Publicado em
10/06/2025
A alimentação revela tradições, hábitos, desigualdades e formas de resistência que moldam a identidade cultural de um povo.
Por Isadora Morena
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Já parou para pensar que a produção de alimentos, a forma como se obtém os ingredientes, o preparo do prato e o ato de comer – sozinho ou compartilhado – fazem parte da cultura e da identidade de um povo?
Muito mais do que manter corpos ativos – e espera-se que saudáveis -, os alimentos nutrem a alma de afetos, memórias, laços e histórias.
Alimentação tem a ver com saúde, mas também com política, economia, geografia, direito, psicologia, ecologia e até mesmo espiritualidade. Afinal, quem cozinha o que vai para o prato? Qual a origem do alimento na despensa? Há tradições alimentares que surgem por questões religiosas e há ainda hoje pessoas que enfrentam situação de insegurança alimentar.
Para João Luiz Maximo da Silva, historiador e professor do Centro Universitário Senac, a alimentação é um “termo polissêmico”, mobilizando diversas ciências para ser compreendido em todas as suas dimensões. Ele destaca o fator cultural da alimentação ao afirmar que a “espécie humana é a única que transforma seus alimentos”, ou seja, que cozinha.
Adriana Salay, também historiadora e professora da Universidade de São Paulo (USP), explica que “o alimento é um fato social total”, conceito da antropologia que convida a observar como todas as esferas da vida estão implicadas no que coloca-se no prato. Ela afirma que “as escolhas que fazemos na hora de comer estão vinculadas ao que acreditamos, ao lugar que ocupamos no mundo, não apenas às questões nutricionais.”
Nutricionismo e ultraprocessados
Porém, há muitos discursos circulando na contemporaneidade que restringem o alimento ao seu valor nutricional: fala-se em ingerir proteínas, contar calorias, adotar dietas milagrosas, ignorando a complexidade em torno do ato de comer.
De acordo com o professor João Luiz, o fenômeno do “nutricionismo” não é algo novo. “O sociólogo Michael Pollan já tinha denunciado os riscos desse tipo de abordagem para a alimentação de uma forma geral”, aponta o docente, que afirma que “para a espécie humana o ato de comer vai muito além de matar a fome”.
Outro fator da atualidade são as mudanças nos rituais em torno da alimentação. O tempo escasso e a rotina acelerada comprimiram o ato de cozinhar e de comer. De acordo com a historiadora Adriana, isso não significa ausência de cultura, e sim uma nova manifestação cultural marcada pelo consumo rápido e individualizado. Ela expressa os malefícios dessas mudanças: “Há uma introdução cada vez maior dos alimentos ultraprocessados no nosso cotidiano, em que o tempo é uma mercadoria muito valiosa”.
Um estudo que envolveu pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), utilizando dados de alimentação coletados pelo Instituto Datafolha, revela mudanças na alimentação dos brasileiros durante a pandemia de covid-19.
A pesquisa demonstra diminuição significativa no consumo de ovos, cereais, hortaliças, frutas e sucos de fruta industrializados e aumento no consumo de refrigerante, biscoitos, bolinhos de pacote, embutidos, molhos e refeições prontas.
Quando questionados em relação a mudanças nos hábitos alimentares, 48,6% dos entrevistados relataram alteração na alimentação durante a pandemia. Os principais motivos para tais mudanças foram maior preocupação com a saúde (39,1%) e autorrelato de diminuição da renda familiar (30,2%).
Já pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), revela que o Brasil desembolsa anualmente, no mínimo, R$ 10,4 bilhões devido aos impactos negativos dos alimentos ultraprocessados na saúde da população. Esse valor inclui gastos diretos com atendimentos no Sistema Único de Saúde (SUS), além de custos relacionados à concessão de aposentadorias precoces e afastamentos por motivos de saúde. Apenas em 2019, a pesquisa estima que cerca de 57 mil mortes prematuras foram atribuídas ao consumo desses produtos, o que representa aproximadamente seis óbitos por hora ou 156 por dia.
Escolhas alimentares
Adriana também reflete sobre a homogeneização da cultura alimentar:
“A gente tem uma internacionalização dessa cultura alimentar com a introdução da indústria de alimentos. Então, hoje a gente tem uma diminuição muito grande da biodiversidade nacional, daquilo que a gente coloca no prato, que também é um reflexo da cultura alimentar e das práticas econômicas, sociais e políticas”.
Em oposição a esse processo, João Luiz ressalta os ensinamentos presentes no livro Em defesa da comida, do sociólogo Michael Pollan. “O autor coloca alguns ‘mandamentos’ de como deveríamos fazer nossas escolhas alimentares em contraposição com a Indústria Alimentícia. Um deles diz: ‘só coma o que sua avó reconheça como alimento’. Quando ele diz avó, quer dizer cultura”, afirma o professor.
João Luiz também defende o Guia Alimentar para a População Brasileira, documento criado pelo Ministério da Saúde, em 2006, que orienta as famílias brasileiras a como devem se alimentar. Segundo ele, o guia é “uma das formas mais fantásticas de repensarmos nossa cultura alimentar, combater o nutricionismo e evitar o processo de homogeneização da alimentação.”
“Para além de questões de tipos de alimentos que deveriam ser consumidos (segundo a antiga pirâmide nutricional), o guia privilegia justamente a diversidade cultural. Diferentes regiões do país têm suas formas (que são culturais) de se alimentar”, ressalta o professor.
Fome é política
Sobre a questão das desigualdades sociais atreladas à alimentação, Adriana afirma que a fome é produzida socialmente pelos grupos que dominam a sociedade. Segundo a docente, para combater a insegurança alimentar e a fome é preciso mudar a estrutura social, enfrentando as desigualdades e a questão da concentração de terra.
João Luíz complementa que, como outras dimensões humanas, “alimento é poder”. De acordo com o estudioso, “ao longo da história, podemos perceber como as questões alimentares sempre estiveram no centro de grandes questões políticas” e que “na sociedade moderna, a questão principal não é a falta de alimentos, mas o acesso”.
Inclusive, o governo federal lançou, em março deste ano, o 3º Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. O documento estabelece 18 estratégias intersetoriais e 219 iniciativas voltadas à garantia da segurança alimentar e nutricional com o objetivo de tirar o país do Mapa da Fome até 2026.
O Mapa da Fome é uma ferramenta da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) que monitora o número de pessoas que enfrentam a fome e a insegurança alimentar no mundo. O Brasil esteve fora da listagem entre 2014 e 2021, quando voltou a enfrentar esse flagelo.
Os dados apresentados pela edição 2024 do Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (SOFI 2024), revelam que a insegurança alimentar severa caiu 85% no Brasil em 2023. Em números absolutos, 14,7 milhões deixaram de passar fome no país. A insegurança alimentar severa, que afligia 17,2 milhões de brasileiros em 2022, caiu para 2,5 milhões. Percentualmente, a queda foi de 8% para 1,2% da população.
Adriana Salay escreveu, junto a José Raimundo Sousa Ribeiro Junior, Lis Furlani Blanco e Livia Cangiano Antipon, o livro Fome e assistência alimentar na pandemia. A publicação é uma iniciativa do Sefras – Ação Social Franciscana e foi lançada em 2023. O livro retrata a realidade da fome no Brasil durante a pandemia, apresentando as vulnerabilidades alimentares enfrentadas pela população, mas também reafirmando o direito ao alimento e o papel da assistência à alimentação. Traz ainda perspectivas de mobilização e incidência para o enfrentamento da fome.
Resistência coletiva
Contra a ofensiva da indústria alimentícia e da problemática da fome, resistências populares também emergem. São experiências como as cozinhas solidárias, os restaurantes comunitários, os bancos de alimentos e os bancos de sementes.
Em Mato Grosso, por exemplo, há a Festa de Troca de Sementes, em que as comunidades agrícolas trocam sementes, mudas e saberes. Reunidos, os camponeses celebram, fazem rezas, tocam e dançam, compartilham histórias e criam vínculos. É uma manifestação cultural atrelada à garantia da soberania alimentar e da manutenção da biodiversidade.
Para João Luiz, iniciativas como essas são fundamentais no processo de questionar o modelo industrial de alimentação. “Mais do que resgatar, trata-se de nos reconectar com nossa história”, afirma o professor.
Outra experiência foi idealizada pela própria Adriana junto ao chef Rodrigo Oliveira: o projeto Quebrada Alimentada, uma cozinha-escola numa ocupação no Jardim Julieta, extremo norte de São Paulo (SP). A iniciativa serve 400 refeições por dia, promove oficinas, acolhe crianças, mulheres e suas famílias.
De acordo com a professora, a ideia é “que essa cozinha seja o coração da ocupação, como bem disse um dos moradores, e que a gente possa construir espaços coletivos como soluções para os problemas que muitas vezes são lidos como individuais.”
A professora relembra das tradições dos mutirões em torno dos processos de alimentação e acredita que, “para se manter nessa Casa Comum, e para que tenhamos uma sociedade para o futuro que pense a preservação do planeta e do nosso grupo, é preciso tornar coletivo tanto os problemas quanto as possíveis soluções”.
34 anos depois da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), crianças brasileiras ainda sofrem com a insegurança alimentar e a contaminação de alimentos.
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