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Publicado em

17/09/2024

“Temos que ter a coragem de ouvir a terra”, afirma Ailton Krenak

Em entrevista exclusiva à Revista Casa Comum, liderança indígena e imortal da Academia Brasileira de Letras defendeu que, ao contrário da busca da humanidade por progresso e desenvolvimento, seres humanos deveriam ter um envolvimento com o corpo da Terra a fim de produzir novos afetos e sentidos.

Por Maria Victória Oliveira

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Ailton Krenak. Foto: Neto Gonçalves

O trecho acima, que integra o livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, faz eco à compreensão de Ailton Krenak de que é absurda a ideia de seres humanos que se descolam da Terra e vivem uma abstração civilizatória. Já em A vida não é útil, outra de suas obras, Krenak afirma que parece que é uma declaração da Terra que “nós não estamos com nada”.

Seja em seus livros, seja discursando em 1987 na Assembleia Constituinte com o rosto pintado com a tinta preta do jenipapo em protesto a um retrocesso na luta pelos direitos dos povos indígenas, o ativista do movimento socioambiental, defensor dos direitos dos povos indígenas, ambientalista, filósofo, poeta e escritor, analisa que a própria ideia de humanidade está na base de muitas escolhas erradas que foram feitas ao longo do tempo.

Em entrevista exclusiva à Revista Casa Comum, Krenak conta que, por vezes, diante da crise climática, ecológica e sistemática enfrentada hoje, sente-se no limite de sua capacidade de interpretar o tempo que a humanidade está vivendo. Um tempo de violência contra o corpo da Terra pelo uso de agrotóxicos, exploração das montanhas, contaminação dos rios, e uma postura egoísta por parte dos seres humanos, que desconsideram toda e qualquer outra espécie que não eles mesmos.

A violência estende-se também aos próprios seres humanos. Ao passo que há a replicação de guerras que bombardeiam o corpo da Terra, Krenak reflete sobre grupos e populações “meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens do rios, nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. São caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes”, como analisa em Ideias para Adiar o Fim do Mundo. Não coincidentemente, são essas populações que mantêm uma conexão íntima com a Terra e que mais sofrem os efeitos das mudanças climáticas.

Diante da complexidade e interconexão entre as muitas temáticas abordadas durante a conversa, a Revista Casa Comum optou por, excepcionalmente, mudar o formato tradicional de perguntas e respostas da editoria Papo Reto. Nesta edição, nossos leitores e leitoras terão a oportunidade de navegar pelas reflexões de Ailton Krenak divididas em três grandes blocos: como eram os comportamentos de uma humanidade em profunda conexão com o meio ambiente, quais caminhos levaram à perda dessa conexão e quais são os comportamentos de violação do corpo da Terra e, finalmente, os caminhos possíveis para retomar essa relação e postura de respeito pela Mãe Terra. Cada intertítulo conta com uma reflexão introdutória da Revista Casa Comum, seguida por uma fala de Ailton Krenak.

Se a humanidade está, hoje, em uma posição indesejada, que encara a Natureza como recurso e perdeu a conexão com a Mãe Terra, como eram os comportamentos dos seres humanos que, de fato, tinham essa relação íntima com o espaço à sua volta?

Afinal, de onde partimos? Como era a humanidade antes de chegar a um contexto de emergência e crise socioambiental generalizada? Quais eram seus comportamentos, seus costumes e crenças?

“Até o século 18, a maior parte da humanidade vivia de pedir à Terra o pão de cada dia. Independente de você ser cristianizado, de você viver numa tribo na África, ou na América, você agradecia à Mãe Terra por estar amanhecendo o dia. Tem uma canção linda que celebra essa memória de uma humanidade gentil que se reunia no final da tarde e cantava: ‘Todo dia o sol levanta e a gente canta ao sol de todo dia’. Quando somos crianças, engatinhamos feito um gatinho no chão. Temos alegria de engatinhar com a mãozinha no chão. Às vezes, a gente até pega a terra e põe na boca, porque nós estamos imersos na Mãe Natureza, não como esse sujeito cheio de cérebro, mas como um organismo cheio de vida com um coração pulsante, com a alma totalmente entregue à beleza da existência da vida. É uma epifania. Viver é uma celebração.”

Desconsiderar que a Terra é um organismo vivo é uma das posturas dos seres humanos que contribuíram para a perda da conexão com essa verdadeira Mãe Terra. Atualmente, são muitos os comportamentos de violação do corpo da Terra: desde a exploração desenfreada do solo e da água, até o uso de agrotóxicos para a produção de alimentos.

Em algum momento da história, seres humanos passaram a acreditar que ocupam o centro do universo, o que teve impactos diretos e concretos no bem-estar do planeta que habitam.

“Na maioria das vezes, sou tomado por uma indignação quando observo de perto esse retrato da humanidade, e digo que ela deu metástase, que é a incapacidade de nos afetar profundamente com a vida. Os humanos ficaram tão convencidos de si mesmos que eles não agradecem mais nada, não se despedem do dia, não saúdam o amanhecer; são cérebro. Eles transformaram o pensar num exercício autorreferido. Não existe mais nada a não ser esse ego doloroso, doente, que só precisa de coisas: uma casa, um carro, um prédio, uma cidade, um país, um planeta, um satélite. Esse pobre humano conseguiu se transformar nessa coisa tão miserável e o caminho que ele teve que fazer para chegar a esse lugar alguns cientistas chamam de ‘especismo humano’. Quer dizer, nós nos atomizamos e ignoramos que existem outras espécies. Só existe a espécie humana. A gente baniu tudo que poderia nos animar a uma existência comum e coletiva e nos tornamos um ego sozinho no mundo, comendo mercadoria.”

Será que o processo da globalização contribuiu, de alguma forma, para o rompimento da relação íntima com o corpo da Terra? O que aconteceu com a humanidade nesse meio do caminho? O que a levou a essa transformação?

O que significa, afinal, essa “paixão pela mercadoria”? Ela está relacionada com a separação entre seres humanos e a Terra? Como eles foram se distanciando, aos poucos, dessas partes constituintes da Terra, como a água, a própria terra e os minérios, que, em uma abordagem materialista e utilitarista, são, por vezes, tratados como meros recursos?

“Davi Kopenawa, esse nosso irmão Yanomami, publicou o livro A Queda do Céu, onde ele diz que os brancos se constituem na sociedade da mercadoria. […] Essa ideia pode ser percebida como uma espécie de moto contínuo. Começamos fazendo um pequeno afastamento desses outros organismos vivos da Terra, e passamos a observar o corpo da Terra como alguma coisa que a gente pudesse esquadrinhar: ali tem areia, ali tem terra, ali tem água, ali tem minério, ali tem madeira, ali tem fontes de energia que a gente pode transformar. E esse humano começou a

fazer uma distinção entre esses constituintes do organismo da Terra como partes que ele podia manipular. Essa ideia de manipular o organismo da Terra é que permitiu aos humanos pensar a água como recurso, a floresta como recurso, uma montanha como recurso. Há muito tempo eu insisto dizendo: os brancos olham uma montanha e calculam quantas toneladas de minério ela pode proporcionar. Eles não conseguem ver a beleza da montanha. Eles não conseguem ouvir o rumor da montanha, mas a montanha fala […].”

O distanciamento, a perda do vínculo e da conexão entre seres humanos e o corpo da Terra contribui para atitudes ainda mais agressivas, como o uso de agrotóxicos, pesticidas e defensivos para a produção agrícola, ao que a Terra responde com frutos sem vitalidade e envenenados.

“Boa parte da atividade desenvolvimentista do planeta hoje envenena os corpos, seja o corpo da Terra, seja indiretamente nós, os filhotes dela, que já adoecemos faz tempo e não somos capazes de distinguir o que é uma fruta envenenada e o que é um fruto saudável. Uma amiga minha que cultiva bananas cortou o cacho de banana que costumava amadurecer em três dias. Ela falou que neste tempo o cacho de banana ficou preto, necrosou. Os pés de banana de onde ela foi extrair estavam sendo cultivados no solo que já tinha sido supercalcado com remédio para matar formiga e minhoca. Quer dizer: primeiro matam o solo. Agora o solo estava devolvendo banana morta. É uma parábola horrível sobre como nós estamos nos relacionando com o organismo da Terra, tratando tudo como mercadoria.”

Além da alimentação, a postura de maltratar, atacar e agredir o corpo da Terra também terá efeitos no abastecimento de água, o que não poderá ser revertido com medidas alternativas, como a dessalinização da água dos oceanos.

“Nós estamos chegando a um colapso irreparável com relação ao abastecimento e fornecimento de água. As montanhas são organismos que guardam a água. Se cortar a montanha, não vamos ter água. Os desenvolvimentistas falam: ‘Vamos dessalinizar a água do oceano, transformar em água potável.’ Quem vem com essa ideia para resolver a questão das águas que nós estamos esgotando é de uma desrazão absoluta, porque as águas do oceano têm uma função ao serem salgadas.”

Krenak tece uma crítica a religiões que pregam a ideia de que, ao morrer, os seres humanos vão para um lugar melhor do que a Terra. Segundo o ativista, a ideia de outro lugar poderia ser encarada como um “aval” para o não cuidado da Terra.

“Muitos povos não conseguem sair dessa apaixonante relação com os organismos vivos do planeta e nem precisam abstrair uma ideia de qualquer entidade supranatural, porque entendem que o sobrenatural é estar vivo. Experimentar a vida com toda a sua potência é sobrenatural. Então, a gente não precisa ficar abstraindo a ideia de que tem alguma coisa incrível fora daqui e que a gente vai para lá. Essa ideia me aborrece um pouco, porque tem muita gente que acha que pode descartar esse planeta porque tem um outro lugar para ir. A maior parte das grandes religiões do planeta acham que tem esse outro lugar. Essa ideia conspira contra o respeito e a valorização da vida onde nós estamos agora. Quem está querendo ir para outro lugar, não ama o lugar que está.

Outra problemática quando o assunto é a crise climática são as grandes cidades mundiais. Afinal, quanto de energia é necessário gerar para manter funcionando uma cidade como São Paulo? E Londres, na Inglaterra? E Nova York, nos Estados Unidos? Esses “monstros de metrópoles” são, para Krenak, um reflexo de um comportamento que sobrecarrega o corpo da Terra.

“Nós não temos necessidade de 90% das coisas que sobrecarregamos o corpo da Terra hoje. O corpo da Terra está aviltado pela nossa ganância. A gente não precisa desses monstros das metrópoles, que se constituíram em sumidouros de energia. De onde vamos tirar energia para esses buracos que estão no corpo da Terra? Do próprio organismo da terra, dos oceanos, das florestas, dos rios. É uma equação totalmente inviável. Debates de engenharia e arquitetura estão tomando o meu texto Saiam desse Pesadelo de Concreto, que fiz com meus colegas da Universidade Federal de Minas Gerais, como um alerta para gente parar de investir na infraestrutura das grandes metrópoles e começar a pensar a horizontalidade, ocupar outros espaços, ir buscar outros lugares para viver. O agronegócio ocupa milhões de hectares para jogar veneno no corpo da Terra. Nós deveríamos estar interpondo nosso corpo a essa drogadição do corpo da Terra e cuidando da Terra com o nosso corpo. É isso que os Kaiowá Guarani fazem no Mato Grosso do Sul e toda hora aparece uma família sendo atacada.

“Então, quando digo fuja da caixa de concreto, eu estou dizendo para as pessoas que ainda dá tempo de abandonar essas estruturas doentes da cidade e buscar outras maneiras de viver.”

Diante de tantas violações, afinal, há esperança? Quais são os caminhos possíveis para retomar a relação e postura de profundo respeito e reverência pela Mãe Terra?

Mergulhar na compreensão de que os ecossistemas, os biomas e territórios onde se inserem os seres humanos são suficientes para sua sobrevivência pode ser um dos caminhos para retomar uma postura de cuidado com o meio ambiente.

“Nego Bispo, um quilombola lá do Piauí, uma pessoa muito especial, dizia: ‘A Terra dá, a Terra pede’. Isso é a experiência de alguém que viveu dentro do ciclo de dádiva da Terra. Chove, a terra floresce. Seca, a terra míngua. “

“[…] Meu querido [Davi] Kopenawa Yanomami me disse: ‘Quando estou me sentindo totalmente assolado por ameaça de morte e de violência, pego uma trilha, busco um lugar dentro da floresta, deito no chão e esqueço de mim. Quando desperto, eu estou pronto para resolver todos os problemas.’ Quando meu amigo Davi Yanomami me disse que ele se restaura entregando o corpo dele para Terra literalmente, eu achei isso tão maravilhoso, que eu tomei isso como uma pedagogia da Terra. Quando falo que a gente tem que ouvir a Terra, estou falando que a gente tem que se misturar com ela. O nosso corpo tem que se misturar com o corpo da Terra. Não tem nada a ver com o intelecto, não é cognitivo no sentido mental. É uma experiência radical: a gente tem que se enfiar no corpo da Terra para que ela nos acolha, nos dê linguagem, produza em nós outros sentidos para além dessa crônica situação em que os humanos se meteram e que não sabem mais voltar para casa. Quer dizer, a única maneira de voltar para casa é se enterrando.”

Se a ideia, então, é buscar uma reconexão com a Terra e aprender com ela os caminhos possíveis para isso, é possível afirmar que a resposta da crise atual, um contexto não só climático, mas social, econômico e político, está na compreensão da Terra enquanto organismo vivo. Enquanto para povos e comunidades tradicionais isso significa uma parte estruturante de quem são, para o restante da humanidade essa compreensão veio com estudo e investigação científica.

“Um grupo de cientistas no final do século passado, pesquisando com recursos da Nasa, atinaram que a Terra é um organismo, não uma plataforma inerte que a gente soca, corta, muda de lugar. E por ser um organismo, dependendo de como a gente mexia, ele reage e pode reagir de uma maneira que não somos capazes de acompanhar, que vai nos expelir do corpo da Terra. A modernidade assolou como uma peste a sensibilidade dos humanos em diferentes culturas na Ásia, na África, nas Américas. Não podemos continuar abrindo shopping, prometendo tudo, querendo mandar foguete para o espaço, querendo colonizar Marte ou a Lua. A gente já perdeu o domínio da nossa relação com reconciliar com ele, mas não nos termos dos humanos.

“Precisamos mudar o paradigma: ao invés de buscar progresso e desenvolvimento, nós deveríamos buscar envolvimento, a gente tem que se envolver com o rio, a floresta, a montanha, com o corpo da Terra. Depois desse envolvimento, nós vamos produzir outros afetos, vamos ser capazes de outros sentimentos. [O conceito de Casa Comum] evoca em mim um esperançar, uma utopia, um desejo de que essa trôpega humanidade arrume uma maneira de se acalmar, sentar e ouvir uns aos outros. Só isso, nada mais.”

Fique por dentro

• Artigo Saiam desse Pesadelo de Concreto: bit.ly/RCC_10_12

• Discurso de Ailton Krenak na Assembleia Constituinte, em 1987: bit.ly/RCC_10_13

• Live pública com Ailton Krenak no programa URBE URGE, uma iniciativa do BDMG Cultural, com apoio do grupo de pesquisa Cosmopólis, da Escola de Arquitetura e Design da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que deu origem ao artigo Saiam desse Pesadelo de Concreto: bit.ly/RCC_10_14


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