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Publicado em

24/11/2023

Laudate Deum traz à tona urgência climática e convoca à ação política pela transição energética, pelo fim da cultura do descarte e por relações mais justas

O imperativo do Papa Francisco é para que o ser humano se reposicione ao lado das demais criaturas para louvar a Deus na construção de um novo futuro comum.

Por Isabel Gnaccarini*

O ano de 2023 já foi considerado o mais quente da história da humanidade pelos meteorologistas do Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus da União Europeia e da Organização Meteorológica Mundial (OMM). Não apenas anunciaram que as recentes ondas de calor, no hemisfério Norte, estavam entre as piores do último século, mas também que o El Ninõ impactou como nunca antes o hemisfério Sul. Os cientistas alertam para o ritmo cada vez mais acelerado das mudanças provocadas sobre o equilíbrio climático devido às transformações da própria sociedade sobre o meio natural: temos até 2030 para limitar o aquecimento global a menos de 1,5 grau Celsius, indicam os especialistas do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). É urgente minimizar os efeitos do antropocentrismo sem freios.

Em paralelo, o Vaticano vem reforçando a Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), seguindo par e passo o que rezam os especialistas e ativistas, com a vantagem de emprestar aos leigos e crentes seu enorme carisma e poder de capilaridade. Desde o lançamento da Laudato si’ (Louvado Seja, em italiano medieval), a primeira encíclica católica voltada aos problemas ecológicos, às vésperas da Conferência do Clima das Nações Unidas (COP21) de 2015, em Paris, o movimento ambientalista globalizado vem sendo impulsionado pelas ações da imensa rede burocrática da Igreja.

Agora, ao aprofundar, dentre os tópicos, a questão climática, com a exortação apostólica, Laudate Deum (Louvai a Deus, em latim), lançada no dia 4 de outubro, não restam dúvidas de que a sinergia com um universo não necessariamente cristão traz para a Igreja os mais recentes achados da ciência. Dessa vez, o Papa Francisco se supera, iluminando os ensinamentos sobre as mudanças climáticas com surpreendente didatismo. Pregando contra o catastrofismo habitual sobre o fim do planeta, ele resgata a esperança que há na fraternidade e clama por mudanças no estilo de vida ocidental. A “conversão ecológica”, que valoriza boas relações entre as pessoas, com a natureza e com Deus, movimenta as juventudes cristãs, os cientistas, os políticos, os ateus e adeptos de outras religiões.

O texto de Laudate Deum (LD) focaliza as mudanças climáticas em seis capítulos, ao longo dos quais reforça que a emissão per capita da minoria composta pelos países mais ricos é muitas vezes superior à dos mais pobres, exemplificando que a África, que “alberga mais da metade das pessoas mais pobres do mundo, é responsável apenas por uma mínima parte das emissões no passado” (LD, 9).

Daí o sentimento de injustiça climática, afinal, “os efeitos das alterações climáticas recaem sobre as pessoas mais vulneráveis” (LD, 3). Não por acaso, o primeiro anúncio de que estaria escrevendo uma continuação da Laudato si’ foi feito pelo Papa em 22 de agosto a uma delegação de advogados de países membros do Conselho da Europa, quando falou sobre a justiça e as políticas públicas.

Portanto, para Francisco, é chegada a hora de admitir que, infelizmente, o modelo humano de civilização “tecnológica” não nos serve mais. “A origem humana – ‘antrópica’ – da mudança climática já não se pode pôr em dúvida” (LD, 11), escreve ele. Tendo em mente que o imperativo dessa crise ecológica é, portanto, cultural, o bispo de Roma faz um mergulho profundo nos mais recentes consensos da ciência climática, denotando a atual urgência humana. Já no primeiro capítulo, o Santo Padre sobe o tom em relação ao estilo mais literário da encíclica Laudato si’, e indica os perniciosos efeitos globais de um paradigma social que não tem a vida como cerne, voltando-se aos verdadeiros responsáveis desse problema comum. “‘Laudate Deum’ é o título desta carta, porque um ser humano que pretenda tomar o lugar de Deus torna-se o pior perigo para si mesmo” (LD, 73).

Em uma mensagem oficial emitida pelo Dicastério do Desenvolvimento Humano Integral, o cardeal Michael Czerny também enfatiza que a exortação é centrada no drama humano em solucionar essa grave crise, e lembra que a Laudate Deum toma três dos seis capítulos para tratar do tema do multilateralismo entre os Estados, ou melhor, “das pobres tentativas diplomáticas de suas lideranças em cooperar” para sua resolução.

Se bem que a exortação seja expressamente direcionada “a todas as pessoas de boa vontade”, seu apelo final aos cristãos é para que procedam a “uma mudança generalizada do estilo de vida irresponsável ligado ao modelo ocidental” (LD, 72), acabando com a cultura do descarte, ainda que a longo prazo. Francisco pede às famílias que apoiem os ativistas ou tomem para si a missão de pressionar para que as indispensáveis decisões políticas sejam tomadas.

A transição energética é um dos apelos centrais da exortação, que dedica um capítulo à COP28. A Conferência acontece ainda este ano, em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, terceira maior economia em exploração e comercialização de petróleo e gás natural entre os países do Oriente Médio.

Sem mais tempo a perder com a desinformação, dá sua derradeira aula sobre o planeta vivo. A Laudate Deum detalha o tema mais candente de nossa época, a urgência climática, e convoca à ação política pela transição energética, pelo fim da cultura do descarte e por relações mais justas. Mais do que uma continuação da Laudato si’, o texto em tela é um aprofundamento de seu objetivo de conversão ecológica. O imperativo de Francisco é para que o ser humano se reposicione ao lado das demais criaturas para louvar a Deus na construção de um novo futuro comum.

>> Acesse a Laudate Deum em: bit.ly/RCC_07_62

*Isabel Gnaccarini é jornalista e trabalha desde 1999 com a comunicação ambiental. Doutora pela Universidade de Campinas (Unicamp) com a tese “Articulações entre Ciência, Religião e Política: Afinidades Eletivas nas narrativas ecológicas da Encíclica Laudato si’ e da Agenda ambiental da ONU”.

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