanços tecnológicos. Em vista disso, no meu livro Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura, publicado avant la lettre no Brasil (2003), a par de buscar caracterizar as novas formas de cultura que brotavam no ciberespaço, coloquei ênfase naquilo que passei a chamar de “corpo biotecnológico”, nomenclatura que prefiro a ciborgue, este muito sobrecarregado de distorções fantasiosas pelas ficções cinematográficas.
Entretanto, se voltarmos nossa atenção para as realizações artísticas, iremos verificar que, desde as primeiras décadas do século 20, como se tivessem adivinhando a chegada futura da revolução digital e de suas consequências culturais e, sobretudo, para a política dos corpos, os artistas, com as antenas de sensibilidade que lhes são próprias, já estavam colocando o corpo sob interrogação. Nas décadas que se seguiram, com irreverência, rebeldia e resistência à oficialidade instituída da arte, os artistas tomaram seu próprio corpo como objeto de intervenções surpreendentes e criações muitas vezes insólitas.
Então, nos anos 1990, impactados pelo avanço tecnológico sobre o corpo, o vocabulário dos artistas multiplicou-se no intento de dar expressão às metamorfoses pelas quais o corpo humano estava passando: pós-biológico, autômato cibernético e informático, corpo obsoleto etc. Essa nomenclatura acabou por ser abarcada pelo termo pós-humano em um contexto mais amplo em que o corpo veio a ser tratado no contexto da filosofia e da crítica cultural.
Desde então, a questão do pós-humano se desdobrou, sendo difícil encontrar uma definição acabada diante de uma variedade de tendências expostas por expoentes no cenário internacional. Pode-se, no entanto, afirmar que, em uma perspectiva filosófica, é possível sintetizar que esse movimento fez nascer uma preocupação relativa à necessidade de se repensar a própria ontologia do humano. Segundo Callus e Herbrechter (2012, p. 250 apud Dománska, 2024, p. 59), o pós-humanismo:
Pode ser visto como uma tentativa de criar uma plataforma conceitual interdisciplinar que reúna perspectivas e investigações das artes, humanidades e ciências perante uma interrogação radical e acelerada do que significa ser humano e qual(is) poderá(ão) ser o(s) fim(ns) reimaginado(s) do humano. Assim, ele se concentra fortemente nos desafios tecnológicos, culturais, sociais e intelectuais contemporâneos às noções tradicionais de humanidade e à instituição das humanidades.
Do pós-humano ao não humano
Trata-se, portanto, de interrogações sem respostas acabadas em um mundo em aceleração. Foi assim que, desde a primeira década dos anos 2000, as discussões dos especialistas internacionais expandiram-se gradativamente do pós-humano para o não humano. As discussões tiveram início nas reflexões acerca dos Outros do humano, a saber, os animais, os outros reinos do vivo e, também, os objetos. Essa virada para os objetos deu-se em dois níveis: o empírico e o filosófico.
O nível empírico foi provocado pelos avanços tecnológicos da Internet das Coisas (IoT, em inglês) e das cidades inteligentes com a transformação em seres sencientes dos objetos equipados com sensores. Essas emergências convergiam na desmontagem da pretensa integridade humana que costuma imputar como monstruosas quaisquer misturas e hibridismos.
Na sua versão filosófica, o não humano foi impulsionado por um um novo movimento com o nome de realismo especulativo ou Ontologia Orientada ao Objeto (OOO), um movimento que foi se ampliando na constituição de um grande guarda-chuva de ideias que, na contiguidade com o pós-humano, se tornou conhecido como não humano, cujo elenco de tendências na sua pletora de temas nos é fornecida por Grusin (2015, p. vii, viii).
1.Inspirado na teoria ator-rede de Bruno Latour e outros, o não humano versa sobre os objetos sociotécnicos a partir de uma ontologia plana entre humanos e não humanos, ou seja, dos agenciamentos não humanos que Latour chamou de parlamento das coisas.
2. A teoria dos afetos, tal como foi mobilizada pelas discussões sobre diversidade sexual, em defesa da legitimidade das formas de afetividade não convencionais.
3. As teorias do cérebro, neurociências, ciências cognitivas, inteligência, consciência e vida artificiais.
4. O novo materialismo nas teorias feministas, protagonizado particularmente por autoras negras sob a tutela da interseccionalidade na sua proposta de cruzamento de fatores identitários como gênero, raça/etnia, idade, orientação sexual etc.
5. As teorias midiáticas que, na sua atenção para as redes, interfaces e análise computacional, hoje são responsáveis pela denúncia da disseminação de fake news, deep fakes, discursos de ódio, teorias da conspiração, negacionismos e as consequências nefastas que isso traz para a democracia.
6. Todas as variedades do realismo especulativo, até o neovitalismo e o pampsiquismo, trazem a visão de que o psíquico permeia todas as esferas da realidade.
Em suma, o que se tem aí é uma diversidade de estudos que buscam caminhos de enfrentamento, nas artes, nas humanidades e nas ciências sociais, aos desafios que o século 21 está apresentando. Ou seja, enfrentar os modos como este século implica, mais do que isso, exige o nosso engajamento com o que não é humano, tais como mudanças climáticas, secas, fome, biotecnologia, genocídio, terrorismo, guerra e, até mesmo, o Antropoceno, o novo período geológico do planeta, fruto do peso e feridas que as ações humanas, muitas vezes insanas, imprimiram sobre a biosfera.
Referências bibliográficas
>> DOMÁNSKA, Ewa. A história para além do humano. Belo Horizonte: FGV Editora, 2024.
>> GRUSIN, Richard. Introduction. In: Richard Grusin (org.). The nonhuman turn. Minneapolis: The University of Minnesota Press, p. vii-xxix, 2015.
>> HARAWAY, Donna. A cyborg manifesto: Science, technology, and socialist feminism in the late twentieth century. In: Simians, cyborgs, and women: The reinvention of nature. New York: Routledge, [1985] 1991.
Para saber mais
>> SANTAELLA, Lucia. Culturas e artes do pós-humano: da cultura de massas à cibercultura. São Paulo: Paulus, 2003.
Lucia Santaella é professora titular na pós-graduação em Comunicação e Semiótica e em Tecnologias da Inteligência e Design Digital da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Doutora em Teoria Literária pela PUC-SP e Livre-docente em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Publicou 57 livros e organizou 34. Recebeu os prêmios Jabuti (2002, 2009, 2011, 2014), o prêmio Sergio Motta (2005) e o prêmio Luiz Beltrão (2010).