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Publicado em

29/11/2022

Naiara Bittencourt: “Estamos dependentes de um modelo produtivo perigoso”

Advogada analisa desafios para a construção de uma economia que respeite a vida
Por Daniel Giovanaz

Foto: Associação Brasileira de Agroecologia (ABA)

Enquanto o agronegócio bate recordes de exportação, milhões de brasileiros passam fome. Biomas, como Amazônia, Cerrado e Pantanal, têm sua biodiversidade substituída, ano após ano, por monocultivos de grãos e pasto para criação de bois, e o preço da comida no supermercado só aumenta. Para dar fim a esse círculo vicioso, o Estado brasileiro precisa estar disposto não apenas a enfrentar práticas ilegais, mas também a valorizar as pessoas que mantiveram viva a prática de produzir sem agredir a natureza.

Essa é a avaliação de Naiara Bittencourt, advogada na organização Terra de Direitos, integrante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida e do Coletivo de Articulação Política (CAP) da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

“A agroecologia e a agricultura familiar podem garantir a alimentação da população, mas necessitam de políticas públicas. É preciso uma atuação de indução estatal”, ressalta.

A Terra de Direitos é uma organização que oferece assessoria jurídica popular para grupos que lutam pela efetivação de seus direitos e em favor da natureza. As ações da organização são desenvolvidas por meio de quatro linhas de atuação: Terra, Território e Justiça Espacial; Política e Cultura dos Direitos Humanos; Biodiversidade e Soberania Alimentar; e Democratização da Justiça.

No dia 13 de setembro, o Parlamento Europeu aprovou uma proposta que pretende regular a exportação e a entrada na União Europeia de produtos associados ao desmatamento e degradação florestal. A advogada e doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) enfatiza a responsabilidade dos grandes importadores no processo que culminou nessa aprovação, sejam eles países ou empresas, mas aponta os limites da chamada “economia verde”.

Em um contexto de avanço do conservadorismo na esfera institucional, na qual cerca de 70% dos representantes da bancada ruralista, que já era a maior do Congresso Nacional, conseguiram se reeleger nas eleições de outubro, a especialista enfatiza a importância de ações individuais e coletivas para estimular, localmente, a produção de alimentos saudáveis.

Foto: Geraldo Magela – Agência Senado

“Uma ação simples e fundamental é tentar ao máximo estreitar a nossa cadeia de consumo – de alimentos, especialmente. Saber de quem a gente compra, quem produz”, exemplifica. “Todas as ações que visem transformar atitudes e formas de consumo são importantes.”

>> Confira na íntegra:

Quais os principais desafios hoje, no Brasil, para a superação do atual modelo predatório e a construção de alternativas rumo a uma economia transformadora, que respeite a vida humana acima de tudo?

Naiara Bittencourt: Temos assistido a recordes de desmatamento e queimadas, e isso decorre da falta estrutural de controle e de um descrédito absoluto do Estado brasileiro para coibir a expansão da produção de soja e milho, por exemplo, em áreas da nossa biodiversidade.

Outro desafio é o avanço da militarização no campo, especialmente com a elevação das milícias rurais, do garimpo ilegal e das armas de fogo.

Nesse novo contexto, precisamos pensar como é possível fortalecer o Estado brasileiro, para coibir essas práticas ilegais, ao mesmo tempo em que valorizamos os povos que ocupam esses territórios: povos originários, comunidades tradicionais e quilombolas, que tradicionalmente preservam essas áreas. Ou seja, é preciso retomar outras possibilidades de vida, de preservação, e valorizar modelos que já existem: basta o Estado incentivar e proteger.

A afirmação de que o agronegócio brasileiro “alimenta o mundo” é frequentemente usada para justificar abusos e violações socioambientais. É possível manter os atuais níveis de produtividade e, ao mesmo tempo, proteger a natureza?

Naiara Bittencourt: Cerca de 70% de tudo que chega à nossa mesa vem da agricultura familiar. Ou seja, agricultores, camponeses e comunidades tradicionais cultivam em territórios menores e, mesmo assim, produzem muito alimento.

A maior parte das exportações e da área plantada do agronegócio são para soja, milho, algodão, cana e café. Essas cinco principais culturas são também as que mais utilizam agrotóxicos no país. A gente tem investido em um modelo de culturas para exportação, em que o lucro fica para poucos produtores, em detrimento da produção de alimentos.

Este ano, por exemplo, houve um aumento muito grande nos preços do arroz e do feijão. Tivemos que importar arroz da Ásia. O Ministério da Agricultura poderia ter incentivado que os agricultores deixassem sua produção no mercado interno, mas a preocupação do agronegócio não é alimentar a população brasileira: é gerar lucro, por meio da exportação.

Então, sim, há alternativas. Os modelos que precisamos já estão vigentes: a agroecologia e a agricultura familiar podem garantir a alimentação da população, mas necessitam de políticas públicas. É preciso uma atuação de indução estatal.

O desmonte das políticas de combate à fome e soberania alimentar desestruturou também a agricultura familiar, que deixou de ter a previsão de aquisição de alimentos pelo Estado. Hoje, os agricultores familiares têm que se virar para a compra de insumos, proteção territorial e distribuição de seus produtos. Prevalece uma lógica individual, liberal, e os agricultores familiares não têm a mesma capacidade econômica do agronegócio para exportar seus produtos.

O Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxico do mundo. De que maneira o Estado poderia frear esse avanço e garantir alimentos mais saudáveis no prato da população? Para além do debate sobre agrotóxicos, como lidar com grandes empresas ou grandes produtores que resistem a mudar suas práticas e reagem com violência para defender seus interesses?

Naiara Bittencourt: Houve um recorde de liberação de agrotóxicos no último período. Hoje, o Brasil tem funcionado como a lixeira tóxica do mundo. Produtos não autorizados ou banidos nos seus países de origem, como União Europeia e Estados Unidos, por serem extremamente perigosos, são permitidos aqui, e nada justifica isso a não ser uma estrutura internacional racista: como se os nossos corpos ou a nossa biodiversidade pudessem suportar produtos que os europeus, por exemplo, não poderiam. 

Outro aspecto importante é que historicamente a gente tem uma “política extrafiscal reversa”, ou seja, um pacote de isenções e benefícios fiscais para os agrotóxicos. Em vez de sobretaxar produtos perigosos, para desestimular o consumo, estamos isentando ou reduzindo a alíquota de impostos. Na prática, isso significa um fomento à utilização de agrotóxicos por parte do Estado, quando o necessário é estimular que grandes empresas deixem de usar produtos altamente perigosos, que continuam circulando no mercado brasileiro.

Então, precisamos barrar esses retrocessos históricos. O primeiro passo é impedir a aprovação do “PL do Veneno” [Projeto de Lei 6299/2002], que tramita no Senado e visa flexibilizar o atual modelo de registro de agrotóxicos – já bastante facilitado.

Por outro lado, existe uma Política Nacional de Redução de Agrotóxicos em tramitação na Câmara dos Deputados. Ela não é nem um pouco revolucionária, mas traz mecanismos básicos de educação ambiental, assessoria técnica, incentivo à transição agroecológica, aquisição de produtos agroecológicos e orgânicos, da agricultura familiar. A Política também propõe o fim das isenções fiscais para agrotóxicos e busca estabelecer zonas livres de agrotóxicos e transgênicos. Todo esse modelo é possível, e o projeto é bastante factível. 

Em setembro, o Parlamento Europeu aprovou uma proposta que pretende regular a exportação e a entrada, no mercado da União Europeia, de produtos associados ao desmatamento e à degradação florestal. Qual a importância de medidas como essa? Como você analisa o papel dos grandes importadores para estimular mudanças no modelo produtivo adotado atualmente?

Naiara Bittencourt: A soja representa de 17 a 19% de toda a exportação nacional, e a maior parte é transgênica, ou seja, geneticamente modificada para resistir a agrotóxicos – principalmente, ao glifosato. Há mais de quatro anos, a Alemanha está estabelecendo planos para banir o glifosato do seu território.

A União Europeia já foi mais firme em não receber esse tipo de produto para o consumo por parte da sua população. Isso foi importante para frear, em algum momento, o avanço do plantio de transgênicos no Brasil.

Posições internacionais têm um papel relevante, especialmente no que diz respeito às exportações, mas temos visto alguns retrocessos. Ao mesmo tempo em que há essas posições de alguns empresários e países, recentemente foi finalizado um acordo do Mercosul com a União Europeia que facilita a entrada de agrotóxicos importados desses países no Brasil. Então, a gente vê que o mercado internacional tem fomentado cada vez mais, nesses acordos multilaterais, essas trocas desiguais

O Brasil ainda ocupa uma posição de país de capitalismo dependente, periférico. Nós importamos muitos produtos industrializados, com alto valor social agregado, e exportamos produtos básicos – que, inclusive, são dependentes da própria importação de sementes geneticamente modificadas e de agrotóxicos produzidos também por grandes transnacionais, e controladas pelos países de capitalismo central.

Ou seja, entregamos muito da nossa biodiversidade, da nossa saúde, contaminando muito as nossas águas. E, ao mesmo tempo, temos visto uma reprimarização da nossa economia, ou seja, maior valorização dos produtos primários, minério e agrícolas, e a ausência de políticas para desenvolver tecnologias aqui no Brasil – que poderiam inclusive ser tecnologias sustentáveis, de fortalecimento da população local.

Esses produtos que exportamos não vão alimentar a população mundial: vão servir de matrizes para a industrialização, por exemplo, de amido, etanol, óleos. Estamos dependentes de um modelo produtivo bastante perigoso – especialmente, porque a maior parte da área plantada de soja no Brasil é justamente com transgênicos e agrotóxicos importados.

Isso é bastante grave. Se não pensarmos em uma alteração nesse modelo econômico de produção de alimentos, que abasteça prioritariamente a população com alimentos saudáveis, preservando nossa agrobiodiversidade, os conhecimentos tradicionais e, ao mesmo tempo, investindo em práticas de desenvolvimento tecnológico, de assessoria técnica e de industrialização no nosso território, corremos um risco sério de ficarmos ainda mais dependentes nos próximos períodos desse pacote tecnológico importado dos países de capitalismo central.

O discurso da “economia verde” muitas vezes é apropriado por grandes empresas para maquiar danos ambientais e confundir a população. Como distinguir o que é mera propaganda e o que são, de fato, boas práticas empresariais?

Naiara Bittencourt: Há uma operação, já há bastante tempo em curso, que tem sido chamada de “economia verde” ou “financeirização da natureza”: é uma maquiagem do capitalismo, induzindo práticas ambientais, especialmente lançando ativos ambientais no mercado da bolsa de valores. Por exemplo, vendem-se créditos de carbono, compensando em lugares ou biomas bastante distintos [de onde ocorreu a emissão de gases de efeito estufa]. 

É o chamado “greenwashing”, a “lavagem verde”. É uma maquiagem, que não resolve efetivamente os problemas socioambientais, de desmatamento, de queimadas, e basicamente busca um valor lucrativo dentro do mercado internacional de carbonos. Então, bota a natureza nesse mercado de circulação de mercadorias. 

Por isso, há algumas outras soluções que o debate de empresas e direitos humanos tem apontado que não perpassam exatamente por essa “economia verde”.

Grandes transnacionais que atuam no Brasil, principalmente relacionadas a sementes ou agrotóxicos, não sabem se os produtos que vendem estão sendo usados em áreas griladas, de desmatamento, ou se estão atingindo ou intoxicando povos originários. Ou seja, seria fundamental uma transformação na prática de rastreabilidade e coibição de venda desses produtos em áreas de expansão, que aumentam a emissão de CO2, com as queimadas, que substituem a mata nativa por grandes monocultivos de soja, que utilizam agrotóxicos e sementes transgênicas. 

Outra dimensão seria que essas empresas também respeitassem, de fato, o direito à consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas e comunidades tradicionais. Tanto o Estado brasileiro, como essas grandes corporações, ao realizarem um empreendimento ou alguma medida que impacte territórios tradicionais ou os direitos dessas populações, devem consultá-las e avaliar os impactos socioambientais – não somente à natureza, mas aos modos de vida. Isso é um direito garantido [pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho], mas repetidamente desrespeitado no Brasil. 

O debate sobre a construção de alternativas rumo a uma economia que respeite a vida envolve toda a sociedade, não apenas Estados e grandes empresas. Qual o papel de cada pessoa, no campo e na cidade, para estimular essas transformações? Por onde podemos começar?

Naiara Bittencourt: Todas as ações que visem transformar atitudes, formas de consumo, são importantes. É claro que uma ação organizada em uma coletividade é sempre potencializada e deve ser estimulada. Por exemplo, grupos de consumidores organizados para facilitar a aquisição de alimentos da agricultura familiar ou alimentos agroecológicos. Também há grupos, movimentos sociais organizados de camponeses, comunidades tradicionais, para fortalecer sua luta política. Essas formas de organização coletivas devem ser valorizadas. 

Uma ação simples e importante é tentar ao máximo estreitar a nossa cadeia de consumo – de alimentos, especialmente. Saber de quem a gente compra, quem produz aquele alimento: encurtar o circuito.

Em vez de buscar um supermercado, um alimento que viajou por quilômetros, por estradas, com todo impacto ambiental produzido por monocultivos, podemos buscar comprar do agricultor familiar que mora na região metropolitana, que trabalha perto de nós, que comercializa seu alimento em feiras, em cestas agroecológicas.

Também é possível, mesmo na cidade, se engajar e pressionar por políticas públicas em várias escalas. Tanto em políticas públicas quanto em marcos legislativos, há avanços. Por exemplo, em políticas municipais de redução de agrotóxicos, legislações que proíbem a pulverização aérea de agrotóxicos – que é a forma mais perigosa de aplicação. Boa parte dos estados têm políticas estaduais de agroecologia. Então, é possível se engajar não só para consumir, fazer o trabalho de redes, mas também se articular no âmbito dos poderes Executivo e Legislativo nos municípios, nos estados e, até, no nacional.

Um caso atual, que representa a importância dessa mobilização, é a pressão da sociedade civil para impedir que o “pacote do veneno”, que pretende mudar a lei dos agrotóxicos, passasse até o momento. Esperamos que continue assim: que a sociedade civil continue incidindo, denunciando, marcando aqueles parlamentares que estão a favor, pressionando, enviando e-mails, se comunicando para que a gente evite mais retrocessos no campo dos direitos humanos e socioambientais. 

>> A primeira edição da Revista Casa Comum traz uma explicação sobre a tramitação do PL do Veneno e seus impactos para a proteção ambiental.

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