Publicado em
23/05/2024
O conceito amplo de natureza dos povos originários comprova o quão integrados e indissociáveis são ‘ser humano’ e ‘natureza’, apontando a harmonia entre esses elementos como a única proposta sustentável.
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Por Gabriela Imelk*
O colonizador invadiu, saqueou e explorou as terras de Abya Yala (território designado pela lente colonialista como ‘as Américas’), imbuído de uma lógica mecanicista que aparta o entendimento de pessoa do entendimento de natureza – e, mais do que isso, subordina tal ‘natureza’ ao mesmo princípio maquinal. Essa percepção antropocêntrica (que coloca a espécie humana como centro do Universo), ainda perpetuada, tributa a favor das dinâmicas capitalistas, uma vez que hierarquiza o ser humano dentro da existência planetária na soberania da chamada ‘razão’. Dotado dela, o humano teria capacidade e habilidades para intervir, transformar e dominar a dita ‘natureza’.
Por outro lado, populações originárias do território que hoje entendemos como Brasil (e de tantos outros solos tradicionais colonizados) nos apresentam uma inteligente e generosa percepção do mesmo conceito, que se estrutura em comunhão com um entendimento distinto também de ‘vida’. Destrinchemos.
Para você, o que/quem tem vida? Uma criança tem vida? Uma preá tem? Uma bactéria? E uma árvore, uma rocha, um rio têm vida? E se essas perguntas lhe fossem apresentadas em outra ordem? De trás pra frente, por exemplo. Seria mais difícil romper com o padrão hierárquico de entendimento dos elementos para alcançar a resposta?
Agora pensemos no conceito de ‘natureza’. Para você, o que faz parte dela, quais elementos a compõem? Uma folha? Uma concha? Uma gota de chuva? E um rabo, um fio de cabelo, um coração são natureza também? A raiva é natureza? A ternura? E a desesperança? Dissociados do todo pessoa/animal esses elementos são mais fáceis ou mais desafiadores de serem entendidos de outra maneira?
Toda a complexidade que existe em torno dessas reflexões resulta do perverso jogo colonialista que tenta extinguir a cosmovisão dos povos originários para impor a sua e, quando não atinge plenamente esse objetivo, desvaloriza e deslegitima as existências tradicionais, no intuito de fragilizá-las e dominá-las. Tal processo é legitimado pela mesma lógica antropocêntrica, colonialista e branca, a partir dos conceitos de alteridade e desumanização.
Esse ser padrão – referência (homem, cis, hetero, branco, europeu) – se coloca no mundo enquanto tal e acredita ter o poder de determinar ‘o outro’. Esses seres/corpas de terceiros, por sua vez, são deliberadamente subordinados e/ou desumanizados (pessoas negras, indígenas, mulheres, pessoas transgêneras, LGBTQIAPN+, PCDs, obesas, dentre outras). Dessa maneira, seriam, por extensão, corpas/seres passíveis do mesmo direito de dominação, exploração e aniquilamento que é aplicado sobre a ‘natureza’. Evidentemente, não é mera coincidência. É projeto.
O estranhamento que comumente nos causa algumas das perguntas feitas anteriormente, neste texto, são fruto desse epistemicídio das cosmovisões originárias do nosso território e sustentam a sociedade brasileira neste formato: colonizada, que desconhece em larga medida suas origens e, quando a reconhece, na grande maioria das vezes, a subvaloriza e estereotipa. Comprovação do sucesso perdurado do plano colonialista.
No entanto, está mais do que evidente a falência, a médio e longo prazos, do projeto de humanidade eurocêntrico, branco, hetero, capitalista, cristão, patriarcal, cisgênero (+). Ruína essa que já está em curso, vide o episódio das enchentes no Rio Grande do Sul de agora. Em um tempo histórico em que tanto se fala sobre a urgência de conter o avanço das catástrofes climáticas, o conceito amplo de natureza dos povos originários pode ser uma grande ponte sobre areia movediça, ao comprovar o quão integrados e indissociáveis são ‘ser humano’ e ‘natureza’ e apontando a harmonia entre esses elementos como a única proposta sustentável (sem considerar, aqui, os problemas neoliberais do uso contemporâneo do termo ‘sustentabilidade’).
Um bom caminho, parece, está em ativarmos a escuta, reorganizarmos os cursos dos nossos rios internos e corrigirmos a percepção padrão de quem somos e de qual todo fazemos parte. Afinal, frente aos desastres ambientais, a arrogância antropocêntrica se mostra pateticamente frágil. A ‘natureza’ colonialista seguirá viva e com potência regenerativa. Que tal driblarmos o projeto suicida colonial nos voltando e honrando nossas raízes? Agora, pois, praticamente, não temos mais tempo.
Para saber mais:
KRENAK, Ailton. A vida não é útil.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo.
ALBERT, Bruce e KOPENAWA, Davi. A Queda do Céu.
NUÑEZ, Geni. @genipapos
Gabriela Imelk é produtora cultural, comunicadora e poetisa. Graduada em jornalismo pela PUC-Rio, possui mais de 15 anos de experiência na área cultural, tendo atuado em diversas linguagens como teatro, audiovisual, dança, artes visuais e integradas. Desde 2018 foca seu trabalho em projetos de cunho social, principalmente nas esferas antirracista, feminista e defesa dos povos originários. No mesmo ano, firmou sua – ainda vigente – parceria com a empresa social AfroeducAÇÃO.
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