Publicado em
06/09/2024
Devido a abundância de água em seus territórios, a população indígena Warao, da Venezuela, é conhecida como “povo das canoas” ou “das águas”. Exploração desenfreada na região, no entanto, tem feito do Brasil um novo lar.
Por Elvis Marques
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“Todos os refugiados que estão aqui no Brasil têm uma história própria. No meu caso, eu vim para este país em 2019 para sustentar os meus filhos, que naquela época estavam estudando na universidade. Sempre quis algo melhor para eles”.
A fala é de Alida Gómez, profissional da educação, agricultora e artesã. Venezuelana, está no Brasil há cinco anos, quando migrou de sua terra natal para Roraima em busca de sustento para cuidar de seus três filhos.
Indígena, Alida é originária do povo Warao, a segunda etnia mais populosa do país vizinho, com cerca de 49 mil pessoas, segundo Agência da Organização das Nações Unidas (ONU) para Refugiados (ACNUR).
Lançada no Dia da Amazônia, celebrado em 5 de setembro, a história de Alida Gómez é a primeira da série Crise Socioambiental: um desafio de todos(as).
Vida nova
A 35 quilômetros de Boa Vista (RR), está situada a localidade que acolheu Alida e outros parentes de seu país: a comunidade Warao Janoko, composta por 12 famílias Warao, e dois núcleos familiares do povo Kariña.
Ao todo, o local abriga quase 100 pessoas que compartilham uma pequena área adquirida com o apoio de organizações sociais, como a Fundação Fé e Alegria, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o Conselho Indígena de Roraima (CIR), o Serviço Pastoral dos Migrantes e a Cáritas.
A história de migração de Alida começa com diversas problemáticas enfrentadas por sua etnia, que vive na parte venezuelana da floresta amazônica e, não diferente do Brasil, é repleta de riquezas naturais, de fauna e flora, de água em abundância, além dos minerais de diversas espécies.
Mas, afinal, o que levou que Alida e tantos outros venezuelanos decidissem deixar seu país de origem e migrar de um território tão rico em busca de uma vida melhor?
A publicação Os Warao no Brasil – Contribuições da antropologia para a proteção de indígenas refugiados e migrantes, de autoria do ACNUR, explica que a etnia Warao ocupa um território que se estende, na Venezuela, por todo o estado do Delta Amacuro e por parte dos estados de Monagas e Sucre, no delta do rio Orinoco.
Os dados sobre o rio Orinoco surpreendem: é o maior rio venezuelano, e abrange quatro quintos do território do país. Ao entrar na Colômbia, as águas do Orinoco cobrem um quarto do país. Por isso, é um dos maiores rios da América do Sul, e dono da terceira maior bacia hidrográfica do continente.
É ao lado dessas águas imponentes que está situada a comunidade originária de Alida, a Jubasujuro, no município de Antonio Díaz, local que, juntamente com Pedernale, é a origem de muitos dos Warao que estão hoje no Brasil. “São áreas de maciça presença indígena, constituindo 92% e 69% da população total, respectivamente”, conforme a publicação do ACNUR.
Antes de recomeçar a vida no Brasil, Alida relata que vivenciou muitas tragédias junto ao seu povo, como a regulação de água e, posteriormente, o fechamento do dique Caño Manamo – que integra a bacia do rio Orinoco. Essa foi uma obra construída na década de 1960 para facilitar a escoação e exportação do minério no país, o que afetou por décadas o acesso da população local às fontes de água.
“Tivemos muitas perdas de plantações, como de mandioca, além de mortes de pessoas. A comunidade também sofreu impactos de garimpeiros e com o derramamento de óleo nas águas. E então veio a poluição da água, o que impactou também a pesca. Com o tempo, a economia ficou muito difícil, pois não havia produção suficiente”, relembra a indígena.
A publicação do ACNUR acrescenta outras consequências ecológicas provocadas pelo represamento no rio Manamo, que afetaram diretamente o modo de vida dos Warao. “Com o processo de salinização, não só as plantações, mas também a oferta de peixes foi afetada, comprometendo a alimentação do grupo. Os fertilizantes químicos, usados pelos produtores cada vez em maior quantidade, a fim de compensar a má qualidade do solo, comprometeram o reservatório de água potável.”
Cercada por águas, salgada e doce, a etnia Warao se viu encurralada de diversas formas e precisou migrar, seja para outros municípios da região ou até para países vizinhos, percurso esse feito por Alida.
Impactos amazônicos que extrapolam fronteiras Ao elencar alguns dos principais problemas vivenciados pelas populações indígenas e ribeirinhas na região do rio Orinoco, na Amazônia venezuelana, é possível confundir facilmente com os conflitos enfrentados na mesma floresta, mas em solo brasileiro: – O excesso de sal nas águas do rio Orinoco e de seus “braços” provocou mudanças na vegetação; – Inundações cada vez mais frequentes na região, a partir da década de 1970; – Denúncias sobre diversos impactos socioambientais com o início da exploração de petróleo na região; – Entre esses impactos oriundos do petróleo estão a falta de água potável, destruição dos viveiros de camarões e outros peixes, adoecimento de adultos e crianças, contaminação do solo e dos rios, e comprometimento das lavouras de subsistência; – Com a redução da possibilidade de plantio e pesca, começa a invasão dos territórios indígenas por grandes agricultores e pecuaristas; Com a ampliação da atividade econômica na região, principalmente petrolífera, foi registrado um aumento de doenças entre a população indígena, como infecções sexualmente transmissíveis, tuberculose, além de epidemias como de cólera; – Aumento de casos de exploração e abuso sexual; – A mineração tem causado a violação de vários direitos coletivos, incluindo o direito à manutenção dos costumes e modos de vida próprios dos Warao, além dos impactos à saúde, como o aumento da malária e a contaminação dos cursos d’água. Fonte: Os Warao no Brasil – Contribuições da antropologia para a proteção de indígenas refugiados e migrantes (link) |
A comunidade Warao Janoko no Brasil e os desafios do acolhimento
Apesar dos impactos socioambientais enfrentados pelos Warao, a riqueza do território pode ser traduzida em artesanatos de palha de buriti, nas vestimentas tradicionais, nas técnicas ancestrais de construção de canoas e remos, além de instrumentos de caça e pesca e estratégias de agricultura.
Toda essa sabedoria e modo de vida têm vindo nas bagagens dos indígenas que saem da Venezuela rumo, principalmente, aos estados do Pará e de Roraima, em busca de uma vida melhor.
Segundo a agência da ONU, em 2020 eram cerca de cinco mil indígenas refugiados, pertencentes às etnias Warao, Pemón, Eñepa, Kariña e Wayúu.
Em Boa Vista (RR), Alida viveu por quase dois anos e meio em um abrigo, até poder tocar a sua vida na comunidade Warao Janoko, fundada exclusivamente para receber os indígenas refugiados em terras brasileiras.
“[Esse espaço] é um modelo de sustentabilidade e protagonismo dos migrantes. Em poucos meses, as casas, ainda na forma de barracas, estão rodeadas de plantações de hortaliças, macaxeiras, bananas de diversas variedades, flores e pequenas fruteiras que logo estarão alimentando toda a comunidade. É lindo ver a alegria das famílias no seu território”, afirma Márcia Oliveira, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR), que tem acompanhado a luta dos indígenas venezuelanos em solo brasileiro.
Márcia conta que outra característica da comunidade Warao Janoko é que tudo tem sido debatido e decidido de forma coletiva. Os debates e determinações são acompanhados por uma associação comunitária, responsável por encaminhar o que é decidido. “É uma verdadeira lição de cidadania e participação popular em processos democráticos que garantem a manutenção das orientações culturais e da ancestralidade dos povos indígenas”, pontua a educadora.
A experiência da comunidade Warao Janoko vai ao encontro com o que enfatiza na publicação do ACNUR, José Egas, ex-representante da agência no Brasil: “É imprescindível lembrar que as populações indígenas têm costumes, línguas, crenças e relações milenares, que já existiam mesmo antes do início da colonização. É essencial apoiar que essas comunidades sobrevivam e possam decidir quais são os melhores caminhos para suas vidas, garantindo a manutenção de sua autonomia e o respeito pelas suas decisões.”
Refúgio em terras amazônicas A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) entende que a Amazônia é um grande corredor migratório e responde por boa parte das solicitações de refúgio do país. Segundo a agência ligada ao Governo Federal, um dos principais desafios do Brasil é a necessidade de readequação das estruturas para acolhimento de migrantes que chegam em situação de extrema vulnerabilidade. De acordo com o Relatório de Dados Consolidados sobre Migração no Brasil (link), do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o país recebeu, entre 2011 e 2022, 348.067 solicitações de refúgio. Do total, 50.355 foram solicitadas no ano de 2022. O país contava, no final de 2022, com 65.840 imigrantes refugiados reconhecidos. Ainda segundo o levantamento, entre os anos de 2013 a 2022, o número de pedidos de refúgio feitos por mulheres passou de 10,5% para 45%. Isso significa que, em nove anos, mulheres e crianças representam a maioria dos imigrantes no Brasil. Nesse período, os pedidos de menores de 15 anos passaram de 6,5% para 12,2%. A publicação aponta que os venezuelanos formam a maior comunidade de imigrantes no país, com 210.052 solicitações de refúgio entre 2013 e 2022. Na sequência estão os haitianos (38.884), cubanos (17.855) e angolanos (11.238). Por fim, o levantamento mostra que mais da metade dos imigrantes entrou e fixou residência na cidade de Pacaraima, em Roraima, um total de 53,1% dos solicitantes de refúgio. Fonte: Relatório de Dados Consolidados sobre Migração no Brasil do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (link) |
Fique por dentro
Saiba mais informações sobre os povos Warao:
> Warao
> Indígenas Warao: os desafios da migração e as dificuldades da vida no Brasil
> Rupturas e sementes de políticas públicas migratórias em Roraima
Crise socioambiental: um desafio de todos(as)
A iniciativa traz uma produção multimídia composta por textos, podcasts e vídeos, com o objetivo de conferir mais espaço para que Daniel Audibert, Ana Maria Sousa Farias, Aldair Paulino, Alida Gómez e Maria Clara Salvador – pessoas ouvidas pela reportagem Em Destaque da 10ª edição da Revista Casa Comum – compartilhem de que forma a emergência climática afetou sua vida e seu sustento e o porquê a crise socioambiental vigente é um assunto de todos, mesmo que os efeitos sentidos por cada um(a) sejam diferentes.
Clique no banner abaixo e conheça a série na íntegra.
Série especial da Revista Casa Comum apresenta cinco histórias de vida de pessoas que, de alguma forma, foram afetadas pelos efeitos e consequências da crise socioambiental.
Publicado em
05/09/2024
Artigo do historiador e escritor Célio Turino analisa contexto de mudanças climáticas no Brasil, suas consequências em diferentes territórios, e como a crise do clima se relaciona com decisões políticas.
Publicado em
01/08/2024