Publicado em
16/07/2024
34 anos depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), crianças brasileiras ainda sofrem com a insegurança alimentar e a contaminação de alimentos.
Reportagem: Elvis Marques, Isadora Morena, Maria Victória Oliveira e Rodrigo Bueno / Edição: Daniele Próspero e Rodrigo Bueno / Projeto Gráfico: Karynna Luz
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Diz um trecho do poema “Aos que virão depois de nós”, de Bertolt Brecht:
Eu vivo em tempos sombrios.
(…)
Dizem-me: come e bebe!
Fica feliz por teres o que tens!
Mas como é que posso comer e beber,
se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome?
se o copo de água que eu bebo, faz falta a
quem tem sede?
Na toada dos versos do dramaturgo alemão, nascido em 1898, fica a questão: o que estão comendo as crianças Brasil adentro? Por que tantas ainda passam fome? O veneno que assola a terra, chega como ao prato? Quais as opções alimentares para quem vive nas quebradas desse país? O que dizem pesquisadores e os representantes de organizações da sociedade civil que lutam pelo direito à alimentação saudável na infância?
Na comemoração dos 34 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), fica a provocação: que comida é essa? Da amamentação aos ultraprocessados.
Um direito básico
Alimentação é um dos eixos garantidores da saúde e da vida humana e, portanto, um direito humano, assegurado em diversos marcos legais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Federal do Brasil de 1988.
Para as crianças e os adolescentes, que ainda estão em fase de desenvolvimento físico e cognitivo, alimentar-se de forma correta, com todos os nutrientes necessários para o pleno crescimento, é crucial para a garantia de uma vida de qualidade, com saúde integral no presente e também no futuro, na fase adulta.
Segundo a Organização Pan-Americana de Saúde, órgão vinculado a Organização Mundial da Saúde (OMS), “uma alimentação saudável ajuda a proteger contra a má nutrição em todas as suas formas, bem como contra as doenças crônicas não transmissíveis (DCNT), entre elas diabetes, doenças cardiovasculares, AVC e câncer”.
De acordo com o órgão, “bebês devem se alimentar exclusivamente de leite materno durante os seis primeiros meses de vida. Devem ser amamentados continuamente até os dois anos de idade ou mais. A partir dos seis meses, o aleitamento materno deve ser complementado com diferentes alimentos seguros e nutritivos”. O órgão define uma dieta saudável como aquela composta essencialmente por “frutas, verduras, legumes (como lentilha e feijão), nozes e cereais integrais (como milho, aveia, trigo e arroz integral)”.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) apresenta a alimentação como um direito fundamental para a infância e adolescência, algo essencial para os mais de 70,4 milhões de pessoas menores de 19 anos residentes no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Instituído há 34 anos por meio de uma lei federal, o ECA regulamenta o artigo 227 da Constituição, o qual define crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, em condição de desenvolvimento, o que demanda proteção integral e prioritária da família, da sociedade e do Estado brasileiro. Como o documento está conectado à carta magna, enfatiza, por diversas vezes, a importância e a necessidade do olhar desses diferentes atores para a pauta da alimentação infantil e de adolescentes:
Apesar de o Brasil ser precursor na criação e atualização de legislações de suma importância como o ECA, as populações mais vulneráveis continuam não vendo os seus direitos se materializarem. A garantia humana à alimentação esbarra nas diversas desigualdades sociais que brasileiros e brasileiras mais frágeis economicamente enfrentam diariamente e que foram agravadas com a pandemia de Covid-19.
De acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Segurança Alimentar 2023, divulgada pelo IBGE em abril de 2024, a insegurança alimentar grave – a fome – atinge cerca de 600 mil crianças de zero a 4 anos no Brasil.
O IBGE aponta ainda que 1,7 milhão de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos não têm o que comer. De acordo com o órgão, o levantamento mostra que os domicílios onde vivem pessoas nessas faixas etárias – zero a 17 anos – têm maior vulnerabilidade à restrição alimentar. Confira o gráfico abaixo:
Dados como esses evidenciam que há um longo caminho a ser percorrido para que os direitos e deveres estabelecidos no ECA sejam, de fato, implementados e cheguem a todas as crianças e adolescentes, de Norte a Sul, independentemente da condição social familiar, ou de cor, gênero, crença e religião.
O primeiro alimento contaminado
O desafio inicial na vida de uma criança para acessar o seu direito a uma alimentação saudável se dá nos braços da mãe devido a contaminação do leite materno. Apesar desse alimento ser fundamental e ter todos os nutrientes necessários para os primeiros meses de um bebê, estudos têm demonstrado que, em alguns lugares do Brasil, há a presença de agrotóxicos no leite, o que, evidentemente, impacta a saúde dos recém-nascidos.
Wanderlei Pignati, graduado em medicina pela Universidade de Brasília (UnB) em 1976, e atualmente membro do Programa de Pós-Graduação do Mestrado e Doutorado em Saúde Coletiva na Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), foi responsável por coordenar a primeira pesquisa sobre a contaminação do leite materno por agrotóxicos, a qual contou com a participação de 62 voluntárias – cerca de 20% das mulheres que amamentavam na região.
Na época, o aparelho para analisar as amostras de leite conseguia identificar até 20 tipos diferentes de agrotóxicos, desses, foram encontrados oito produtos nas mulheres em período de amamentação. “Alguns agrotóxicos inclusive haviam sido banidos do Brasil em 1998, como o DDE derivado do DDT. Isso mostra que essas essas mulheres se contaminaram antes da proibição do agrotóxico, e permaneceram com esses resíduos no corpo por anos”, argumenta o professor Pignati.
Além do DDE, a pesquisa encontrou ainda o 2,4D – proibido em quase todo o mundo, mas bastante utilizado nas plantações de soja no Brasil, segundo Pignati -, o Permetrina e o Piretróide. Mas o campeão de contaminações foi o Endossulfam, que apareceu em mais de 76% das amostras coletadas. Esse último produto deixou de ser utilizado no país em 2013, o que é atribuído ao estudo, de acordo com o professor.
Após mais de uma década da primeira análise, neste ano Wanderlei Pignati e Pierre Girard, professor do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Conservação da Biodiversidade da UFMT, se juntam a pesquisadores(as) da Universidade de Roma, na Itália, para investigar a presença de microplástico, mercúrio e 160 tipos de agrotóxicos no leite materno. O estudo envolve cinco pessoas da Itália e cinco alunos(as) bolsistas do Mato Grosso.
Aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a pesquisa, que deve se estender pelos próximos meses e ano que vem, surgiu a partir de um convite dos(as) pesquisadores(as) italianos(as), responsáveis por um estúdio inédito no mundo: a presença de microplásticos na placenta de mulheres grávidas.
Os microplásticos são pequenos resíduos provenientes dos mais diversos tipos de produtos de plásticos, como: água (rios, mares ou água domiciliar), de alimentos embalados, plástico degradado na natureza ou até mesmo da ingestão de plástico por animais, como peixe ou gado, carnes que depois são consumidas pelo ser humano. Como o próprio nome diz, esse material pode ser de vários tamanhos, mas às vezes são tão pequenos que se tornam invisíveis a olho nu.
O estudo italiano identificou ao menos 12 partículas microscópicas de plástico nas placentas de quatro mulheres saudáveis, cujas gestações e partos ocorreram normais. Os cientistas alertam para as consequências dessa descoberta. Os impactos desse elemento no corpo humano ainda são desconhecidos, mas, segundo os cientistas, a longo prazo isso pode causar má-formação nos fetos.
No Mato Grosso, os(as) pesquisadores(as) ainda não definiram os municípios participantes do novo estudo, mas ele deve envolver várias regiões do estado. “A coleta de material a ser analisado deve acontecer esse ano, e a análise em 2025, já que cada tipo de amostra deve ser analisada em um local específico. A análise do microplástico, por exemplo, será feita na Itália. Além disso, há dez anos, tínhamos um aparelho que só analisava até 20 agrotóxicos, e agora vai ser possível verificar a presença de 160 tipos desse produto”, afirma Pignati.
O professor conta que a equipe está apreensiva com o resultado que o estudo pode apresentar.
“Que direito é esse de amamentar com o leite contaminado? E quem está contaminando é o agronegócio e a mineração.”
Wanderlei Pignati – pesquisador
Por que averiguar mercúrio e agrotóxicos no leite em Mato Grosso?
A resposta, conforme o educador da UFMT, está na alta incidência de utilização de agrotóxicos no estado devido aos monocultivos, como de soja, milho e algodão.
A FASE – Solidariedade e Educação já manifestou, em 2022, que Mato Grosso é um dos estados que mais consomem agrotóxicos do país. E o Pantanal e as comunidades camponesas e tradicionais, que vivem na região, são os mais afetados com o alto consumo do veneno.
Em 2021, segundo a FASE, foram comercializados no estado 142.738,855 quilos de agrotóxicos.
Já em relação ao mercúrio, Pignati acrescenta que o produto – contrabandeado – é muito utilizado nos garimpos de ouro, em regiões como Poconé, Chapada dos Guimarães e no Norte do estado. Com a utilização ilegal do produto, há a contaminação da água e do solo, e, consequentemente, dos demais seres vivos.
> Saiba mais: Desastres sócio-sanitário-ambientais do agronegócio e resistências agroecológicas no Brasil
Saúde humana comprometida por uso massivo de agrotóxicos
Pignati argumenta que tanto os agrotóxicos como o mercúrio podem circular, no corpo humano, pela corrente sanguínea e fixar em órgãos, como o fígado. Além disso, o professor universitário destaca que muitas doenças podem acontecer a médio e longo prazo, como a má-formação de bebês ou o aumento do câncer infantojuvenil.
Especificamente sobre a incidência de câncer infantojuvenil, o pesquisador aponta que a cada 100 mil pessoas no Brasil até 19 anos, a doença atinge 169. Já em algumas regiões do Mato Grosso, esse índice chega a 620 pessoas, quase quatro vezes mais.
Mas não é só o Mato Grosso que enfrenta desafios em relação aos impactos do uso massivo de agrotóxicos. Novas pesquisas realizadas no país mostram que os números atuais de mortalidade relacionada aos pesticidas são alarmantes. Relatório lançado em 2022 pela rede ambientalista Friends of the Earth Europe, aponta que a cada dois dias uma pessoa morre por intoxicação de agrotóxicos no Brasil. Dessas vítimas, 20% são crianças e adolescentes de até 19 anos.
A Chapada do Apodi, região de cerca de 160 mil hectares no Semiárido nordestino, que abarca cidades do Ceará e do Rio Grande do Norte, é mais um dos territórios brasileiros em que essa história se repete. O solo local é muito fértil e vive a contradição de produzir tanto alimentos saudáveis a partir da agricultura familiar quanto comida com veneno, o que gera profundos impactos nas comunidades locais, em especial entre os grupos mais vulneráveis: idosos, crianças e adolescentes.
A partir do modelo do agronegócio, com sistemas complexos de irrigação e forte uso de agrotóxicos, a Chapada é uma grande produtora de frutas para exportação, como banana, melão, uva e melancia, e outros commodities, como algodão, trigo e soja.
Ao mesmo tempo, os agricultores e agricultoras familiares resistem produzindo alimentos a partir de práticas tradicionais e agroecológicas. Isso faz com que a história da região seja marcada pela disputa dos recursos naturais, como terra e água, e pela batalha dos moradores contra a ofensiva de um sistema de produção que destrói a natureza e adoece as pessoas.
Inclusive, por conta das constantes denúncias do uso abusivo de pesticidas nesta região, o Ceará passou a ser o primeiro estado do país – e até o momento, o único – a proibir a pulverização aérea de agrotóxicos. A Lei 16.820/2019 foi motivo de contestação legal por parte das empresas agrícolas, sendo reconhecida como constitucional pelo STF em 2023.
A legislação tem em seu nome uma homenagem ao líder comunitário e ambientalista José Maria Filho, conhecido como Zé Maria do Tomé. Ele lutava intensamente pela proibição da pulverização aérea de agrotóxicos em Limoeiro do Norte (CE), município na Chapada do Apodi, e por isso foi assassinado em abril de 2010.
A proibição estadual foi amparada por uma série de pesquisas realizadas pela Universidade Federal do Ceará (UFC), em especial pelo Núcleo TRAMAS – Trabalho, Meio Ambiente e Saúde, que revelaram números elevados de câncer e de doenças neurológicas na população local, além da manifestação de malformações e puberdade precoce em bebês e crianças, entre outras doenças e distúrbios relacionados ao consumo de agrotóxicos na Chapada do Apodi.
Estudos na área resultaram na publicação Agrotóxicos, Trabalho e Saúde: Vulnerabilidade e Resistência no Contexto da Modernização Agrícola no Baixo Jaguaribe/CE, organizado pela médica e professora doutora da UFC Raquel Maria Rigotto. No livro, conclui-se que a forma extensiva de produção agrícola na região, com o uso de defensivos, tem severas implicações para a saúde humana, resultando, entre outros males, na mortalidade infantil.
Segundo a pesquisa há: “(1) o comprometimento da segurança alimentar, pelas modificações das formas de acesso à água, à terra e a alimentos, levando à desnutrição, a elevação da mortalidade infantil e o aumento da vulnerabilidade a doenças; (2) proliferação de múltiplos riscos ambientais decorrentes da introdução de novos processos produtivos, ampliando a escala e a velocidade de interferência na Natureza: acidentes e doenças; (3) deslocamentos compulsórios de população, gerando migração e mudanças nas práticas sociais e laços de vida comunitária, na dinâmica das cidades vizinhas; além da introdução de novos padrões e hábitos culturais que influenciam a ocorrência de doenças sexualmente transmissíveis e AIDS, consumo de álcool e drogas ilícitas, doenças mentais e sofrimento psíquico” (RIGOTTO, p.62, 2011).
Fontes: Análise do panorama climático para crianças e adolescentes no Brasil (CLAC Brasil – UNICEF); Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), do IBGE; Pesquisa da Rede PENSSAN (Oxfam, 2022); Manual de Usos Consultivos da Água no Brasil (2019); Relatório do Health Effects Institute com a UNICEF, traduzido pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP);
Resistência agroecológica: um futuro saudável para crianças e adolescentes
Diante desse cenário, Apodi, município da porção potiguar da Chapada, é símbolo de resistência ao avanço do agronegócio. A população luta desde 2011 contra a implementação, por parte do governo federal, do Perímetro Irrigado Santa Cruz do Apodi, projeto que tem como objetivo intensificar a fruticultura na região.
A proposta, conhecida localmente como “Projeto da Morte”, envolve a criação de uma complexa infraestrutura de irrigação em uma área de 9.235 hectares em Apodi e na cidade vizinha Felipe Guerra (RN). As terras serão, essencialmente, destinadas para grandes empresas exportadoras, com desapropriações e impactos diretos e indiretos em mais de mil famílias. A história mostra todos os prejuízos sociais e ambientais decorrentes desse tipo de empreendimento.
Diversas entidades construíram um dossiê apresentando as consequências negativas da obra. Em 2024, o projeto está na fase de estudo de sua viabilidade por parte do governo federal.
Ameaçadas pelo projeto, as famílias locais seguem resistindo com seus quintais produtivos, ou seja, cultivando em pequenos pedaços de terra com o uso de compostagem e adubo orgânico e integrando diversos sistemas agrícolas: o mesmo espaço comporta jardim, hortas, árvores frutíferas, ervas e plantas medicinais, podendo também incluir produção de mel e criação de animais.
Mesmo enfrentando dificuldades pela falta de abastecimento perene de água na região – razão que justifica, por parte do governo, a construção do Perímetro Irrigado – os pequenos agricultores e agricultoras alimentam suas famílias e comercializam sua produção fazendo uso de diversas tecnologias sociais, como poços, cisternas e o Sistema de Bioágua Familiar, que faz filtragem biológica das águas residuais das casas oriundas do chuveiro, pias, tanques, máquinas de lavar etc.
É essa a história da agricultora Rita Gomes de Melo Oliveira, 58 anos, diretora do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras de Apodi e moradora do Assentamento Agrovila Palmares, local que abriga cerca de 30 famílias produtoras.
Na Agrovila, ela tem um quintal produtivo, onde cultiva desde feijão, milho e hortaliças, passando por ervas, como o malvarisco e o hortelã, plantas medicinais, como a babosa, até frutas, como acerola, goiaba, manga, coco e romã. O adubo utilizado para a produção vem da sua própria criação de galinhas caipiras – o esterco passa por todo um processo de maturação para poder nutrir a terra. O Assentamento possui um poço coletivo e cisternas que recolhem a água da chuva.
Apesar de não estar mais diariamente com as mão na terra no último período – tendo em vista que está no centro urbano oferecendo apoio à sua irmã adoentada – Rita fala com orgulho de ser uma pequena produtora de orgânicos e de ter alimentado sua família por meio do seu trabalho.
Sua filha, Ana Lúcia Gomes de Oliveira, hoje com 40 anos, trabalha com o beneficiamento das frutas da região. A COOPAPI (Cooperativa Potiguar de Apicultura e Desenvolvimento Rural Sustentável) produz polpas a partir do cultivo dos pequenos agricultores locais. Entre os compradores está a Prefeitura de Apodi, que distribui o alimento para as escolas municipais.
Por conta das regras do PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar (Lei 11.947/2009), 30% dos itens que compõem a merenda escolar devem ser produtos da agricultura familiar. Tramita no Senado um Projeto de Lei (PL 212/2022) para que esse percentual mínimo aumente para 50%.
Rita se preocupa com o avanço do agronegócio, que hoje está mais próximo de suas terras, ameaçando a produção orgânica da Agrovila Palmares, e também com os hábitos alimentares de sua neta de 10 anos, filha de Ana Lúcia, pois, “ela já come diferente, produtos que eu não aprovo”, afirma, falando dos industrializados.
Apesar dessas questões, sua neta, na escola, tem refeições balanceadas, com produtos que respeitam sua tradição cultural e que são oriundos dos pequenos agricultores, como as polpas feitas pela sua mãe e tantos outros apodienses.
A importância do acesso a uma alimentação saudável desde cedo
Apostar na agricultura familiar – no contexto rural ou urbano – e na alimentação escolar, por meio de políticas públicas e iniciativas da sociedade civil, é caminho necessário para superar a grave situação da saúde nutricional enfrentada pelas crianças e adolescentes brasileiras.
Isso porque muitas famílias não conseguem se alimentar de forma diversificada e nutritiva. O acesso a frutas, legumes e vegetais pode representar um grande desafio para a população brasileira, a depender de inúmeros fatores, como o local de moradia, renda mensal e até mesmo a raça.
Hoje com 22 anos, Ana Beatriz de Sousa define sua alimentação como ‘péssima’. Estudante de pedagogia na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Ana Beatriz é moradora do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, e conta que, quando deu à luz sua bebê – hoje com um ano e três meses -, não queria que ela seguisse seus passos na alimentação e se tornasse uma pessoa com um paladar tão restrito.
As raízes e motivos que explicam porque, afinal, Ana não gosta de comidas mais saudáveis estão lá atrás. Ela conta que, na infância, eram só ela e a mãe: o pai faleceu quando tinha apenas dois anos. “Minha família é do Nordeste, só tinha a minha mãe aqui no Rio. Então, do nada, ela ficou sozinha comigo. Na época, ela não trabalhava e teve de começar a procurar emprego. Não tínhamos muito dinheiro para conseguir comprar frutas e legumes.”
Para provar que esse contato com alimentos saudáveis é fundamental no momento em que a criança está desenvolvendo seu paladar, Ana conta a história do irmão mais novo que, tendo nascido em um momento que a família estava melhor estabelecida e tinha mais condições financeiras, teve acesso a comidas nutritivas desde cedo e agora come ‘de tudo’. “Hoje em dia eu tenho um acesso melhor, mas não gosto. Claro que já melhorei muito de quando eu era pequena, mas continuo sem tanto interesse”.
O nascimento da filha acendeu um alerta, e Ana buscou a ajuda da pediatra – que forneceu cartilhas sobre alimentação adequada para bebês -, além de buscar receitas na internet. Quando deixa a filha com alguma pessoa da família, faz questão de preparar uma ‘marmitinha’. “Nunca deixo ela sem comida, porque sei que, se fizer isso, as pessoas acabam dando algum alimento que não vai ser o que eu daria. É claro que é fácil dar um danone, um biscoito. Mas também é muito fácil dar uma fruta, que está ali, pronta. Ela come proteína, arroz, feijão, macarrão, sempre tem uma fruta, um legume. Ela come de tudo.”
Ultraprocessados e as periferias
Alguns alimentos ultraprocessados foram, recentemente, excluídos pela Câmara dos Deputados do Imposto Seletivo, medida criada para tributar projetos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente – entre eles bebidas alcóolicas e com muito açúcar, cigarros, recursos minerais e embarcações e aeronaves. As bolachas recheadas, macarrão instantâneo e salgadinhos de pacote ficaram de fora.
Um estudo realizado pela Universidade de São Paulo (USP), Fiocruz, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Universidad de Santiago de Chile apontou que o consumo de alimentos ultraprocessados mata 57 mil pessoas por ano no Brasil, o que corresponde a 10,5% das mortes precoces de brasileiros entre 30 e 69 anos. O número ultrapassa os índices de mortalidade de homicídios, no trânsito, de câncer de mama e câncer de próstata.
Já o estudo Percepção dos residentes de favelas brasileiras sobre o ambiente alimentar: um estudo qualitativo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), apontou que “o acesso dos moradores de favelas a alimentos saudáveis é fortemente influenciado por limitações de recursos fundamentais para uma alimentação saudável, estabelecendo as barreiras: falta de informação sobre alimentos e alimentação; restrição de renda; e escasso acesso a estabelecimentos que oferecem alimentos saudáveis a preços acessíveis”, como traz trecho da pesquisa.
Como medidas efetivas para reduzir as desigualdades no acesso aos alimentos mais saudáveis, o estudo cita a criação e manutenção de hortas comunitárias, incentivo ao comércio local, concessão de benefícios fiscais aos alimentos in natura e minimamente processados, e políticas de proteção social e urbanização das áreas das favelas.
Alimento que cuida
“Você é meio mal interpretado quando fala que quer comer bem numa periferia. Como assim você é pobre e quer comer bem?”. A frase de Ana Lucia de Oliveira resume em poucas palavras a jornada que tem percorrido desde o nascimento de seu filho Gael, em 2013. Ao nascer, o menino sofreu uma série de complicações de saúde, como uma meningite meningocócica, seguida de um AVC, que o levou a um quadro de epilepsia refratária de difícil controle, com uma média de 60 convulsões por dia até um ano e meio de vida.
Apesar de já ter uma relação com o setor de alimentação antes do nascimento do filho – Ana trabalhava com culinária japonesa e fazia bufês e comida japonesa para padarias e churrascarias, além de ministrar cursos de sushiman -, foi só com a chegada de Gael e suas múltiplas necessidades de atenção, que Ana mergulhou no mundo de uma alimentação mais saudável possível, tanto para a saúde, como para o bolso.
Como Ana precisou parar de trabalhar para cuidar do filho, ela e o companheiro, Aluisio Barbosa, decidiram começar a plantar em um terreno da família, em Barueri, na região metropolitana de São Paulo. Mesmo com a indicação do pediatra para iniciar a introdução alimentar de Gael com carnes batidas nas papinhas, Ana conta que algo lhe dizia para não oferecer carne ao filho.
“Eu pensava ‘preciso dar uma comida saudável, e não algo com veneno. Preciso de papinhas que vão trazer essa força vital pra ele, pois precisa disso’.”
E assim começou a jornada para uma alimentação mais saudável e natural. Além da horta própria, Ana e Aluisio passaram a circular pela região em busca de outras hortas, realizando, inclusive, alguns trabalhos voluntários. Às plantações, somaram-se a realização de sucos de PANCs (Plantas Alimentícias Não Convencionais).
“Apesar de usar o óleo de maconha artesanal* que ajuda muito no organismo dele, hoje o Gael não toma mais os cinco anticonvulsivantes que tomava. E eu vejo todos os dias como a alimentação faz diferença, esse alimento vivo, tirado da terra, na hora, fresco, que não passou de mão em mão. Sempre busco hortas que não usam defensivos, eu sei o que estou comprando. E ele nunca foi ao pronto-socorro. Eu vivia no hospital com minha filha que hoje tem 26 anos. Infelizmente eu trabalhava e ela ficava com a minha mãe, então ela foi criada no achocolatado.”
[*Com fim medicinal, a cannabis pode ajudar pessoas com doenças como epilepsia, dor crônica/neuropática, fibromialgia e esclerose múltipla, além de também ter efeitos positivos em sintomas de ansiedade, depressão, estresse pós-traumático e insônia.]
A mudança da família de Barueri, na região metropolitana de São Paulo, para o Jardim Horizonte Azul, no final da zona Sul de São Paulo, foi motivada pela educação. Ana entrou em contato com uma escola de pedagogia Waldorf que, além de permitir que ela fique na sala junto com Gael, oferece uma alimentação ovolactovegetariana, isto é, com o consumo de vegetais, ovos, leite e seus derivados, onde cada sala de aula tem um fogão à lenha e uma mini horta.
Além dos benefícios para a saúde, Ana comenta sobre a parte financeira de uma alimentação mais saudável. Segundo ela, o consumo de alimentos de hortas – seja da própria ou de terceiros -, barateia o custo da alimentação. Entretanto, quando vai aos supermercados, se espanta não só com os altos preços, mas também com a qualidade dos alimentos oferecidos.
“Nós não compramos roupa ou sapato, compramos só comida. Somos duros, nossos amigos sabem que somos uma família com bastante dificuldades, mas reparam que comemos manteiga, e não margarina. Quando vamos ao mercado, compramos coisas industrializadas específicas. Além disso, andamos por vários supermercados para checar o preço e qualidade das coisas.”
Ao comparar o preço dos alimentos, Ana se assusta com a diferença nos valores, segundo ela muito mais baixos em Barueri. “Aqui na zona Sul de São Paulo fiquei impressionada com o custo de vida. Como a comida aqui é cara. Eu tenho até tristeza em falar isso, mas muitas vezes parece que todo o resto [dos alimentos] é mandado para cá. Aqui no fundão da zona Sul, a qualidade é pior [dos orgânicos], as pessoas são muito maltratadas. Mas mesmo assim o mercado está cheio todos os dias.”
Para contornar a situação, Ana decidiu começar uma nova horta no quintal de casa. “O chão é de concreto, mas joguei uma terra e comecei a plantar. Já plantei tomate, cheiro verde, abóbora, pimenta. Isso ficou em nós, essa atitude de pegar um vasinho e plantar.”
Um prato cheio de lutas
Dizem que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose. Algumas iniciativas da sociedade civil discordam e bradam: do veneno nem uma gota. Ainda que sintam-se uma espécie de ‘Davi lutando contra o gigante Golias’, para usar outra analogia conhecida, suas experiências oferecem doses generosas de inspirações e boas práticas para enfrentar os venenos – reais e simbólicos – que estão presentes na alimentação das crianças.
A Aliança pela Infância é uma delas. Movimento que promove o respeito à essência e ao tempo da criança, tem como missão sensibilizar a sociedade sobre a importância da infância plena e digna, além de pautar valores como cultura de paz, sustentabilidade ambiental, respeito às diferenças e a promoção dos atos de aprender, brincar, comer e dormir com encantamento. Hoje, são mais de 20 núcleos ativos em quatro regiões do Brasil.
Dentre suas ações, está a Semana do Comer, um chamado à sociedade para agir e criar ações a partir da produção de conteúdo e da sistematização de conhecimento que a Aliança oferece. As atividades acontecem toda segunda semana de agosto, para lembrar o que é essencial para a infância, como a alimentação como uma maneira de conhecer o mundo, de exercer a linguagem lúdica da criança, de fortalecer vínculos de afeto e de viver a infância em sua plenitude.
A coordenadora da secretaria executiva da Aliança pela Infância, Letícia Zero, explica que o ato de comer envolve diferentes dimensões da vida humana, muito além da questão nutricional. “A ação de se alimentar carrega consigo também significados culturais. Tem a ver com a escolha do alimento, os recursos típicos do território, com hábitos da casa, receitas familiares e ancestralidade, com questões sociopolíticas e acesso a políticas públicas.”
Mas e quando mesmo as condições mais básicas faltam? Quando tragédias climáticas levam tudo o que famílias conquistaram em anos? São nestes momentos, quando o encantamento se esvai, e é preciso reconstruir o presente para poder sonhar o futuro – especialmente o das crianças -, que as organizações da sociedade civil também se fazem presente.
O caso recente do Rio Grande do Sul, e da catástrofe socioambiental que vitimou milhares de famílias, é simbólico. Quem relata as lições aprendidas com o episódio, e como segue a reconstrução do que as águas levaram, é o frade franciscano, militante de causas ambientais e da alimentação saudável, Frei Sérgio Görgen. A ação se dá por meio do projeto Missão Sementes de Solidariedade: Emergência, da qual o frade é uma das lideranças. A articulação tem como foco atender famílias de áreas urbanas e rurais com itens essenciais, em especial, alimentos.
“A primeira lição que a gente aprende é que tudo que se faz em relação à natureza, de alguma forma, retorna para nós. O solo do Rio Grande do Sul foi muito maltratado, as beiras de rios destruídas, a forma como se fez a ocupação do espaço foi muito pouco planejada. E as mudanças climáticas chegaram. Choveu mais de 800 milímetros nas cabeceiras das duas principais bacias hidrográficas do estado. É uma avalanche de chuva muito grande, impensável em condições normais.”
A combinação dos efeitos nocivos da experiência humana com as intempéries do clima, neste caso, foi fatal. O que se viu foram milhares de pessoas desabrigadas e, por consequência, crianças, adolescentes e jovens, sem condições de uma alimentação adequada, moradia e acesso à escola. Frei Sérgio também sublinha a responsabilidade do poder público. “O Estado brasileiro, sejam os municípios, o governo do Estado ou a União, não estão preparados e é preciso que fiquem atentos para atender esse tipo de catástrofe climática de forma rápida, eficaz e bem planejada. Porque elas tendem a se repetir.”
Enquanto isso, as organizações que compõem a articulação pelas vítimas do Rio Grande do Sul permaneceram conectadas e ativas, mesmo no pós-desastre, como um sinal de alerta que aponta para novos riscos. Para Frei Sérgio, é preciso cobrar o poder público, porque apenas a sociedade civil não é capaz de mitigar impactos das mudanças climáticas, que afetam famílias inteiras, sequestrando das crianças o direito a uma infância plena.
Outra experiência transformadora, que atua na agenda da produção sustentável de alimentos, é a Quebrada Agroecológica, um coletivo que surge dentro das ocupações do MTST – Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. Vinicius Santos, um dos membros da organização, conta que é característica das ocupações do MTST cultivar hortas comunitárias, que abastecem as cozinhas das ocupações. E, em muitos casos, o acesso à água é escasso. Assim surge a experiência das cisternas, uma tecnologia de resistência e promoção da cidadania territorial.
“Diante da perversidade imposta aos moradores, a prática das cisternas possibilitou um avanço no combate à insegurança hídrica e promoção de soluções sustentáveis. A água da cisterna permite a manutenção higiênica dos espaços de convivência, das cozinhas e, também, diminui os gastos com com este recurso, comprado pelos moradores para suprir a falta da água encanada”, explica.
O jovem ativista conta que as iniciativas têm também como foco o combate à insegurança alimentar e nutricional e isso impacta diretamente a qualidade de vida das crianças. “Incorporamos em nossa ação a construção dialógica do debate sobre o direito à água e a alimentação saudável nas periferias. O resultado são as construções de hortas comunitárias que abastecem as cozinhas comunitárias, boas práticas de manutenção e formações sobre o debate da sustentabilidade sem a penalização do indivíduo, ou seja, com foco em alternativas coletivas a partir da cidadania.”
Sem água potável, os cidadãos – e em especial as crianças – ficam mais expostos a doenças e prejuízos psicológicos pela violência que lhes é imposta pela inação do Estado. Para Vinicius, o debate sobre a plena cidadania deve levar em consideração que o direito à segurança hídrica é basilar para a promoção da saúde em seus diversos níveis. Uma experiência transformadora para que o futuro seja generoso com água saudável para as crianças das quebradas.
SAIBA MAIS
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[RIGOTTO, R. M. (Org.). Agrotóxicos, trabalho e saúde: vulnerabilidade e resistência no contexto da modernização agrícola no Baixo Jaguaribe/CE. Fortaleza: UFC, 2011.
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