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29/11/2022

Há espaço para uma nova economia brasileira?

Diante da insustentabilidade do atual sistema econômico, com a alta do desemprego, informalidade e negativados, economistas, professores, lideranças sociais, Igreja, campo e cidade propõem novos modelos econômicos e apresentam iniciativas. Análises apontam para deixar o conservadorismo, que pauta também a agenda econômica, de lado e inovar em modelos mais inclusivos

Por Elvis Marques

Foto: Reprodução Cozinhas Solidárias @cozinhassolidariasmtst

“Tudo começou com uma cisterna, originária de uma política pública, do Programa Cisternas [o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e outras Tecnologias Sociais, criado em 2003 durante a gestão do então presidente Lula], do qual fui beneficiada. O projeto ajudou a mim e a inúmeras outras famílias a começar produção de hortaliças e demais alimentos, para que pudéssemos comer e também comercializar. Depois, com a economia movimentada, conseguimos furar um pocinho artesiano, ter mais água, produzir e comercializar um pouco mais.”

O depoimento acima é de uma agricultora paraibana residente na comunidade rural de Cachoeira de Pedra D’Água, no município de Massaranduba, próximo à Campina Grande. Filha e neta de agricultores, Gerusa da Silva Marques, 47 anos, vive há 12 anos no pequeno pedaço de chão de 2,5 hectares, no qual, após ser beneficiada com a fonte de água, produz, junto com a sua família, milho, feijão, macaxeira, jerimum, hortaliças, e polpas de frutas da estação. Cria algumas vacas, bodes e galinhas e faz doces e bolos para vender. 

Com toda essa produção diversificada, Gerusa se inscreveu no Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), políticas criadas a partir de 2003 com os objetivos de promover o acesso à alimentação de qualidade nas escolas e incentivar a agricultura familiar. Via PAA, a trabalhadora já forneceu bastantes polpas de frutas e bolos, todavia, atualmente, ela viu sua renda financeira, advinda da comercialização a partir desses programas, reduzir drasticamente. 

“Tivemos uma grande perda com o PNAE e o PAA, com esse governo atual. O que ele não cortou, diminuiu bastante. Antes eu vendia para os programas cerca de 150 kg de polpas por mês, e entre 80 e 100 kg mensais de bolos, hoje não é assim. Neste ano, até agora, eu comercializei uns 100 kg de bolo e de polpa. Mudou muito, e deu uma mexida grande em nosso orçamento. Não podemos mais contar tanto com essas vendas, e o que nos ajuda e nos mantém são as feiras agroecológicas.”

Para falar das feiras, é necessário apresentar o projeto da EcoBorborema, da Associação dos Agricultores e Agricultoras Agroecológicos da Borborema que trabalham com a produção, beneficiamento e escoamento de seus produtos. A organização é coordenada pelo Polo da Borborema, um fórum de 13 sindicatos rurais, mais de 150 associações comunitárias e uma cooperativa com capacidade para atuar em todo o estado da Paraíba, a CoopBorborema.

Ação da Ecoborborema. Foto: Túlio Martins

Gerusa integra a EcoBorborema desde de 2008, quando começou a atuar nas feiras, e afirma: “A nossa condição financeira melhorou bastante de lá para cá.” Isso, porque, segundo a agricultora, “o projeto surgiu a partir da necessidade de trabalhadores rurais que plantam de forma agroecológica e não tinham como vender os seus produtos, antes comercializados no Ceasa e por atravessadores, sem valorizar o que estávamos fazendo, uma produção sem veneno.”


Participação da agricultura familiar no Produto Interno Brasileiro (PIB):

– Responsável por 10% da geração de riquezas do país;
– A economia de 90% dos municípios com até 20 mil habitantes é dependente da agricultura familiar;
– O segmento produz cerca de 73% dos alimentos presentes nas mesas da população brasileira;
– Dentre os principais alimentos produzidos estão mandioca, feijão, carne suína, leite, carne de aves e milho;
– A EcoBorborema, especificamente, dispõe de uma rede de 13 feiras agroecológicas distribuídas na Paraíba, com mais de 120 famílias envolvidas no processo de produção e comercialização.


Fonte: Confederação da Agricultura Familiar (Conafer)


Eixos críticos da atual economia brasileira:

O projeto econômico e social voltado para pequenos agricultores da Paraíba, apresentado por Gerusa, é uma das inúmeras iniciativas encontradas no campo e nas cidades elaborado quando sucessivas crises financeiras batem às portas da população, seja pela redução/extinção de políticas públicas seja com altas de desemprego. Atenção a alguns gargalos brasileiros no campo econômico:

– 49 milhões de brasileiros, cerca de 23% da população, afirma não ter renda suficiente para sobreviver e precisa de auxílio do governo, segundo dados divulgados em 26 de outubro de 2022 pelo Cadastro Único (o CadÚnico). É o maior número registrado de pessoas em extrema pobreza no Brasil desde a sua criação, em 2001;

– Quatro em cada dez brasileiros adultos estavam negativados até setembro de 2022, segundo dados da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL). Esse número equivale a 64,25 milhões de pessoas, um recorde do levantamento, realizado há oito anos;No segundo trimestre de 2022, 10,1 milhões de pessoas estavam desempregadas no Brasil, conforme análise de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE);

– A taxa de informalidade no país está em 39,7% no mercado de trabalho no trimestre até agosto de 2022. O país alcançou um recorde de 39,307 milhões de trabalhadores atuando na informalidade no período, conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE;

– Desde 2019, a inflação sobre os alimentos acumula uma alta de 43,5%, o que significa que os valores aumentaram, em média, 0,806% todo mês. É a maior taxa de inflação de alimentos e bebidas desde a criação do Plano Real. As informações são do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA); 

– A fome atinge cerca de 33,1 milhões de pessoas no Brasil, e mais da metade da população brasileira (58,7%) convive com a insegurança alimentar em algum grau, mostra o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Brasil, lançado em junho de 2022.

“Galáxia de economistas” buscam novos rumos

Diante de múltiplos problemas para a economia brasileira e mundial, surge a questão: um novo modelo econômico é possível? Ladislau Dowbor, economista, professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e consultor aposentado de agências da Organização das Nações Unidas (ONU), acredita que outro modelo econômico é simplesmente necessário, e já há “uma galáxia de economistas pensando e propondo alternativas para a nova economia”. De acordo com o consultor da ONU, estamos vivendo uma convergência de crises e as crises financeiras do Brasil passam por alguns pilares: ambiental – a do meio ambiente, com a destruição do clima, da biodiversidade, esgotamento do solo e contaminação da água –, social e financeiro.

“Um denominador comum é que nós precisamos de uma sociedade economicamente viável, socialmente justa e ambientalmente sustentável. Não podemos continuar nesse rumo destrutivo ambientalmente, é inviável. Não podemos, por exemplo, no Brasil, continuar destruindo o Cerrado e a Amazônia para exportar mais matéria-prima, como a soja. É um suicídio de longo prazo para o país.”

“Não há nenhuma razão financeira para a fome existir em nosso país. O nosso problema não é econômico, mas sim de organização, gestão e de administração política”

Outra dimensão dessas convergências de crises é a social: “Temos 1% dos mais ricos que têm cerca de R$ 200 trilhões de reais de riqueza, enquanto 55% da base da sociedade, cerca de quatro bilhões de pessoas, têm apenas R$ 5,5 trilhões. Para mudar esse cenário, bastaria tirar 2,5% desse 1% mais rico para dobrar a riqueza da base da sociedade”, enfatiza.

Quem está na “galáxia de economistas” do professor Ladislau Dowbor?

Conheça alguns nomes:

Joseph Eugene Stiglitz, 79 anos, é um economista americano. Já atuou com o ex-presidente Bill Clinton, dirigiu o Banco Mundial, e recebeu, juntamente com A. Michael Spence e George A. Akerlof, o Prêmio Nobel de Economia em 2001.

Ellen Brown é advogada e fundadora do Instituto de Banca Pública, autora de 12 livros, incluindo o best-seller Web da Dívida.

O francês Thomas Piketty, 50 anos, autor de um dos livros com maior burburinho entre o mundo financeiro, “Capital no Século XXI”, e professor da Escola de Economia de Paris.

Tereza Campello, 60 anos, é economista, foi ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome durante o governo Dilma Rousseff (PT). É professora visitante da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP).

O brasileiro Guilherme Mello, economista, sociólogo e professor do Instituto de Economia da Unicamp e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura do IE/Unicamp. 

>> Mais referências: Michael Hudson, Ann Pettifor, Mariana Mazzucato, Kate Raworth, Hazel Henderson, Felicia Wong.

No Brasil: Conceição Tavares, Leda Paulani, Lena Lavinas, Laura Carvalho, Juliane Furno, Tânia Bacelar, Rosa Maria Marques e tantas outras e outros.

Modelo econômico e feminismo

Sandra Quintela, economista, educadora popular, articuladora da Rede Jubileu Sul [jubileusul.org.br] e presidenta do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs) traz reflexões convergentes, em grande parte, com Ladislau Dowbor, como a concordância da necessidade de se “construir lógicas diferentes do atual modelo econômico, propostas que se baseiam na justiça ecológica, social e econômica”. 

Para além do tripé descrito acima, Sandra apresenta um elemento central em suas análises, as mulheres. Atuante com a promoção de oficinas e debates sobre mulheres e o mundo do trabalho, desde os anos 1990, quando se mudou de Alagoas para o Rio de Janeiro, a educadora lembra que essa iniciativa foi muito importante naquela década, tendo, ao fim, o início da Marcha Mundial das Mulheres.

“Esse foi o primeiro movimento global que pautou os temas da pobreza e da violência contra as mulheres. Para falar da pobreza delas, tínhamos que abordar os seus trabalhos e o papel que exercem na sociedade. Começamos, assim, toda uma discussão sobre mulheres e economia. Não tem como desvincular essas pautas.

A partir daí começamos várias articulações, como com a Rede Latinoamericana Mulheres Transformando a Economia e criamos, no Brasil, um grupo de trabalho chamado Mulheres Economia, quando nos desafiamos a montar cursos de formação para elas”, relembra Sandra.

“Economia nada mais é do que de onde tiramos o nosso sustento material. E ela precisa ser centrada na participação das pessoas, não apenas como consumidoras.”

Na atual conjuntura, conforme a educadora, por mais que tenham inúmeras experiências de economia solidária, como aquela apresentada por Gerusa, há a necessidade de se fazer um crítica radical ao atual modelo econômico capitalista, “porque não existe a possibilidade de trabalharmos à margem dele a vida inteira”, frisa. 

Sandra entende que ao pensar um modelo econômico que visa colocar uma vida plena, vida digna, no centro, “é preciso questionar o mercado e o financiamento, as formas de produção do capitalismo que considera apenas o valor de troca e não o que tem valor de uso, como o trabalho de cuidado doméstico, o trabalho de manutenção das relações sociais, que faz parte da construção da teia da vida, e sem a teia da vida não há economia.”

Seja no campo seja na cidade, as mulheres são as principais defensoras dos territórios onde vivem, explica Sandra, e complementa: “Camponeses, indígenas, quilombolas, moradoras de bairros periféricos estão na vanguarda dos movimentos sociais e ambientais e das organizações de base.” A pesquisadora argumenta que a ciência econômica, em particular, tem contribuído para “universalizar” ideias que simplesmente não consideram “experiências particulares, individuais e grupais e que, dessa forma, não dão visibilidade àqueles que não têm espaço político e são silenciados em suas tarefas diárias”.

Foto: Reprodução Cozinhas Solidárias @cozinhassolidariasmtst

Alguns dados sobre a percepção das desigualdades no Brasil:

– 69% das pessoas pesquisadas concordam que o fato de ser mulher impacta negativamente na renda obtida;
– 85% concordam com o aumento dos impostos de pessoas mais ricas para financiar políticas sociais no Brasil;
– 85% afirmam que o progresso no país está condicionado à redução da desigualdade entre pobres e ricos;
– 75% acreditam que a cor da pele influencia a contratação por empresas no Brasil.


Fonte: Oxfam Brasil e Datafolha | Pesquisa Nós e as Desigualdades – 2022

A Economia de Francisco e Clara

Repensar o atual modelo econômico e apontar proposições tem sido uma tarefa árdua de toda a sociedade, e passa por pesquisadores, experiências urbanas e rurais, e discussões sobre a temática sempre presente durante o pontificado do Papa Francisco. A Igreja Católica centra as forças num modelo justo, com foco na dignidade humana, a serviço das pessoas e do meio ambiente, como se propõe na “Economia de Francisco”

Em setembro deste ano, o pontífice convocou a juventude internacional, membros de organizações sociais e economistas para compartilhar, em Assis, na Itália, sonhos e realizações convergentes à “Economia de Francisco”, em alusão a São Francisco de Assis, conhecido por viver de modo coerente ao Evangelho e por seus votos de pobreza. Mais de mil jovens ouviram do Santo Padre a urgência de se construir “uma economia que, inspirada em Francisco de Assis, hoje, pode e deve ser uma economia amiga da terra e uma economia de paz. Trata-se de transformar uma economia que mata em uma economia da vida, em todas as suas dimensões”. 

Talita Guimarães, economista e representante do Sefras – Ação Social Franciscana na Articulação Brasileira pela Economia de Francisco e Clara (ABEFC), presente nesse último evento, explica que a comitiva brasileira conseguiu traçar estratégias de atuação conjunta, sobretudo com países da América Latina e África do Sul, com encontros previstos para os próximos meses. “Temos destacado, no Brasil, Clara junto a Francisco, porque a figura da construção territorial passa pela representatividade e pelo compromisso das mulheres. São elas que encampam, essencialmente, e dão continuidade a essa nova perspectiva econômica”, detalha.

No Brasil, como menciona Talita, Clara de Assis foi agregada à “Economia de Francisco”. Nascida numa nobre família italiana, Clara foi uma mulher revolucionária em sua época, inspirada pelo próprio Francisco e seu modo de vida, fundou uma ordem feminina. Ela, também, fez voto de pobreza e dedicou sua vida ao próximo, tornando-se santa mais tarde.

>> Confira a cartilha Economia de Francisco e Clara: Princípios, conceitos e dicas para ação, elaborada pelo Sefras

Para a especialista, algo que tem se sobressaído, nesses eventos e nas discussões sobre a temática, é pensamento acerca de um modelo financeiro que coloque a vida digna humana como protagonista, e o chamado para que cada pessoa seja semeadora desse propósito em seus territórios. “Só quando conseguirmos ouvir os clamores dos mais pobres e fazer algo em relação a isso é que essa sociedade será humanizada, quando ela conseguir atender às necessidades de milhões que estão em situação de miséria, migração e perseguição. E esse é o chamado que passa do aspecto subjetivo para o prático, da incidência local à macro.”

Há um outro elemento sempre destacado pelo pontífice, seja na Economia de Francisco seja na Encíclica Laudato Sí, a relação do meio ambiente com as pessoas mais vulneráveis: “O grito da terra e o grito dos pobres é o mesmo. A poluição que mata não é somente aquela provocada pelo dióxido de carbono, mas também a desigualdade que polui o nosso planeta. As calamidades ambientais não podem cancelar as calamidades da injustiça social e da injustiça política”, afirmou o líder da Igreja Católica, conforme o portal Vatican News. 

>> Confira a Encíclica Laudato Sí

Aos jovens, o papa tem proposto três observações para que continuem no percurso da “Economia de Francisco”: 

“Olhar o mundo com os olhos dos mais pobres; investir para criar trabalho digno para todos; e se esforçar para que todas as ideias se transformem em ação.”

Imagem: reprodução CNBB

O Pacto dos jovens: que a economia se torne uma Economia do Evangelho

– uma economia de paz e não de guerra;uma economia que contraste a proliferação das armas, especialmente as mais destrutivas;
– uma economia que se preocupe com a criação e não a saqueie;uma economia a serviço da pessoa, da família e da vida, respeitosa de toda mulher, homem, criança, idoso e especialmente dos mais frágeis e vulneráveis;
– uma economia em que o cuidado substitua o descarte e a indiferença;uma economia que não deixe ninguém para trás, para construir uma sociedade na qual as pedras descartadas pela mentalidade dominante se tornem pedras angulares;uma economia que reconheça e proteja o trabalho digno e seguro para todos, especialmente para as mulheres;
– uma economia na qual a finança é amiga e aliada da economia real e do trabalho e não contra eles;uma economia que saiba valorizar e preservar as culturas e as tradições dos povos, todas as espécies vivas e os recursos naturais da Terra;
– uma economia que combata a miséria em todas as suas formas, reduza as desigualdades e saiba dizer, com Jesus e com Francisco, “bem-aventurados os pobres”;uma economia guiada pela ética da pessoa e aberta à transcendência;
– uma economia que crie riqueza para todos, que gere alegria e não apenas bem-estar, pois a felicidade não compartilhada é muito pouco.

>> Veja o discurso do Papa Francisco e compromissos

VOZES EM AÇÃO

Ana Paula Ribeiro: “A economia nos foi tirada”

Em um momento conturbado para a luta por moradia no Brasil, Ana Paula Ribeiro, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), relembra o período em que o governo do ex-presidente Michel Temer (MDB) parou de assinar todos os contratos voltados para moradia e desfez os que haviam sido estabelecidos com a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT). 

Na região de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, a militante diz que a luta “estacionou” naquele momento, já que não podiam contar minimamente com políticas públicas do governo federal, nem estadual e nem municipal. Nessa mesma época, pensando o que poderia ser feito pelo movimento, durante um intercâmbio com uma organização social da Argentina, a Frente Popular Darío Santillán (FPDS), conheceram os “comedouros”, restaurantes populares que, no contexto de fome extrema no país, os movimentos populares criaram em diversas favelas no entorno de Buenos Aires.

“Com o tempo, os movimentos conseguiram que a iniciativa se tornasse uma política pública. Com essa experiência que conhecemos lá, pensamos: ‘nós estamos na mesma situação no Brasil.’ E em 2017, conseguimos uma associação de bairro que estava desativada, deixaram a gente começar ali o projeto, com almoços solidários aos domingos. Quando vimos, estávamos servindo cerca de 400 marmitas. E assim começou a nossa primeira experiência”, conta Ana Paula, coordenadora nacional das Cozinhas Solidárias do MTST.

A iniciativa não poderia ficar restrita à capital paulistana, e exigiu do grupo o compartilhamento da experiência com outros estados nos quais o MTST estava presente, e cada localidade ficava responsável pela busca de fontes de renda para desenvolver e manter o trabalho, sendo o financiamento virtual uma forma de captação de recursos. Onde chegam as Cozinhas Solidárias, também desembarcam serviços como assessoria jurídica, cines-debates, oficinas culturais, aulas de reforço, curso de computação e alfabetização de jovens e adultos e outras ações mais.

As cozinhas, espalhadas por 11 estados e o Distrito Federal, estão situadas nas áreas periféricas das cidades, com exceção da Lapa, no Rio de Janeiro, e da Praça da Sé, em São Paulo. Atualmente, são 31 unidades espalhadas pelo Brasil. Para contribuir com a soberania alimentar local, o projeto promove o cultivo de hortas urbanas comunitárias nas próprias cozinhas e dentro das ocupações do movimento para fornecer alimentos de qualidade e, sempre que possível, para doação às comunidades próximas.

O sonho hoje da coordenadora é que, por meio de parcerias com o poder público, como a que está sendo negociada com a Prefeitura de Salvador (BA), seja possível replicar o projeto em inúmeros municípios, em cada bairro, e que fossem oferecidas mais refeições ao longo do dia, sempre mantendo bons níveis nutricionais.

Para que o desejo de Ana Paula e de tantas pessoas se torne realidade é preciso um elevado investimento público em moradia e alimentação, pautas caras do movimento do qual ela faz parte, para que o Brasil não fique num entra e sai do Mapa da Fome. “Precisa ter investimento público e a iniciativa privada trabalhando hoje mais do que nunca, porque é muita gente sem um lar. E sobre alimentação nem se fala, acabou-se com todas as políticas de combate à fome e não houve nenhum tipo de subsídio em relação à cesta básica. Por isso, para nós, a economia é fundamental, ela passa por nossas vidas nas questões mais básicas.”

“A economia, como um monte de outras coisas, nos foi tirada. Colocam ela como um assunto só para intelectuais e formados no assunto. Economia para mim é o que a gente consegue produzir, enquanto sociedade, para melhorar a vida de todo o mundo.”

De olho nos dados:

– 31 Cozinhas Solidárias espalhadas pelo Brasil
– Mais de 30 toneladas de alimentos preparados em 3 meses
– Mais de 6.000 marmitas servidas por dia

>> Conheça, contribua e ajude a divulgar o projeto: apoie.se/cozinhasolidaria

Thiago Vinícius: “As pessoas da periferia são PhD em matemática, para poder multiplicar uma grana tão pouca”

Em Campo Limpo, bairro periférico da zona sul de São Paulo, com mais de 215 mil habitantes – maior que diversos municípios, como Juazeiro (BA) –, Thiago Vinícius cresceu rodeado de desafios nas áreas do saneamento básico, saúde e moradia. “Sou de uma geração de jovens que nasce na comunidade, e que busca se estabelecer e melhorar a qualidade de vida no lugar em que vivemos, com alguns problemas superados pela qualidade de organização das nossas gerações anteriores.”

A partir dessa consciência e com um olhar atento para os desafios do bairro, Thiago e vários outros jovens decidiram empreender, há 12 anos, por meio da Agência Popular Solano Trindade, em referência a um pernambucano tido como um dos maiores animadores culturais do país na década de 1930. Desde o seu início, a Agência se firma com múltiplas pautas econômicas e sociais no território, com o primeiro banco comunitário e a criação da moeda Sampaio de crédito social e a moeda criativa Solano de crédito cultural

“Começamos com um trabalho focado no fortalecimento da economia local, buscando ampliar o microcrédito para as empreendedoras da comunidade, as moedas locais para melhorar as finanças do próprio bairro, e tudo isso fez com que olhássemos com potencial para a economia criativa do Campo Limpo”, explica Thiago, produtor cultural, empreendedor social e liderança comunitária.

“A Agência tem focado na economia criativa e a gente se tornou uma espécie de Sebrae [Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas] da favela, oferecendo para os empreendimentos assessorias, falando sobre plano de redes, de comercialização, plano de viabilidade econômica.”

A organização atua em três áreas principais:

  • Inovação Social: desenvolve tecnologias sociais próprias e articuladas com jovens e famílias em torno do afroempreendedorismo e das múltiplas economias; 
  • Cultura Popular: promove segmentos artísticos diversos da cultura dos povos, incluindo literatura, música, artes cênicas, artes visuais e povos ancestrais, e busca a valorização da cultura periférica e de novas mídias e linguagens; 
  • Sistemas Alimentares: fortalece a rede de distribuição de alimentos saudáveis, criou-se o acesso e pontes para os desertos alimentares das periferias.

Na área da alimentação, um dos projetos da Agência é o restaurante comunitário Organicamente Rango, no qual é oferecida comida para quem pode pagar e, também, àqueles que não têm condições financeiras. Há ainda um armazém para comercializar os produtos saudáveis e algumas áreas onde esses alimentos são cultivados. Thiago, ao elencar essas diversas ações da Agência, conclui: “O nosso trabalho é esse, o fortalecimento da qualidade de vida dos moradores aqui da nossa quebrada.”

E quando o empreendedor social fala no plural “nós”, em referência a quem está imerso nesse trabalho diário da Solano Trindade, se refere a um enorme coletivo atuante para conseguir tirar do papel e administrar essas várias iniciativas, como a Tia Nice, idealizadora, cozinheira e administradora do restaurante, e, ainda, mãe do Thiago.

“Vejo que o nosso trabalho continua necessário, assim como antes e depois da pandemia, porque a nossa economia está preocupada em gerar recursos, capital social, para poucos, e trabalhos como esse de acesso à alimentação gratuita e de qualidade devem perdurar por muitos anos, independente de vencedores das eleições”, analisa o jovem.

Impacto social em números:

– 50 mil famílias atendidas
– 800 marmitas distribuídas por dia
– 50 mil cestas básicas distribuídas
+ de 30 pessoas na equipe da Agência

>> Conheça e contribua com o trabalho realizado nas periferias de São Paulo: agenciasolanotrindade.com.br

E como fica o Brasil pós-eleições 2022?

“O mal desempenho econômico atual brasileiro não se justifica por conta da pandemia de Covid-19 e tão pouco pela guerra na Ucrânia. Isso se dá, porque se pegarmos qualquer agrupamento de países – seja de média mundial, América Latina, emergentes, OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico] –, eles cresceram mais que o Brasil nos últimos quatro anos. E, na verdade, isso acontece desde 2015. A economia brasileira tem um problema estrutural e é evidente que a pandemia impactou a economia, mas ela atinge todo o mundo, isso não justifica o nosso país ter um desempenho tão abaixo de outros países.”

O Brasil é um dos países que menos cresceu no mundo nos últimos 4 anos. A taxa média de crescimento é menor que qualquer agrupamento de países. Fonte: OCDE

A análise é de Pedro Rossi, professor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON). Essa observação é um contraponto à justificativa do governo federal e de seus aliados de que a economia nacional vai mal devido a fatores como a Covid e a guerra entre Rússia e Ucrânia. 

“O que faltou do governo brasileiro foi atitude em termos das macropolíticas clássicas, em particular a política fiscal, que esteve presa em uma ‘camisa de força’ desde 2015, quando começa um processo de austeridade fiscal e é reforçado enormemente com a Emenda Constitucional 95 [conhecida como PEC do Teto de Gastos], e aí se adotou uma agenda econômica na qual o ‘governo lava as mãos’. Na verdade, o governo tenta criar condições para o mercado puxar a economia, só que é uma economia com alto desemprego, de capacidade ociosa, e isso tudo leva a economia a um desempenho muito baixo e fraco”, considera o professor.

Para começar a mudar o cenário de crise econômica, Pedro afirma que seria necessário e urgente focar em duas questões: o desemprego e o subemprego e o combate à miséria. “Acredito que, num primeiro momento, é necessário trabalhar com a construção de um programa social de transferência de renda para dar conta de sanar a questão da fome no Brasil, e, de outro lado, fazer um programa de incentivo de investimento privado e público para gerar mais emprego e renda. São dois pontos que precisam ser endereçados já no ano que vem ao novo governo.”

“O que a gente vive hoje no Brasil, em termos econômicos, é o resultado de uma agenda que fracassou, a partir daquela ideia de que é preciso reduzir o tamanho do Estado para a economia crescer. Só que as reformas são feitas, os gastos são cortados e mal direcionados, e a economia não cresce.”

Em 2023, o Congresso Nacional empossará mais políticos conservadores do que na última legislatura, por exemplo, do Partido Liberal (PL), com a maior bancada da Câmara, terá 99 parlamentares, o que exigirá, conforme especialistas, mais negociação da oposição para o andamento de pautas progressistas ou sociais, inclusive no âmbito da economia. 

“Temos um parlamento com uma ala ideológica e de extrema direita forte, mas isso não é a metade da casa, e entendo que a grande maioria dos deputados e deputadas é suscetível a negociações políticas, como o ‘Centrão, que vai para o onde o vento toca’. Diante de um Congresso mais conservador, é necessário mais habilidade política para a negociação das pautas”, pondera Pedro.

O economista Pedro Rossi elenca algumas perspectivas para a agenda econômica do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para 2023:

  • Recuperar os instrumentos que o Estado tem para intervir na economia;
  • Recuperar a Petrobrás de modo que ela tenha papel de indutora do crescimento de cadeias produtivas do setor e ter como papel amortecer o impacto do preço do petróleo;
  • Recuperar os bancos públicos em seus papéis de financiar o desenvolvimento e os ciclos de desenvolvimento;
  • Recuperar o papel do gasto público, fortalecendo as transferências sociais;
  • Descarbonizar a economia;
  • E fortalecer o investimento público e privado nas áreas prioritárias para o desenvolvimento do país.

Para ler, para ver e para ouvir:

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