Publicado em
28/01/2025
Debate sobre tecnologia não pode ser dissociado dos direitos humanos, considerando as profundas desigualdades no Brasil. Coletivos e movimentos investem em capacitação e linguagem acessível para que mais pessoas se apropriem de ferramentas tecnológicas.
Por Maria Victória Oliveira
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Um homem foi abordado pela polícia, em abril de 2024, após ser identificado erroneamente por ferramentas de reconhecimento facial em um estádio de futebol em Sergipe. Já em 2022, ao chegar em uma festa, um homem negro foi detido em frente à sua família, na Bahia, e ficou preso injustamente por 26 dias, também em decorrência do reconhecimento facial.
O que esses casos têm em comum? Por que as tecnologias de reconhecimento facial não são tão precisas? Grande parte do problema está na falta de diversidade das equipes e pessoas que criam e programam as tecnologias, aplicativos e algoritmos responsáveis por identificar pessoas.
Segundo a pesquisa A Diversidade na TI, do Google Cloud e da empresa global Kantar, 29% dos entrevistados acreditam que a área de TI (tecnologia da informação) é a menos diversa de suas empresas, com mulheres e pessoas LGBTQIA+ apontadas como menos incluídas na área.
“As tecnologias consideradas modernas, que estão nas prateleiras e brilham os olhos, geralmente não são pensadas por pessoas que, muitas vezes, estão à margem da sociedade ou são sub-representadas. Por serem feitas, pensadas, vendidas e controladas por um grupo muito específico, essas tecnologias, seja lá qual for, vão repetir vieses”, explica Giselle Santos, educadora, gestora de inovação e empreendedora focada na criação de futuros equitativos por meio da informação e da tecnologia, assim como Embaixadora do Women Techmakers, programa que reconhece e apoia mulheres em tecnologia que fazem iniciativas de impacto para a comunidade.
É nesse contexto que ela defende que o debate sobre tecnologia deve, obrigatória e necessariamente, envolver os direitos humanos. “Precisamos pensar em direitos humanos quando pensamos em tecnologia, porque há pessoas excluídas. Precisamos defender dignidades e presenças e gritar ausências.”
Não basta, entretanto, produzir pesquisas, tecnologias ou soluções voltadas a grupos excluídos. É necessário promover, cada vez mais, iniciativas de transformação digital que sejam inclusivas e, com isso, tragam para dentro dos processos produtivos pessoas pretas, da comunidade LGBTQIA+, mulheres, pessoas com deficiência (PcD) etc. É uma mudança de lógica: de público beneficiado para público produtor e consumidor da tecnologia.
“Muitas pessoas, principalmente aquelas que não necessitam disso, têm a ideia de que hackear é burlar alguma coisa. Mas hackear não é nada nocivo, e sim abrir espaço e pensar criativamente maneiras de poder participar e transformar esse sistema em algo que seja bom para todo mundo”, defende Giselle, reconhecida como Top Voice no LinkedIn em novas tecnologias e educação.
O papel da educação
Criar uma tecnologia que não reproduza racismo, transfobia, homofobia, etarismo, capacitismo ou qualquer outro tipo de preconceito está longe de ser uma tarefa fácil.
Diante disso, Giselle reforça a importância de estratégias amplas de educação, seja formal ou informal. “Quando formarmos pessoas antirracistas, fica mais fácil fazer esse ‘pulo’ para novas tecnologias e gritar essas ausências e as pessoas não acharem que é ‘mimimi’. É muito mais do que apenas virar uma chave e falar: ‘agora ninguém mais sofre preconceito’.”
Menos “tecniquês”, mais conversas acessíveis
Além de educadora e empreendedora, Giselle também é apresentadora do programa Assunto na Mesa, do Canal Futura, que busca descomplicar a inteligência artificial (IA), incentivando um debate mais acessível e inclusivo sobre as diferentes aplicações de IA. Para ela, o objetivo do programa envolve conversar sobre assuntos complexos de maneira simples, visando a inclusão de mais pessoas no debate.
Apresentar a tecnologia de forma mais simples e acessível também é um dos objetivos da InfoCria, coletivo jovem que promove autonomia digital e tecnológica.
Oficina realizada pela InfoCria no Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro. Foto: Albert Andrade
Um dos fundadores, Rafael Baptista, usou sua experiência em ensinar tecnologia para sua mãe e moradores de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, para criar formas de compartilhar esse conhecimento. O que começou com formatação de computadores e configuração de celular, virou oficinas e aulas sobre segurança digital e informática básica.
O jovem reflete que, ao passo em que houve uma verdadeira invasão de tecnologia na vida da população, ela não foi acompanhada de leitura, escrita e reflexões sobre tecnologia, como seus potenciais danos: fake news, golpes e fraudes.
“Não saber utilizar o WhatsApp ou o aplicativo de banco, ou não encontrar notícias de qualidade, não é só sobre não saber usar o celular. É sobre não ter aprendido a ler, escrever e pensar a tecnologia, que é a herança de não saber ler, escrever e pensar no Brasil, um país gigantesco que lida com analfabetismo e com alfabetismo funcional”, aponta Rafael.
Para Rafael, muitos cursos e formações sobre tecnologia não ensinam as pessoas a se apropriarem das ferramentas, mas sim a operarem. O objetivo da InfoCria, entretanto, não é criar programadores ou especialistas em tecnologia. “Nós queremos que as pessoas consigam entender o que está acontecendo, como elas podem se inserir nesse mundo e participar dele. A educação tecnológica popular vem como um método de fazer isso.”
Entre as ações já desenvolvidas pelo coletivo estão: fornecer tecnologia para eventos culturais do bairro, participar do festival de artes da região, ministrar oficinas de fotografia e tecnologia e construir um mapa on-line sobre o bairro. No futuro, a InfoCria pretende desenvolver um repositório de dados sobre a Baixada Fluminense, além de um mapeamento de fazedores culturais da região.
“Acredito que são vários os caminhos para a transformação, mas um deles é conseguir se apropriar de ferramentas que, às vezes, já estão disponíveis e, então, usá-las a seu favor para tentar hackear um pouco a lógica de vida que é determinada quando você nasce preto em uma periferia.”
Mais capacitação, mais oportunidades
Segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), o Brasil segue, pelo 15o ano consecutivo, no topo dos países que mais assassina pessoas trans. Em 2023, foram 145 mortes e 10 suicídios.
Foi diante desse contexto de violência e falta de oportunidades, que Luana Maria Barbosa, jovem travesti ativista de Recife, decidiu criar a Pajubá Tech, uma organização social que atua para a geração de renda e empregabilidade de jovens e populações LGBTQIA+, periféricas e negras.
A Pajubá prioriza a qualificação profissional em tecnologia com foco na comunidade trans e travesti, especialmente em habilidades tecnológicas como TI e programação, para que possam competir no mercado de trabalho e melhorar suas perspectivas de empregabilidade na indústria de tecnologia. Além disso, também investe em conscientização, oferecendo consultoria para empresas e desenvolvendo campanhas para promover a igualdade de gênero e diversidade no mercado de trabalho.
Assim como Giselle, Luana acredita que a promoção de um ambiente mais diverso no setor de tecnologia e inovação está profundamente ligada à garantia dos direitos humanos. Para ela, iniciativas como a Pajubá Tech promovem mais do que acesso a oportunidades profissionais, dignidade, autonomia e justiça social.
Por toda sua atuação social e na direção executiva da Pajubá Tech, Luana recebeu, em 2024, o prêmio Empreendedor Social, do jornal Folha de S. Paulo, na nova categoria Jovens Transformadores.
“Desde os 17 anos, atuo com o empreendedorismo social desenvolvendo tecnologias sociais que solucionem a falta de oportunidade e informação. Acreditamos na criatividade e potencialidade de inovação que a favela tem, além da necessidade de produzir, criticar, discutir e consumir as tecnologias. Almejamos um futuro onde todas as pessoas, independentemente de sua identidade de gênero, tenham acesso igualitário a oportunidades profissionais e sejam valorizadas por suas contribuições”, destaca Luana.
O viés social da tecnologia
Outra iniciativa que considera a tecnologia indissociável do aspecto social, cultural e econômico é o Núcleo de Tecnologia do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto).
Uma de suas bandeiras é a promoção da soberania digital popular, que, segundo Alexandre Boava, militante do MTST de São Paulo e membro do Núcleo de Tecnologia, se baseia na defesa do desenvolvimento de condições materiais e subjetivas para apropriação popular da sociedade da informação, o que, por sua vez, possibilita a promoção de autonomias científica e tecnológica orientadas ao bem comum.
Curso de tecnologia na Escola Municipal de Ensino Curso de tecnologia na Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Sócrates Brasileiro, em São Paulo, em 2023. Foto: Acervo MTST São Paulo
Para o ativista, a inclusão de grupos historicamente marginalizados no desenvolvimento tecnológico tem o potencial de alterar o cenário de exclusão ao permitir que essas pessoas utilizem sua própria experiência de vida para criar ferramentas mais inclusivas e humanas. Esse é, até mesmo, um dos pilares do Núcleo de Tecnologia, que acredita que as tecnologias devem ser pensadas a partir do território e da vida real das pessoas, colocando como central os anseios e encessidades populares.
“Ao garantir essa efetiva participação diversa no desenho e no desenvolvimento das tecnologias, podemos promover, na prática, sistemas não opressores e que melhor representam a realidade concreta. A tecnologia popular dá voz e visibilidade a grupos historicamente marginalizados, que encontram nas ferramentas digitais um meio para se expressar, organizar e reivindicar seus direitos. A luta do MTST por moradia digna se alia à luta pela tecnologia de maneira soberana, permitindo que possamos criar nossas próprias narrativas e soluções para os nossos problemas, partindo das nossas necessidades”, analisa Alexandre.
Fique por dentro
• A Diversidade na TI – Google Cloud e Kantar: bit.ly/RCC_11_44
• Direitos humanos devem estar no centro do debate quando o assunto é novas tecnologias: bit.ly/RCC_11_45
• Dossiê: Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2023: bit.ly/RCC_11_46
• Giselle Santos: instagram.com/gisellsantos
• InfoCria: instagram.com/infocria
• Luana Maria: instagram.com/luanamaria.dev
• Núcleo de Tecnologia do MTST: nucleodetecnologia.com.br
• Pajubá Tech: instagram.com/pajubatech
• Programa Assunto na Mesa, do Canal Futura: bit.ly/RCC_11_47
• Rafael Baptista: instagram.com/tecnorganico
• Reconhecimento facial: erros expõem falta de transparência e viés racista: bit.ly/RCC_11_48
• Sergipe suspende uso de reconhecimento facial após abordagem errada da PM: bit.ly/RCC_11_49
Em um mundo inundado de informações, entender como
a comunicação funciona é crucial para navegar nesses
oceanos com segurança e discernimento. Temas como
funcionamento de algoritmos, acesso a dados, limites da
liberdade de expressão, reconhecimento de informação
falsa, entre tantos outros estão cada vez mais presentes no
nosso dia a dia.
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