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Publicado em

13/07/2023

A complexidade do processo de desacolhimento institucional de adolescentes 

No aniversário de 33 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente, saiba mais sobre os desafios enfrentados por jovens que, ao completar 18 anos, precisam deixar os serviços de acolhimento institucional.

Por Maria Victória Oliveira

Foto: João Braz / Arquivo Sefras

A cada 100 mil habitantes no Brasil, 59,1% são crianças e adolescentes acolhidos, taxa que chama atenção para um tema ainda pouco debatido no Brasil: o acolhimento institucional de crianças e adolescentes. O índice de 2018 representa um avanço se comparado à taxa de 2010, de 65,6%, mas ainda trata-se de um número alarmante

O mais importante documento nacional sobre a garantia de direitos de crianças e adolescentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aborda o tema do acolhimento institucional desse público, e determina, no parágrafo 1º de seu Artigo 101, que o acolhimento institucional e o acolhimento familiar são medidas provisórias e excepcionais, utilizáveis como forma de transição para reintegração familiar ou, não sendo esta possível, para colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade”.

A diretriz, entretanto, ainda está distante do que acontece na prática. O estudo Os Abrigos para Crianças e Adolescentes e o Direito à Convivência Familiar Comunitária, por exemplo, lançado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2005, aponta a falta de recursos materiais do núcleo familiar como o principal motivo de acolhimento de crianças e adolescentes.

Apesar de a pobreza não ser considerada, de fato, um motivo para o acolhimento institucional, em um cenário onde 58,7% da população, ou seja, mais da metade dos brasileiros convivem com algum grau de insegurança alimentar, seja leve, moderado ou grave (que corresponde à fome), a falta do acesso à alimentação passa a se configurar como motivo de acolhimento. 

O dado é do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), que aponta que, em 2022, cerca de 33,1 milhões de pessoas não tinham o que comer no Brasil. A pesquisa mostrou, também, que apenas 4 entre 10 famílias conseguem acesso pleno à alimentação.

“Quando se pensou na excepcionalidade [do acolhimento institucional segundo o ECA], não se levou em consideração que a maioria de nossas crianças muitas vezes são institucionalizadas apenas por não terem acesso a comida. Seria bom se o Brasil se tornasse um país onde as violações de direitos fossem casos excepcionais, e não como acontece hoje em dia, com a maioria de nossas crianças pobres, pretas e periféricas”, afirma Ângela Assis, assistente social e gestora do Sefras – Ação Social Franciscana, no projeto Crianças, desenvolvido no bairro do Peri, em São Paulo. 

Prioridade absoluta 

Aprovada em 13 de julho de 1990, a Lei 8.069 dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA, que passou a ser o maior documento de defesa de direitos de crianças – pessoas de até 12 anos de idade incompletos -, e adolescentes – pessoas entre 12 e 18 anos de idade. 

Uma das resoluções mais importantes do Estatuto é determinar que seu público de interesse tem absoluta prioridade e são uma responsabilidade conjunta da sociedade. Segundo o Artigo 4º, “É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.” 

“O ECA é uma lei com grandes avanços. É considerada um marco na proteção da infância e juventude, tendo como base a proteção integral. O ECA passou a reconhecer as crianças e os adolescentes como sujeitos em desenvolvimento e como prioridade absoluta da sociedade”, analisa Ângela.

A assistente social defende, entretanto, que mesmo depois de 33 anos do Estatuto, ainda não é possível dizer que a lei foi efetivada em sua totalidade, sobretudo considerando a realidade de infâncias e juventudes no Brasil. 

“Em um país com tanta desigualdade social, onde a pobreza faz com que crianças e adolescentes tenham os seus direitos básicos violados, onde ainda temos o trabalho infantil e a violência presente em todas as esferas sociais das crianças, fica difícil, de fato, garantir direitos.” 

Maioridade e a saída do acolhimento institucional 

Quando alcançam a maioridade, adolescentes em situação de acolhimento institucional precisam deixar o acolhimento, seja os Serviços de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (SAICAs) ou as Casas Lares. 

Diante dessa perspectiva, os jovens têm algumas opções: voltar para a casa de suas famílias, seguir um caminho próprio com o aluguel de um espaço para morar ou, ainda, ocupar uma vaga nas Repúblicas Jovens, um outro tipo de acolhimento que oferece apoio e moradia subsidiada a jovens de 18 a 21 anos em situação de vulnerabilidade e risco pessoal e social. 

Ângela comenta sobre o caso de um jovem de 17 anos e meio que atendia, que afirmava, com convicção, que não seria encaminhado para o serviço de República Jovem. “Ele falava: ‘Eles vão me mandar embora, porque eu não consigo estudar, não consigo ter um trabalho. Não vão ficar comigo’. Então completar 18 anos enquanto um adolescente institucionalizado deve ser muito difícil. Eles se sentem muito inseguros com o futuro, e os Serviços de Acolhimento não conseguem resolver essas questões. É urgente que os Serviços façam, de fato, um acompanhamento.” 

Ângela se refere ao fato de que, não raro, o trabalho junto às crianças é feito com mais empenho e proximidade, uma vez que essas ainda estão em fase de desenvolvimento e têm mais chances de serem adotadas. Segundo a assistente social, quando se trata da primeira infância, existe uma sensibilização maior da sociedade para intervir e protegê-las. “Já com os adolescentes, principalmente aqueles de 14, 15 e 16 anos, existe uma cobrança e responsabilização maiores, principalmente na periferia, onde eles precisam entrar no mercado de trabalho e são vistos como responsáveis pelo que fazem. Mas na verdade não é dessa forma”, comenta. 

Nesse sentido, ela reforça a importância de um trabalho de articulação com as redes de proteção, a fim de pressionar o poder público a oferecer, também a essa faixa etária, uma atenção especial, já que se trata de um momento de mudanças emocionais e comportamentais. “Concordo que é urgente e necessária uma atenção direcionada a esse público, sobretudo depois da pandemia, pois os jovens têm apresentado um sofrimento emocional muito forte, com crises de ansiedade e depressão.”

O trabalho do SEFRAS Crianças 

O Sefras já conta com serviços desta atenção especial a qual Ângela se refere, com cinco serviços voltados ao atendimento de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. Conheça: 

Sefras Crianças – Peri: oferece oficinas, rodas de conversa, passeios culturais e atividades participativas com temas ligados à política, sociedade, cidadania, cultura e esporte a 120 crianças e adolescentes, de 6 a 16 anos;

Perfeita Alegria Luz: localizado entre as estações de metrô Luz e Tiradentes, na região central da cidade de São Paulo, é o primeiro serviço do município destinado à convivência e atendimento de crianças e adolescentes em situação de rua e na rua; 

Serviço Franciscano de Convivência da Criança e do Adolescente – Gente Viva: realizado na cidade de Petrópolis, no Rio de Janeiro, é semelhante ao Sefras Peri, em um modelo de um trabalho pedagógico voltado a 120 crianças e adolescentes, de 4 a 18 anos;

Casa Santo Antônio: além do cuidado infantil de 0 a 4 anos, também oferece oficinas de cidadania, esporte e grupo de meninas de 5 a 14 anos em Tanguá, no Rio de Janeiro;

Centros Infantis São Gabriel e Santa Clara de Assis: localizados em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, os centros acolhem e cuidam de 55 crianças, de  a 4 anos. 

O Sefras Crianças – Peri, do qual Ângela é gestora, fica no distrito da Cachoeirinha, extremo norte da cidade de São Paulo, no Jardim Peri. Diante de um cenário de indicadores alarmantes de vulnerabilidade socioeconômica na região, o Sefras Peri oferece, no contraturno escolar, oficinas, rodas de conversa, passeios culturais e atividades participativas com temas ligados à política, sociedade, cidadania, cultura e esporte. 

Ela conta que todas as atividades desenvolvidas com o público atendido têm como princípio o acolhimento, cuidado e a defesa de direitos

“Essas formações que oferecemos, que envolvem política, sociedade e cidadania, deveriam começar lá na primeira infância, com a cidadania constando no currículo da educação. Nossas crianças e adolescentes precisam ser estimulados a uma consciência crítica, na qual entendam que o Estado tem uma responsabilidade pela violação de direitos que eles sofrem. Quanto mais formações sobre esses temas, mais conhecerão seus direitos, e, assim, podem ter, de fato, uma participação cidadã, pressionando o governo para mais políticas públicas.” 

Entre algumas das atividades desenvolvidas, Ângela destaca iniciativas como o Respeita as Minas, com o objetivo de fortalecer meninas entre 12 e 20 anos, e também o A gente Jovem, que visa a promoção da empregabilidade a partir dos 15 anos. 

“Para nós, esse trabalho de formações com nossas crianças desde a primeira infância, falando sobre o estímulo à consciência crítica e ampliação do repertório cultural é muito importante, porque conhecimento é tudo. Nós, do Sefras, precisamos contribuir, ampliando esse leque de temas, e estimular para termos cidadãos críticos”, completa Ângela. 

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