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Publicado em

01/09/2023

Eleições dos Conselhos Tutelares: seu voto defende a infância 

Você sabe o que faz um(a) conselheiro(a) tutelar? Qual é a sua importância para a garantia de direitos de crianças e adolescentes, sobretudo negros e negras? A Revista Casa Comum apoia campanha por Conselhos Tutelares antirracistas.

Por Maria Victória Oliveira

O Artigo 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” de crianças e adolescentes. 

Um dos atores fundamentais e responsável por proteger e defender esse grupo são os conselheiros e conselheiras tutelares. E o mais interessante é que a própria população tem a possibilidade de votar nas eleições para estes representantes tão relevantes. Porém, ainda é um instrumento de participação pouco conhecido.  

Mas, quem quer exercer esse direito, em 2023, isso será possível. Em outubro, serão escolhidos os defensores e defensoras dos direitos de crianças e adolescentes em todos os municípios do país. 

Fabio Paes, coordenador de Advocacy do Sefras – Ação Social Franciscana, reforça a  importância de que espaços como este de participação democrática sejam ocupados por aqueles e aquelas que realmente entendem e são comprometidos com a pauta da infância e adolescência no Brasil, tão diversas e vulneráveis. 

“Não ocupar o debate de mobilização para as eleições dos Conselhos Tutelares significa deixar espaço para grupos com interesses políticos e ideológicos esvaziados da perspectiva democrática e do enfoque de direitos, com um projeto fascista e, por isso, racista. Estes tipos de representação são fatais para organizações, movimentos e iniciativas sociais do campo dos direitos, pois criminalizam e banem qualquer forma de visão crítica e contemporânea de defesa dos direitos de crianças e adolescentes de modo integral e, em especial, as que vivem nas diversas periferias do Brasil, sejam elas quilombolas, indígenas, moradoras de favelas, em situação de rua e tantas outras”, explica. E completa:

“Com essa situação de desatenção da população e de oportunismo de grupos ultraconservadores, a chamada é: se não ocuparmos, outros vão ocupar.”

Clayton Belchior, ex-conselheiro tutelar e militante da Uneafro, destaca que o processo das eleições dos conselheiros(as) tutelares será um momento importante para a reconstrução e a retomada de diversos espaços voltados à participação cidadã. 

“Nos últimos anos, os movimentos de garantia de direitos fundamentais da sociedade em todo o país sofreram golpes de um avanço de setores conservadores, que passaram a ocupar esses espaços de participação. Na prática, isso inviabiliza e impossibilita a efetividade da garantia de direitos, sobretudo de crianças e adolescentes e, principalmente, de crianças e adolescentes negros e negras, porque os Conselhos Tutelares e órgãos públicos são tomados em seu funcionamento por ideias que vão contra o que está escrito nas leis, como no ECA. São pessoas muitas vezes imbuídas de outros princípios que não o cumprimento da lei como ela é”.

Em outras palavras, mesmo que o ECA seja uma lei de mais de 30 anos, o Brasil ainda está distante de respeitar na totalidade algumas passagens, como o próprio Artigo 4º. 

O que faz um(a) conselheiro(a) tutelar? 

Então, se o país ainda está distante do que se espera em termos de garantia de direitos de um público tão fundamental para o presente e futuro da nação, é importante questionar: qual é o verdadeiro papel de um(a) conselheiro(a) tutelar? Por que essa é uma figura tão indispensável quando o assunto é o zelo e garantia dos direitos de crianças e adolescentes? 

Clayton começa explicando que o Conselho Tutelar em si não é responsável por realizar e efetivar serviços, mas sim cobrar e acionar os equipamentos de garantia de direitos. Ou seja, um conselheiro ou conselheira não é necessariamente um psicólogo que vai fazer atendimento, por exemplo, mas um profissional que vai encaminhar às instâncias responsáveis as situações e casos com os quais entrar em contato que precisam de um atendimento psicológico.  

Entre as inúmeras atuações de um(a) conselheiro(a) visando a garantia plena dos direitos de crianças e adolescentes, estão: 

  • Requisitar uma vaga na creche ou na escola mais perto de sua residência ao acionar uma rede local interdisciplinar de proteção; 
  • Requisitar para a Secretaria da Saúde que a criança recebe tratamento médico adequado;
  • Encaminhar responsáveis para os equipamentos de assistência para recebimento de benefícios de transferência de renda; 
  • Atuar/encaminhar o caso de crianças ou adolescentes que estejam sofrendo algum tipo de violência em casa ou em qualquer outro lugar. 

Além das ações listadas acima pela campanha Apoiar e Proteger, o próprio ECA lista 20 atribuições e papéis do Conselho Tutelar, como: 

III – promover a execução de suas decisões, podendo para tanto:
a) requisitar serviços públicos nas áreas de saúde, educação, serviço social, previdência, trabalho e segurança;
b) representar junto à autoridade judiciária nos casos de descumprimento injustificado de suas deliberações.
IV – encaminhar ao Ministério Público notícia de fato que constitua infração administrativa ou penal contra os direitos da criança ou adolescente;
IX – assessorar o Poder Executivo local na elaboração da proposta orçamentária para planos e programas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente;
XV – representar à autoridade judicial ou policial para requerer o afastamento do agressor do lar, do domicílio ou do local de convivência com a vítima nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente. 

A eleição do ano 

A iniciativa A eleição do ano, criada para reforçar a importância da participação social nas eleições dos Conselhos Tutelares por todo o Brasil, resume: 

Os Conselhos Tutelares representam a sociedade na proteção dos direitos de crianças e adolescentes. São órgãos que atuam diante de qualquer omissão da família, da comunidade ou do próprio Estado e trabalham para que esses direitos sejam respeitados por toda a população.

Conselheiros e conselheiras devem agir não apenas quando existe uma violação, mas também de forma preventiva, evitando que o pior aconteça. É um trabalho atento a qualquer sinal de violência (física, psicológica ou sexual), abandono, negligência ou situações de risco. 

Clayton também destaca a importância de iniciativas que mudem a concepção de que o Conselho Tutelar é um aparato de segurança pública ou que só deve agir sobre questões que já existem, e não preventivamente. “Há uma subversão generalizada do papel dos Conselhos.” 

Condições de trabalho 

Para que todas essas atribuições e responsabilidades sejam possíveis, entretanto, Clayton reforça a importância de observar as condições dignas de trabalho de um conselheiro tutelar. 

Uma das características que dificulta o trabalho desses profissionais é a própria forma como o serviço é caracterizado pelo ECA. Segundo seu Art. 131, “O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.” 

“Ser livre de amarras políticas dos governos municipais já cria um atrito natural entre um Conselho Tutelar que faça um bom trabalho e seja autônomo de verdade, e o serviço público. Mas essa autonomia total é imprescindível e é algo que garante outras importâncias centrais”, afirma Clayton, que já atuou como conselheiro tutelar. 

Além disso, também defende outras condições fundamentais, como um bom salário para que as pessoas dediquem-se exclusivamente a essa ocupação, o apoio popular para que seja possível seu trabalho de articulação entre diferentes frentes da rede de garantias de direitos, e outras condições básicas de trabalho. 

A importância de posturas antirracistas 

A eleição para os Conselhos Tutelares deste ano ganha ainda mais importância diante de um período de esvaziamento de espaços de participação popular. A Uneafro, juntamente com o Instituto de Referência Negra Peregum, traz também mais um elemento fundamental para os futuros conselheiros e conselheiras tutelares, além do compromisso irrestrito com o ECA: a defesa e promoção do antirracismo. 

“Nós entendemos que, em 2023, é impossível desempenhar esse trabalho de conselheiro ou conselheira tutelar sem observar as sensibilidades das consequências do racismo na infância. Se temos que garantir prioridade para crianças e adolescentes e somamos a isso a existência do racismo, precisamos de abordagens e um olhar diferenciado para infâncias e adolescências negras, porque eles e elas sofrem diferente e sua existência também é diferente. Precisar acabar com o que pudermos em termos de desigualdade e falta de acesso”, defende Clayton. 

Atualmente, o Brasil conta com algumas leis que criminalizam o racismo, com a Lei 7.716, de 1989, que define crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor, e, mais recentemente, foi sancionada a Lei 14.532, de 2023, que tipifica a injúria racial também como crime de racismo. 

Ser antirracista, entretanto, vai muito além do que não praticar atitudes racistas e perpassa diversas outras instâncias e comportamentos, como explica Fabio Paes.

“Ser antirracista é trazer totalmente a perspectiva dos direitos humanos e sociais. Todos aqueles que são a favor da democracia e da defesa do ECA são e devem ser antirracistas Pode parecer um discurso muito amplo, mas quando defendemos a questão racial, estamos defendendo inúmeros outros direitos”, aponta.  

Por um Conselho Tutelar antirracista 

Considerando todo o contexto brasileiro enquanto país construído sobre o racismo, as mudanças de abordagens citadas por Clayton valem para as múltiplas instâncias que compõem uma rede de garantia de direitos de crianças e adolescentes: os Conselhos Tutelares, os CRAS (Centros de Referência de Assistência Social) e CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social), Casas do Adolescente e diversos outros equipamentos de atendimento. 

A importância de profissionais comprometidos com o antirracismo fica ainda mais urgente diante de dados como: 

– De acordo com dados de 2013, divulgados pela própria Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de 93% das crianças e dos adolescentes envolvidos em trabalho doméstico no Brasil são meninas negras;

– No ano 2014 o trabalho infantil doméstico afetava 257 mil crianças e adolescentes. Destas, mais de 90% eram meninas e 70% negras. No trabalho nas ruas, 80% das crianças e adolescentes são meninos negros (Nota da Coalizão Negra Por Direitos no Dia Mundial de Combate ao Trabalho infantil, 2021); 

– As mortes por diarreia são 72% mais frequentes entre as crianças negras em relação às brancas. No caso das indígenas, a diferença é ainda mais gritante: 1.300% (Portal JN, 2022); 

– Dados dos sistemas de notificação de violência do Ministério da Saúde, apontam que crianças e adolescentes negras de até 14 anos morrem 3,6 vezes mais por conta da violência armada do que as não negras. 

Esses são alguns dados trazidos pelo manifesto da campanha Em Defesa do ECA – por Conselhos Tutelares Antirracistas, uma iniciativa da Uneafro Brasil, com o apoio do Instituto de Referência Negra Peregum, da Revista Casa Comum e do Sefras – Ação Social Franciscana para incentivar o voto em candidaturas que defendam o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e estejam alinhadas à pauta antirracista, luta histórica do movimento negro brasileiro. 

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A campanha tem como objetivo constituir uma rede de candidaturas antirracistas, além de oferecer formações a esses profissionais verdadeiramente comprometidos com a pauta racial e com a defesa e garantia dos direitos de crianças e adolescentes. 

“Convocamos toda a sociedade brasileira a fazer justiça e dar esse importante passo na consolidação dos direitos da infância e adolescência garantindo candidaturas antirracistas para os Conselhos Tutelares. A universalização dos direitos da criança e do adolescente  é tão urgente quanto a efetivação da equidade racial. […] É necessário construir, incentivar e fortalecer candidaturas populares e do movimento negro, do movimento da infância, dos Fóruns Regionais de Direitos da criança e do adolescente e demais setores progressistas do país para os Conselhos Tutelares. Afinal, enquanto houver racismo na infância, não haverá garantia de direitos, e por consequência, não haverá democracia”, traz trecho do documento. 

Candidatos e candidatas que aderirem ao manifesto da Campanha poderão participar de formações, online e presenciais, sobre a defesa dos direitos de crianças e adolescentes pautados pelo antirracismo. 

Fique por dentro 

Confira mais dicas de conteúdos sobre o tema: 

>> Você sabe em quais situações o Conselho Tutelar pode atuar na defesa e na garantia de direitos de meninas e meninos? 

>> Qual é a importância da conselheira tutelar para uma criança? 

>> Manifesto: O movimento negro em defesa da infância e adolescência: por Conselhos Tutelares antirracistas 

>> Campanha Apoiar e Proteger 

>> A eleição do ano 

>> Por que é importante votar nas eleições do Conselho Tutelar

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