Publicado em
29/11/2024
O projeto é visto como tentativa da bancada ruralista de enfraquecer a reforma agrária e flexibilizar normas ambientais e sociais, favorecendo o agronegócio e grandes proprietários.
Por Tatiana Scalco, via Portal Jornalistas Livres, com colaboração de Henrique Marques
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No final da tarde da última terça-feira (26/11/24), durante a sessão extraordinária nº 208 da Câmara Federal, 290 deputados aprovaram o regime de urgência para que o Projeto de Lei (PL) 4357/2023 seja apreciado e entre em votação mais rápido.
O requerimento de urgência foi proposto pelos deputados federais Pedro Lupion do Partido Progressista (PP) do Paraná; Capitão Alden do Partido Liberal (PL) da Bahia e por Zé Trovão PL de Santa Catarina.
111 deputados votaram não para o regime de urgência. Um deles foi Paulão (PT AL), que explica: eles (a bancada ruralista) querem “tirar as possibilidades da reforma agrária”. E, para isso, “têm feito tentativas de flexibilizar a legislação, as regras ambientais, sociais e de acesso à terra”.
O caso do PL 4357/2023 é um exemplo típico. Ele foi protocolado na Câmara Federal um dia depois do Supremo Tribunal Federal (STF) decidir como improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3865, proposta pela Confederação Nacional de Agricultura (CNA) questionando a função social da terra.
“A rigor, a bancada ruralista na Câmara dos Deputados opera, com sua força numérica, um revanchismo raivoso em relação ao posicionamento adotado pelo STF no julgamento que ocorreu no ano passado da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3365/DF. Esta ação foi proposta pela Confederação Nacional da Agricultura e tramitava no Supremo desde 2007”, fala o professor de direito ambiental Pedro Diamantino da Universidade Estadual de Feira de Santana UEFS – BA, membro da AATR – Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais e da Renap – Rede Nacional de Advogados/as populares.
“O agronegócio, os latifundiários brasileiros, lutam para “acabar com a reforma agrária e para isso eles têm que acabar com a possibilidade ou a exigência legal de que a Terra deve cumprir sua função social”, comenta Alair Luiz dos Santos, diretor de Política Agrária da Confederação nacional dos trabalhadores rurais na agricultura familiar Contag.
“Para o agronegócio, para os latifundiários que exploram, quanto mais escravos eles tiverem, quanto mais pessoas trabalhando com salário miserável, quanto mais concentração de terras, quanto mais possibilidades de expulsar comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas das terras, mais (isso) é aplaudido. Eles acham que esse é o caminho correto. Nós, ao contrário, vamos continuar lutando para que a terra cumpra a sua função social, que haja desconcentração de terras, independente do que o parlamento entender”,
afirma Alair.
“O Brasil tem uma dívida social enorme. Os países que tiveram desenvolvimento, todos realizaram reforma agrária. Nós somos um país continental. Infelizmente temos concentração de terras na mão de poucos”, destaca o Deputado Federal Paulão (PT-AL). A reforma agrária é uma ferramenta social, fundamental, não só do ponto de vista económico da distribuição da Terra, visto que altera o padrão da economia, mas também de qualidade de vida. “Sou favorável à reforma agrária”, finaliza Paulão.
“Não é possível construir soberania alimentar, um mundo sem forme, sem fazer reforma agrária”, destaca Leomárcio Araújo da coordenação nacional do Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). Os parlamentares que atuam na contramão da democratização da terra, agem de forma desumana e arbitrária, completa.
“Desobrigar a terra de cumprir sua função social seria um retrocesso grave em termos de direitos sociais, justiça agrária e proteção ambiental. A terra deixaria de ser vista como um bem comum, essencial à dignidade humana, para ser tratada apenas como um ativo de especulação ou reserva de poder econômico, ampliando desigualdades e conflitos”, destaca Frei Marx do Ação Social Franciscana (Sefras).
O PL 4357/2023 compõe o pacote de propostas legislativas que pretendem flexibilizar regras ambientais, sociais e de acesso à terra.
O que significa a expressão ‘Função Social da Terra’?
Função Social da Terra é um princípio que busca equilibrar o direito à propriedade privada com as necessidades coletivas, assegurando que a terra seja utilizada de forma justa, sustentável e produtiva para toda a sociedade. Ela é fundamental para combater a pobreza e promover a inclusão social, proteger o meio ambiente e os recursos naturais, promover a justiça agrária e reduzir conflitos no campo e garantir o uso responsável e ético de um recurso essencial para a vida humana.
Esse princípio é norteador do direito de propriedade no Brasil e está presente na Constituição Federal de 1988. De acordo com ele, todo bem, seja móvel ou imóvel, rural ou urbano, deve ser utilizado em prol dos interesses da sociedade, e não apenas dos proprietários.
O cumprimento da função social da terra é avaliado com base no uso produtivo, sustentável e socialmente responsável da propriedade. Esses critérios refletem o equilíbrio entre o direito à propriedade e as responsabilidades coletivas, assegurando que a terra seja um recurso de benefício compartilhado para toda a sociedade.
Constitucionalidade da Função Social da Terra
A constitucionalidade da função social da terra tem sido questionada por alguns setores, especialmente aqueles vinculados a interesses econômicos do agronegócio, grandes proprietários de terra e defensores de uma visão mais liberal da propriedade privada. Esses questionamentos geralmente estão relacionados à interpretação do direito de propriedade e ao papel do Estado em regular seu uso. O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente o questionamento – Acordão STF publicado em 04/10/2023.
Ou seja, função social da terra é um princípio explícito e central da Constituição Federal de 1988, sendo amplamente reconhecida como constitucional.
“A função social da propriedade está consagrada pela Constituição Federal de 1988, em seu inciso XXIII do artigo 5º, portanto, inserido entre os direitos fundamentais, inclusive de gênese liberal, bem como constante do artigo 170, inciso III, na condição de princípio da ordem econômica no Brasil”, explica o Jurista e pesquisador Flávio de Leão Bastos Pereira, Pós-doutor em Direitos Humanos e Novas Tecnologias, Doutor e Mestre em Direito Político e Econômico, Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro da Frente Ampla Democrática Pelos Direitos Humanos (FADDH).
Comentando sobre o PL 4357/2023, Bastos destaca que “eliminar da Lei n. 8.629/93 o requisito da observância da função social da propriedade para fins de desapropriação de terras produtivas, afronta, no meu entender, a cláusula pétrea constante do inciso IV, do §4° da CF/88, consistente nos direitos e garantias individuais”. Para ele “o PL 4357/2023 é inconstitucional”.
Órgãos do Sistema de Justiça têm se posicionado sobre o tema, como a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, que em sua Nota Técnica PFDC nº 10/2024 observa que “a Constituição da República assegura o exercício do direito de propriedade (art. 5º, inciso XXII, CF), desde que cumprida sua função socioambiental (art. 5º, inciso XXIII, e 186, CF), bem como medidas eficazes, sob o crivo do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CF), para retomada de imóveis irregularmente ocupados;”
Ou seja, os critérios de função social da propriedade devem ser cumpridos.
O Conselho Nacional do Ministério Público, em sua Recomendação nº 63 de 26/01/2018 destaca que: “o acesso à terra é elemento estruturante do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º, III, da CF/88), norteador do Estado Democrático de Direito da República Federativa do Brasil, que se efetiva pelos direitos fundamentais, como o direito à propriedade (art. 5º, caput, CF/88), à moradia, ao trabalho, à alimentação, à saúde, à educação, dentre outros (art. 6º, CF/88), todos inseridos nos conflitos sociojurídicos rurais”.
O caminho percorrido pelo Projeto de Lei 4357/2023 na Câmara Federal
O PL 4357/2023 foi apresentado em 05/09/2023, pelo deputado pecuarista em primeiro mandato, Rodolfo Nogueira do PL do Mato Grosso. O objetivo da proposta é “impedir que terras produtivas sejam desapropriadas para a realização da reforma agrária”. Inicialmente houve solicitação e regime de urgência, não aprovado em 2023.
A proposta tramitou durante um ano. Passou por diversas comissões, todas cuja maioria está composta por deputados da bancada do agro. Na comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural (CAPADR), o relator foi o deputado Marcelo Van Hattem (Novo-RS) que deu parecer pela aprovação.
Em abril de 2024, o PL 4357/2023 foi redistribuído para as comissões do Trabalho (CTRAB), Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) e Desenvolvimento Econômico. Ao mesmo tempo, o PL foi enviado para Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), cujo relator designado foi o deputado Zucco (PL RS), que além de considerar constitucional o texto, posicionou-se a favor do seu mérito:
“No entanto, cremos não ser despiciendo declarar que, no que diz respeito ao mérito das proposições, somos levados a concordar com elas, posto que todas revelam preocupações válidas e compatíveis com a melhoria de nosso sistema agrário, preservando uma grande fonte de riqueza de nosso país e, por conseguinte, com o aperfeiçoamento de nossa democracia.” (deputado Zucco)
Em 24 de outubro de 2024, logo após o primeiro turno das eleições municipais, a CCJ aprovou o texto 32 dias depois, é aprovado regime de urgência para votação do PL 4357/2023 no Plenário.
Quem votou a favor e contra o regime de urgência do Projeto de Lei 4357/2023.
A votação foi presidida pelo Deputado Federal Pompeu de Matos (PDT RS).
Todos os parlamentares presentes dos Partidos Novo, Republicanos e PRD votaram a favor da urgência. Praticamente todos os deputados do PL, PP, PSD, PSDB, PDT, Cidadania e União Brasil também votaram a favor.
Votaram contra todos os parlamentares do PSOL, PT, PCdoB. PSB, PV e MDB ficaram divididos, como pode ser observado no quadro abaixo:
Quais são os critérios para que a Função Social da Terra seja cumprida?
O Artigo 186 da Constituição Federal do Brasil define os critérios que definem se a propriedade rural cumpre sua função social. Com esses requisitos pretende-se que não só os proprietários, mas também a sociedade seja beneficiada. Para tanto, devem ser cumpridas as seguintes condições, simultaneamente:
Por que os critérios para a Função Social da Terra são importantes?
Porque eles são fundamentais para a promoção do uso eficiente e sustentável do solo, a garantia do o acesso à terra para agricultores familiares e trabalhadores rurais, para a preservação do meio ambiente e os recursos naturais, para a redução das desigualdades sociais e econômicas no campo e para evitar ociosidade ou uso predatório da terra.
O cumprimento desses critérios é avaliado por órgãos públicos, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), especialmente no caso de propriedades rurais em processos de desapropriação para reforma agrária.
O descumprimento da função social pode levar à classificação da propriedade como improdutiva, possibilitando sua desapropriação pelo Estado, com indenização ao proprietário.
Em resumo, a função social da terra é justamente a regulação sobre como o que a gente vai cultivar as terras do nosso país acontece, explica Frei Marx da Ação Social Franciscana (Sefras). Ele destaca três pontos importantes: a forma como se dá o cultivo da terra para a produção de alimentos, as relações de trabalho nesse ciclo, relação e preservação do meio ambiente e as mudanças climáticas. Sem esquecer que tudo isso relaciona-se diretamente com a forma como cuidamos da nossa casa comum, como lembra o Papa Francisco.
*O presente artigo, de autoria de Tatiana Scalco para o Portal Jornalistas Livres, é o primeiro de uma série de reportagens que o portal está produzindo. Nas matérias seguintes, serão abordados os significados e implicações que podem ocorrer se a função social da terra for suprimida. Confira o artigo aqui.