Publicado em
12/06/2023
Por Paola Prandini, co-fundadora da Afroeducação e curadora da série #Decoloniza (paola@afroeducacao.com.br)
Uma das urgências de processos decoloniais e decolonizadores é o estabelecimento da crítica à branquitude: hegemonia social que se assenta nos valores coloniais. A branquitude nos foi historicamente imposta e disseminada por populações brancas – principalmente europeias -, como parte de contínuas invasões territoriais em países do Sul Global e por meio da partilha de cosmovisões brancocentradas resultantes de um passado colonial não muito distante.
Exatamente por isso, uma pessoa branca, em qualquer parte do mundo, pode passar a vida toda a usufruir de privilégios garantidos a ela pelo simples fato de ter nascido como integrante da população socialmente considerada branca, sem sequer questionar essa realidade. Eu mesma (enquanto uma mulher cisgênera, branca, feminista interseccional, latinoamericana, brasileira, de classe média, e crítica à branquitude), diariamente, me atento a não reproduzir o modus operandi colonial que, estruturalmente, beneficiou e ainda beneficia mulheres brancas em relação a homens e a mulheres que tiveram seus corpos racializados pelos colonizadores europeus.
A mulher branca foi literalmente uma produção da colônia. (…) O modelo feminino da “mãe” branca, saudável, maternal, em oposição às figuras de uma feminilidade “degenerada” – a feiticeira, a escrava africana –, dá corpo à Nação. A seus olhos [de mulheres europeias], as mulheres do Sul estão privadas de saberes, de uma real concepção da liberdade, daquilo que faz uma família ou daquilo que constitui o ser “mulher”, que não estaria necessariamente ligado ao gênero ou ao sexo definidos no nascimento (VERGÈS, 2020, p. 44).
Não sem motivo o próprio conceito de modernidade foi assimilado – pré-estudos decoloniais – como resultado do colonialismo, como se tudo o que existia antes não podia se enquadrar nas exigências que a modernidade impunha, como as ideias de civilização e de meritocracia, apenas para citar dois exemplos.
O colonialismo impôs a sociedades não-europeias a estruturação de um sistema-mundo capitalista/patriarcal/ocidental-cêntrico/cristão-cêntrico/moderno/colonial (GROSFOGUEL, 2011), que subjugou conhecimentos, vivências e saberes pré-coloniais, ao estabelecer uma tábula rasa regida pelo eurocentrismo.
Não houve processo colonial positivo ou benéfico, como se fosse uma transação justa e mercantil, pelo contrário, tratava-se de opressão e de subjugação para a garantia da permanência da hegemonia colonial como central para o status quo. Daí a relação entre colonialidade e branquitude: ambas são movidas pelas desigualdades e pela hegemonia branca.
Por isso, faço aqui uma convocatória decolonial às pessoas brancas que leem este texto: a partir de agora, desconfie de seus pensamentos meritocráticos e mobilize-se para usar seus privilégios em favor da equidade étnico-racial. Para isso, aproveite cada oportunidade que tiver e busque partilhá-la com pessoas que não fazem parte da sua bolha de privilégios. Ou seja, use a sua branquitude – que, historicamente, arromba portas -, para fazer adentrar nos espaços todas aquelas pessoas que, em geral, são questionadas sobre se deveriam mesmo estar ali.
Ressalto que essa convocatória é generalizada, envolvendo qualquer pessoa interessada em contribuir para a desconstrução e para a reconstrução de modos de ser e de estar no mundo globalizado em que vivemos.
Parafraseando a reflexão literalmente iluminada de Cusicanqui (2019), o chamamento decolonial e decolonizador se assenta em pilares que nos devolvem – uma vez que somos parte de populações pós-coloniais – o direito de ser quem somos e de agir guiadas/os pelas estrelas que nos iluminam ao Sul.
Isso não significa se desfazer completamente de qualquer conceituação ou proposição que advenha do Norte Global ou de pessoas brancas, de maneira geral, mas buscar privilegiar as narrativas e as práticas que vão ao encontro daquilo que genuinamente e originalmente somos, pensamos e realizamos: frutos de um planeta majoritariamente não-branco, em processo de desenvolvimento e com a juventude a nosso favor. Avante!
A tela “A Redenção de Cam” (Modesto Brocos, 1895), utilizada na imagem desta matéria, teve um impacto muito grande nas teorias do branqueamento. O quadro mostra, da esquerda para direita, uma senhora negra, descalça sobre um chão de terra, que ergue as mãos e os olhos aos céus ao lado de uma mulher, provavelmente sua filha, de tom de pele mais claro, que segura seu bebê, branco, no colo. E um homem branco à sua direita. As três personagens representariam as três gerações necessárias para que o Brasil se tornasse um país branco. O homem é o elo que permite o branqueamento completo dos descendentes da senhora, possivelmente ex-escravizada e, assim, a sua salvação.
Referências bibliográficas:
CUSICANQUI, S. R. Fragmentos de yapa en torno a la noción de lo ch’ixi. In: Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 38, p. 226-238, Jul. 2019.
GROSFOGUEL, R. Decolonizing Postcolonial Studies and Paradigms of Political-Economy: Transmodernity, Decolonial Thinking and Global Coloniality. In: Transmodernity: Journal of Peripheral Cultural Production of the Luso-Hispanic World, São Francisco, v. 1, n. 1, p. 1-37, 2011.
VERGÈS, F. Um feminismo decolonial. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
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