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Publicado em

26/05/2025

‘Decolonialitudes’: a justiça da reparação em um Brasil diverso

Decolonialitudes ajudam no combate à manutenção das colonialidades e da branquitude para quebrar o ciclo de práticas coloniais ultrapassadas que beneficiam pessoas brancas.

Por Paola Prandini

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Recorte de imagem do projeto internacionalmente aclamado Humanæ, retirado do site de Angélica Dass, fotógrafa responsável pela iniciativa. Saiba mais: angelicadass.com/pt *

No último dia 15 de maio, a revista acadêmica internacional Science publicou o resultado de uma pesquisa que demonstra que o Brasil é o país que tem a maior diversidade genética do mundo. 

O DNA presente na população brasileira é uma espécie de ‘balaio de ancestralidades’. Nossa nação é resultado das relações (nem sempre positivas) entre povos originários de matriz indígena com pessoas de diferentes etnias africanas – que sofreram com mais de 350 anos de escravização europeia -, além de representantes das migrações europeias também do período pós-colonial, quando da tentativa de branquear o país.

No entanto, a miscigenação brasileira jamais resultou em democracia racial. Pelo contrário. O próprio estudo da revista Science também identificou que o cromossomo paterno tem descendência europeia, enquanto as linhas maternas são africana ou indígena, o que é uma consequência direta da violência sexual desempenhada por colonos contra mulheres em condição de escravização durante o período da colonização europeia no Brasil.

Nunca existiu processo colonial positivo ou benéfico. Tratava-se sempre de opressão e de subjugação, para a garantia da continuidade do sistema de exploração colonial. Daí a relação entre colonialidade e branquitude: ambas são movidas pelas desigualdades e pela hegemonia branca. Exatamente por isso, são as pessoas não-brancas que seguem a ter os seus direitos básicos violados e são poucos os casos daquelas que chegam a acessar posições de privilégio nas sociedades globais, incluindo a brasileira. 

Nessa relação dúbia regida pelas colonialidades, em que há quem domina e quem não tem como escapar da submissão, é emergente a implantação de movimentos a partir da periferia para a periferia, em que as diferenças são potências para o combate à hegemonia do sistema-mundo desigual que ecoa na contemporaneidade. 

Trata-se de estabelecer trocas dialógicas interculturais entre o sul global, que impulsionam para um reinventar-se de(s)colonial e de(s)colonizador. Uma vez que o Brasil compõe a maior diáspora africana fora do continente-mãe, também cabe a nós referenciarmo-nos a partir dos legados ameríndios e africanos. 

Para isso, segue sendo essencial a aplicação das leis federais 10.639, de 2003, e 11.645, de 2008, a fim de transversalizar os currículos educacionais brasileiros com conteúdos que advenham das contribuições africanas, afrobrasileiras e indígenas. E isso não pode acontecer apenas em datas comemorativas, como a deste 25 de maio, quando celebra-se o Dia de África, em razão da criação, em 1963, da Organização de Unidade Africana (OUA), na Etiópia, com o objetivo de defender e emancipar o continente africano.

O que deve acontecer é a transformação do pensamento e da prática cotidianas, não apenas nas escolas, como em todo e qualquer outro espaço, uma vez que educação não se faz apenas por dentro dos muros e contextos escolares. 

Nesse sentido, meu mais recente livro, intitulado “Conexão Atlândica: branquitude, colonialidades e educomunicação na África do Sul, no Brasil e em Moçambique”, aponta para uma potencial convocatória em prol dessa transformação. A obra foi escrita com base na investigação que realizei durante o meu percurso de doutoramento em Ciências da Comunicação, na Universidade de São Paulo (USP), e a jornada enquanto pesquisadora-visitante na Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, e na University of the Witwatersrand, na África do Sul.

Tal convocatória reside na práxis do conceito que nomeio como “decolonialitudes”. Inspirada pelo intelectual senegalês Cheikh Thiam, em seu livro “Return to the Kingdom of Childhood: Re-envisioning the Legacy and Philosophical Relevance of Negritude”, minha proposição é um chamado à prática, à transformação pela atitude. 

Em uma perspectiva interseccional, não há como estabelecer outras formas de educação – seja nas escolas ou fora delas – se estas não prescindirem do pacto transformador que só quem age e acredita nas mudanças de atitude é capaz de realizar. 

Somente por meio das decolonialitudes – que também se realiza com e por meio dos afetos e das trocas respeitosas – é que podemos agir para o combate à manutenção das colonialidades e da branquitude, em busca de justiça e de reparação histórica e com a devida valorização dos saberes e das formas de ser e de estar no mundo que compõem o Brasil em sua quase totalidade. 

Com 56% de população autodeclarada negra, nossa população é, sem sombra de dúvidas, resultado do legado africano trazido e co-construído em um solo originalmente indígena. Daí a urgência em nos destituirmos de concepções, práticas e heranças coloniais ultrapassadas e que apenas contribuem para o sistema desigual, que garante privilégios a brasileiros(as) brancos(as) e às populações brancas em todo o mundo.

Fique por dentro 

> Mais informações sobre os resultados da pesquisa da Revista Science podem ser lidos, em inglês, neste link.  

Referências bibliográficas 

Prandini, P. Conexão Atlândica: branquitude, colonialidades e educomunicação na África do Sul, no Brasil e em Moçambique. Belo Horizonte: Letramento, 2024. 

THIAM, C. Return to the Kingdom of Childhood: Re-envisioning the Legacy and Philosophical Relevance of Negritude. Ohio: The Ohio State University Press, 2014.

*Angélica Dass é uma fotógrafa premiada nascida no Brasil e sediada na Espanha. Sua prática combina fotografia com pesquisa sociológica e participação pública na defesa global dos direitos humanos. 

Ela é a criadora do internacionalmente aclamado projeto Humanæ, um trabalho fotográfico em andamento que propõe uma reflexão sobre a cor da pele, tentando documentar as verdadeiras cores da humanidade em vez das etiquetas falsas “branco”, “vermelho”, “preto” e “amarelo” associadas à raça. É um projeto em constante evolução buscando demonstrar que o que define o ser humano é sua inescapável singularidade e, portanto, sua diversidade. 

Há, no projeto, quase 4.000 voluntários, com retratos feitos em 20 países e 36 cidades diferentes ao redor do mundo, graças ao apoio de instituições culturais, sujeitos políticos, organizações governamentais e organizações não governamentais.

Saiba mais: https://angelicadass.com/pt/foto/humanae/

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