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Papo reto

Publicado em

26/10/2023

“Ser brasileiro deveria ser uma atitude de cuidado com a Terra Mãe”, afirma Daniel Munduruku 

Em entrevista à Revista Casa Comum, o professor e autor de mais de 60 livros comenta sobre como a ancestralidade pode oferecer respostas para o futuro do planeta.

Por Maria Victória Oliveira

Agência Ophelia/Itaú Cultural

Devido a sua profunda conexão com a natureza, os povos indígenas têm um vasto conhecimento acerca dos processos naturais fundamentais para a continuidade da vida. Em seu TEDxAmazonia, o cientista e pesquisador Antonio Nobre conta sobre como Davi Kopenawa, escritor, xamã e representante dos Yanomami, relatou que o espírito da floresta havia contado ao povo que, sem mata, acaba a chuva, uma descoberta até então recente para o grupo de pesquisadores, mesmo com seus computadores modernos. 

Trata-se de uma relação de respeito, coexistência e comunhão com a Mãe Terra. Os povos indígenas entendem que é possível viver do que a natureza dá, sem que, para isso, seja necessário destruí-la, como têm feito nações desenvolvidas, de maioria da população branca, com sua ideia de progresso e de desenvolvimento.

É nesse sentido que Daniel Munduruku, paraense, pertencente ao povo indígena munduruku, professor e autor de mais de 60 livros, muitos deles dedicados ao público infantojuvenil, e vencedor do Prêmio Jabuti, fala sobre o que chama de uma pedagogia do pertencimento, ou seja, a compreensão de que o povo brasileiro, com sua diversidade e miscigenação, pertence a esse território rico e abundante e que, portanto, é sua missão, dever e responsabilidade cuidar dele. 

A Revista Casa Comum conversou com Daniel para compreender como é possível, a partir da perspectiva de povos indígenas, repensar caminhos em uma tentativa de reverter o processo de destruição do planeta. Confira a seguir. 

Revista Casa Comum: No âmbito da pedagogia do pertencimento, você fala que foi embutido em nossas cabeças que “o legal é ser o outro” . O que engloba, então, esse movimento de ter orgulho de quem somos, enquanto povo brasileiro? 

Daniel Munduruku: Essa reflexão que tenho feito é sobre a necessidade de criarmos uma pedagogia que parte da nossa ancestralidade brasileira, ou seja, dos indígenas e das culturas africanas. É uma forma de nos encontrarmos enquanto povo, enquanto cultura, e termos orgulho daquilo que somos efetivamente. Essa miscigenação, que é fundante da nossa nacionalidade, tem sido muito desprezada por conta de um discurso hegemônico, que prefere que a gente seja o que nos colonizou, porque ainda temos a ideia de que o colonizador é superior ao colonizado. 

Há uma necessidade de reconhecermos a diversidade que mora na gente, e valorizar os aspectos positivos que nos tornam brasileiros, mais do que os negativos. Um deles, sem dúvida, é o nosso lugar de pertencimento na cultura indígena, que tem muito a ver com a ideia de que nós somos parte desse grande território chamado Brasil, e que é importante tomar conta dele, valorizar nossas riquezas, o nosso patrimônio material, imaterial, histórias, tradições e tudo aquilo que o colonizador chama de folclore, mas que, para nós, é a realidade que se impõe. 

Revista Casa Comum: A pedagogia do pertencimento também diz respeito ao pertencimento ao meio ambiente, enquanto todos como parte da natureza? Esse é um caminho para resgatarmos nossa relação de cuidado com a Casa Comum? 

Daniel Munduruku: Eu diria que a grande riqueza que o Brasil tem é o seu meio ambiente. Na medida em que começarmos a pensar o território como parte de nós, naturalmente vamos ter um cuidado com esse lugar. Para o indígena, é justamente estar em conexão permanente com todos os seres vivos. Ser brasileiro deveria ser uma atitude de cuidado com esse lugar, com a Terra Mãe, e que, portanto, nos levaria a um comprometimento de cuidado com esse lugar, considerando a própria pedagogia da natureza, que é a pedagogia sistêmica, da generosidade e da partilha. Se a gente conseguir, enquanto povo, pensar dessa maneira, por essa pedagogia do pertencimento, seríamos muito ricos. Uma riqueza de bens materiais, mas sobretudo uma riqueza de realização enquanto pessoas vivendo nesse planeta com data de vencimento.

“Há uma necessidade de
reconhecermos a diversidade
que mora na gente, e valorizar
os aspectos positivos que nos
tornam brasileiros, mais do que
os negativos.”

Revista Casa Comum: Tivemos recentemente a Cúpula da Amazônia, que contou com uma forte mobilização de organizações da sociedade civil em pautar temas urgentes e demandas locais, inclusive com críticas à Declaração de Belém, por não contarem, justamente, com as considerações das populações amazônidas. Qual a importância de trazer os povos indígenas, quilombolas e tradicionais para o centro de espaços de tomada de decisão? 

Daniel Munduruku: Não tenho a mínima ilusão de que as pessoas que dominam o poder e que teriam a possibilidade de resolver alguma coisa em direção à manutenção da Terra Mãe estão dispostas, de fato, a fazer essa mudança. Para mim, esses encontros de cúpulas são sempre “perfumarias”, uma forma performática de dizer para o mundo que estamos preocupados. Mas, quando vemos como as coisas se movimentam nos bastidores, percebemos que, na verdade, não há um interesse de mudar de atitude para além daquilo que o sistema financeiro e econômico exige.


Os protocolos que se assinam são apenas protocolos, porque o que é determinado a se fazer não está nesses documentos. Então, não faz diferença os indígenas ou a população participar. As populações consideradas minorias não são ouvidas. Todo esse escarcéu que fazem de “Vamos levar a COP para Belém, que já está se preparando”, só vai servir para criar mais problemas do que soluções, como uma Copa do Mundo, que se criam mudanças e, depois que todo mundo vai embora, tudo volta a ser como antes. Os povos indígenas teriam que estar na dianteira desse debate se fosse realmente do interesse mudar, porque se trata de uma mudança de paradigma de desenvolvimento. 

Revista Casa Comum: O que seria essa mudança de paradigma a que você se refere? 

Daniel Munduruku: O paradigma de hoje é considerado satisfatório. É um paradigma economicista, que vai conduzindo as pessoas e as sociedades para uma ideia de que desenvolver, crescer e evoluir é uma necessidade humana, e que precisa ter também mais recursos minerais e naturais a serem explorados para o nosso bem, para o crescimento e para o desenvolvimento. Já o paradigma indígena é o paradigma da própria natureza, que está dizendo: o caminho não é esse. Só que como se estabeleceu que o sistema econômico que nós vivemos é o melhor, não se quer pensar em outro. 

Revista Casa Comum: Como os povos indígenas conseguem ter clareza sobre a necessidade e a importância desse novo paradigma? 

Daniel Munduruku: Os povos indígenas estão conectados com a natureza de tal maneira que conseguem equilibrar a experiência de vida com as suas necessidades físicas, biológicas e humanas, justamente por terem entendimento a respeito da natureza, que não é o entendimento economicista, ou de riqueza, é o entendimento de partilha. O pensamento ocidental e da elite brasileira é um pensamento de destruição, que só sabe pensar a vida a partir da produção de riqueza, que passa pela exploração da natureza. E não importa quem está protegendo a natureza, porque se isso é um empecilho, eles vão detonar aqueles que protegem.

Revista Casa Comum: Considerando que florestas protegidas por povos indígenas na Amazônia têm -2°C se comparado a áreas não protegidas, e no Parque Indígena Xingu a temperatura é -5°C se comparada ao entorno de pastagem e monocultura, porque discussões como o Marco Temporal se fazem fundamentais nesse contexto da ecologia e mudanças climáticas?

Daniel Munduruku: A discussão que os indígenas colocam é simples: nós precisamos da Terra para manter o nosso modo de vida. E não apenas um pedaço de terra onde a gente construa uma casa, porque o nosso modo de vida está ligado a nossa compreensão de mundo, que por sua vez está ligada à terra, aos rios, às nascentes, às frutas, aos animais, às nossas crenças que passam por lugares sagrados onde moram as nossas entidades. Ou seja, demarcar nossa terra não é nos dar a terra como propriedade, é nos garantir que possamos continuar acreditando naquilo que acreditamos, produzir aquilo que produzimos. E essa produção passa tanto pela manutenção do nosso corpo quanto pela manutenção do nosso espírito. Isso é demarcar a terra e garantir a sobrevivência dos povos indígenas. 

Revista Casa Comum: Outro debate importante diz respeito às matrizes energéticas. Enquanto a Declaração de Belém nem ao menos citou o termo combustíveis fósseis, sabemos da expansão, avanço e exploração por parte de empresas, inclusive estrangeiras, sobre territórios brasileiros para instalação de torres de energia eólica, por exemplo, e também da ameaça da exploração de petróleo na Amazônia. Por que a discussão energética deve ir além do modelo adotado?

Daniel Munduruku: O petróleo continua sendo um dos principais produtos para destruição ambiental desse planeta. Se quisermos a continuidade da vida, precisamos pensar em como gerar energia com menos desgaste ecológico, porque qualquer tipo de energia vai ter alguma consequência para as pessoas, para as comunidades e para os seres não humanos. Agora, perfurar a Amazônia atrás de petróleo é um absurdo. É o que eu dizia: protocolos são perfumarias, porque, na prática, as coisas vão acontecer à revelia, como aconteceu [a usina de] Belo Monte. Estão impondo para o povo brasileiro uma matriz energética ultrapassada que não faz mais sentido no mundo, mas continua sendo lucrativa, e destruindo uma outra matriz energética que é a própria Amazônia, com toda a sua biodiversidade, para satisfazer os interesses econômicos de poucos. 

Revista Casa Comum: O atual governo tem tomado medidas para combater ações ilegais que prejudicam o meio ambiente, como o novo Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), além de retomar a fiscalização em áreas ameaçadas. Que outras ações poderiam reforçar o compromisso do setor público com a agenda ambiental? 

Daniel Munduruku: O estado brasileiro deveria se agigantar, se fazer mais presente na Amazônia, seja por meio do exército, das Forças Armadas, da Polícia Federal, da Polícia Ambiental. Se o Estado fizesse isso, iríamos perceber a diminuição das mortes dos indígenas, das perseguições de lideranças populares e de pessoas que lutam pelo meio ambiente. Mas temos visto o contrário. A questão ambiental é um tema que deveria ser prioridade absoluta em uma sociedade que quer crescer como a brasileira. Se o Brasil conseguir fazer com que o mundo volte seus olhares para esse tema e consiga “vendê-lo” sem precisar transformá-lo em consumo simplesmente, ele vai ser o país que todos nós queremos dentro dessa filosofia da pedagogia do pertencimento, porque teremos algo que o mundo precisa: água doce, floresta, respiro, chuva. E isso tudo temos aqui, mas a incompetência dos nossos governantes, a má vontade ou talvez, até mesmo, o mau caratismo acaba levando o Brasil a perder a oportunidade de se firmar como de fato protagonista na mudança climática do mundo.

Revista Casa Comum: A Amazônia e o Cerrado, responsáveis pela chuva e equilíbrio do clima global, ganham maior destaque na mídia por serem biomas fortemente ameaçados. Entretanto, a questão ambiental perpassa todos os biomas. Como é possível fazer esse alerta de que grandes cidades também são territórios ameaçados?

Daniel Munduruku: Infelizmente as nossas cidades esquecem a questão do ambiente, porque tudo gira em torno do tal do desenvolvimento, que sempre é jogar asfalto no chão e concretar as coisas. Um gestor precisaria ter clareza que não pode simplesmente derrubar árvores para colocar asfalto e achar que é compensação ambiental plantar lá no Horto Florestal. As empresas fazem isso direto com o tal do crédito de carbono. Isso não faz sentido nenhum. O que precisa ter é a busca de equilíbrio. O ser humano é natureza e precisa da natureza até para poder respirar melhor. Se estamos falando de qualidade de vida nas cidades, precisamos pensar em como os nossos parques urbanos podem funcionar como parte da gente. Um bom gestor ou gestora faria de tudo para que as pessoas usassem cada vez melhor esses espaços, trabalharia no sentido de limpar o rio que passa no meio da cidade, atuaria na questão do lixo, fazendo com que fosse cada vez mais reciclado e reaproveitado. As cidades precisam olhar a questão ambiental de uma forma integrada com o todo e criar uma política de proteção e fazer o possível para que se tenha menos asfalto e mais árvores, mais ciclovias, passeio público, praças e parques, do que automóveis e farmácias. 

Revista Casa Comum: Segundo um estudo online da Plan Internacional, 98% dos 1.800 jovens entrevistados afirmaram estar preocupados com a emergência climática, mas 81% não sabem onde encontrar informações sobre o assunto. A literatura infantojuvenil pode apoiar a construção de uma geração mais consciente desde cedo para os impactos da ação humana na natureza e a importância de aprender com quem preserva desde sempre? 

Daniel Munduruku: Para não responsabilizarmos a literatura ou colocá-la como salvadora do mundo, precisamos ensinar as pessoas a ler literatura e tê-la como um apoio, nunca a solução. Precisamos ajudar os nossos jovens a ler o mundo e a realidade e a buscar, nos livros, algum tipo de apoio para que possam alimentar sua esperança e desejo de transformação. A literatura indígena traz consigo essa leitura de que a natureza somos nós e nós somos a natureza. Ela questiona o tempo inteiro o modus operandi da sociedade. A nossa juventude precisa encontrar motivos para fazer a revolução, que pode ser uma mudança interna, mas que pode ser também a mudança de paradigma e de modelo de sociedade. Penso que, ao escrever para a juventude, eu esteja alimentando nela essa esperança de acreditar que o mundo tem jeito, que é possível salvá-lo da destruição. Mas reafirmo: precisamos fazer das nossas crianças e jovens leitores de livros de literatura, e isso passa pela escola, pelo investimento público e pela crença do Estado brasileiro como protagonista da revolução. Fora isso, vai ser sempre uma tentativa inglória de fazer qualquer mudança.

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