Publicado em
26/07/2023
Rud Rafael, coordenador do MTST, analisa os dados do Censo 2022 sobre moradia e destaca a urgência de políticas públicas eficazes para enfrentar a escassez habitacional no país.
Por Dayse Porto
Militante do MTST acena de seu barraco durante ocupação na Ceilândia, na periferia do Distrito Federal. Na ocasião, dezenas de famílias lutavam para que seus nomes fossem incluídos no programa de moradias populares no DF. 2017. Foto: Matheus Alves
Dados do Censo 2022, divulgados recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), revelam que 13 em cada 100 domicílios particulares no Brasil estão vazios, totalizando 11,4 milhões de casas e apartamentos desocupados. Esse aumento em relação a 2010, quando eram 9 domicílios vagos a cada 100, reflete um desafio crescente na busca por soluções habitacionais adequadas no Brasil, afetando a vida de milhões de pessoas.
Os estados mais afetados são São Paulo e Rondônia, com percentuais de 12% e 16% de domicílios vazios, respectivamente. A cidade de São Paulo se destaca como o município com a maior quantidade de moradias desocupadas com um alarmante número de 588 mil casas e apartamentos vagos, o dobro do registrado em 2010.
A discrepância entre a quantidade de domicílios vazios e o déficit habitacional destaca a necessidade de políticas públicas eficazes que abordem tanto a falta de moradias como a qualidade das existentes, uma vez que muitas casas vazias não atendem aos padrões de infraestrutura necessários para uma habitação digna.
O debate sobre os dados do Censo 2022 é fundamental para criar soluções habitacionais alinhadas às necessidades específicas de cada município, independentemente do seu tamanho. Nessa busca por soluções, o debate com especialistas torna-se imprescindível e, para analisar esses dados e o que ele significa na prática, a Revista Casa Comum entrevistou Rud Rafael, assistente social, coordenador do Movimento dos(as) Trabalhadores(as) Sem-Teto (MTST) e integrante da Frente Povo Sem Medo e da TELAR – Territorios Latinoamericanos en Resistencia. Confira:
Revista Casa Comum: O Censo de 2022 revelou que a cada 100 domicílios particulares no Brasil, 13 estão vagos. Esse aumento em relação ao Censo anterior, em 2010, indica uma tendência preocupante. Como você interpreta esses dados e quais as possíveis consequências para a sociedade?
Rud Rafael: Entendo que os 11 milhões de imóveis domicílios vagos reforçam que a crise da moradia não é uma crise real, é uma crise artificial criada por um modelo de produção habitacional que não atende às necessidades sociais. Os dados do IBGE evidenciam que o país não está priorizando o direito à moradia, garantido no artigo 6º da Constituição, e sim atender as necessidades de grupos sociais que estão pensando exclusivamente em lucrar com a moradia. E essa lucratividade exclui cada vez mais a população pobre e periférica de acessar um direito fundamental, que impacta uma série de outros direitos básicos, como o acesso à educação, saúde, transporte, entre outros. Essa é uma primeira consequência.
Mas a própria organização das nossas cidades é outra, com grandes vazios urbanos que geram sentimento de insegurança, de que a cidade não é ocupada, de que não tem vida nela e expondo a população a um contexto de medo social que impacta diretamente as políticas de segurança pública.
E também tem a questão da mobilidade urbana, já que grande parte dos imóveis desocupados estão bem localizados. Se houvesse uma política efetiva de cumprimento da função social nesses imóveis, se reduziria muito a necessidade de deslocamento na cidade e de alguma forma desafogaria o trânsito, que é sempre um ponto crítico nas grandes cidades.
E tem também o impacto econômico, já que grande parte desses imóveis são devedores de IPTU [ Imposto Predial e Territorial Urbano] , então a dívida desses proprietários com o poder público é uma renda que deixa de entrar nos cofres públicos para os fundos de investimento em políticas públicas, inclusive nas habitacionais. Então é preciso enfrentar isso urgentemente, não tem como aceitar mais que tenha mais casa sem gente do que a gente sem casa no Brasil.
Revista Casa Comum: O aumento de domicílios vagos não reflete necessariamente um aumento de moradias disponíveis, pois o déficit habitacional também está relacionado ao acesso adequado à moradia. Quais os principais desafios no acesso à moradia no Brasil e como superá-los? Quais soluções poderiam ser implementadas para reduzir o déficit habitacional?
Rud Rafael: Existe uma necessidade urgente de cumprir a função social desses imóveis. Estamos há mais de 20 anos da aprovação do Estatuto da Cidade, a Lei 10.257 de 2001, uma legislação modelo no mundo, fruto de muita luta dos movimentos sociais, que traz um conjunto de instrumentos legais que podem ser implementados, como por exemplo a aplicação do IPTU progressivo. Ou seja, a elevação da taxa de IPTU ao longo do tempo, a partir do momento em que esses imóveis não cumprem a função social até o momento em que os proprietários definam um uso para eles.
E tem também o debate central sobre a relação do déficit habitacional com o valor dos aluguéis. Ônus excessivo com aluguel é quando uma família gasta mais de 30% da sua renda com o pagamento por moradia, o que tem acontecido cada vez mais, já que o valor do aluguel é estabelecido pelo proprietário. Não existe nenhuma forma de regulação desses valores.
Uma política de locação social, por exemplo, como está previsto no novo Minha Casa Minha Vida que tenha como modelo central a promoção de um estoque público de moradias e que pense também é o retrofit, que é como o governo tem chamado a revitalização desses imóveis vagos nos centros urbanos, por meio de um regime não de Parcerias Público-Privada (PPPs), mas por meio de Parcerias Público-Populares com os movimentos e organizações sociais.
Dessa forma, teríamos não só uma resolução desse problema da moradia, mas também a promoção da política habitacional como o novo vetor de de crescimento da economia, de geração de emprego, de fortalecimento dos movimentos sociais – que foram quem atuou na luta pela defesa do direito à moradia e acolheu quem mais precisava quando não conseguiu pagar um aluguel e foi para uma ocupação. Então chegou a hora de pensar a questão da moradia, não como um problema, mas como como solução, e para isso precisamos implementar um conjunto de políticas públicas.
Revista Casa Comum: Além da quantidade de moradias vazias, há o problema da qualidade das moradias existentes, com problemas de infraestrutura. Como garantir não apenas a quantidade, mas também a qualidade das moradias disponíveis para a população?
Rud Rafael: O MTST fez um conjunto de propostas que foram também incorporadas no novo Minha Casa Minha Vida, como, por exemplo, a garantia de um subsídio de melhorar a localização de empreendimentos, porque o acesso à terra é um dos grande “nós” para a execução de uma política de habitação de interesse social. O subsídio para qualificação da urbanidade, para garantia também de empreendimentos que não sejam só pensados a partir da questão da moradia, mas também olhando para a geração de renda, a criação de equipamentos comunitários, etc. E também foi previsto um subsídio verde para o incentivo de tecnologias ecológicas em produção habitacional.
E tem a questão do investimento em infraestrutura urbana, já que até hoje uma das principais das principais disputas, em termos de política urbana, é a questão do saneamento público. Precisamos de uma política de saneamento que seja pública, que fortaleça a garantia da água, do esgoto, do calçamento das ruas, e isso deve ser uma prioridade de investimento do Estado, não uma tarefa atribuída à iniciativa privada, como vem sendo feito em vários lugares.
O novo marco do saneamento aprovado na última gestão do Governo Federal é justamente a tentativa de abertura, a “passada da boiada”, na política de saneamento. E ficou evidente que esse processo de privatização do saneamento resultou na má qualidade do serviço, na falta de acesso da população trabalhadora em relação a esse serviço. Então é fundamental que a sociedade retome o debate sobre a reforma urbana e sobre a questão do direito à cidade. Inclusive, em 2023 completamos 60 anos do debate sobre a reforma no Brasil e é preciso retomar essa luta pautando a implementação e construção de políticas públicas, ressaltando o papel do Estado e também sobre a importância do diálogo com as organizações sociais e com os movimentos populares em relação a garantia desse serviço e também o combate à privatização. É uma questão extremamente complexa, mas chegou a hora de nos debruçarmos sobre ela.
Revista Casa Comum: O Censo de 2022 também mostrou uma diminuição na média de moradores por domicílio no Brasil, passando de 3,3 em 2010 para 2,79 em 2022. Quais fatores contribuíram para essa redução e como ela impacta o acesso à moradia?
Rud Rafael: É muito importante observar a mudança do perfil das famílias brasileiras, uma mudança sociocultural que também acarreta na necessidade de reformular as políticas públicas. Para além do debate sobre o número de famílias, é preciso pensar qual é a conformação delas: temos famílias com menos filhos, mas também do papel das mães, das mulheres que chefiam essas casas, muitas mães solos, famílias monoparentais, enfim. Tudo isso gera uma necessidade de aprofundar esses dados na perspectiva de raça, de gênero e de classe para a construção de novas políticas públicas, porque não basta só ter uma casa. Que outras políticas vão chegar a partir da garantia desse direito à moradia?
A mudança no perfil das famílias aponta para uma quebra de um preconceito histórico com as mais pobres, considerando que as elites difundiram o discurso de que o Bolsa Família e outros programas sociais iriam fazer com que as famílias mais pobres tivessem mais filhos, e muito pelo contrário, os resultados do Censo contestam essa lógica racista e elitista com dados.
Revista Casa Comum: O crescimento do número de domicílios vagos e de uso ocasional também foi observado. Quais são as principais razões por trás da não ocupação dos imóveis e como isso afeta a oferta e demanda no mercado imobiliário? Como podemos equilibrar essa questão e garantir que as moradias sejam disponibilizadas para quem realmente precisa?
Rud Rafael: Os motivos são vários, desde o fato de ser vantajoso, já que um imóvel vazio “especulando” gera lucro no futuro, pela lógica da especulação imobiliária, até outras questões como conflito por heranças e outros fatores. Mas um dos pontos mais importantes dessa questão é que o patrimônio construído seja entendido como um patrimônio público também, porque quando ele tá abandonado, impacta na qualidade da cidade, então existe uma centralidade na necessidade de reverter um processo de esvaziamento, principalmente dos centros urbanos, para dar vida a essa esses imóveis.
E podem ser pensados diversos arranjos nesse sentido, mas é preciso, do ponto de vista do governo federal, do governo estadual e municipal, instâncias que atuem nessa questão. São Paulo, por exemplo, a partir da revisão do último Plano Diretor, criou uma instância que monitorava imóveis vagos e, no Recife também tem uma experiência importante, como por exemplo quando o MTST participou de um levantamento dos imóveis em área central da cidade e apontou que existiam, só em um bairro muito pequeno do centro, dezenas de imóveis com cinco ou mais andares que poderiam estar servindo para moradia popular.
Então entendo que chegou a hora de colocar isso no centro da política urbana, não apenas a necessidade de produzir novas moradias, mas requalificar as moradias que já existem e garantir que hoje quem está sem-teto possa ter acesso a uma moradia bem localizada em área central, por exemplo, por meio de uma política de locação social, onde se paga um valor simbólico. Porque morar de aluguel não é um problema, mas é uma questão você ter um ônus excessivo com moradia. Se tivermos uma política que subsidie de cem a duzentos reais o aluguel de famílias de baixa renda, poderíamos contribuir para a regulação dos valores do mercado imobiliário.
E o mundo tá olhando para isso: Berlim, na Alemanha, fez recentemente o maior referendo da sua história justamente para expropriar grandes corporações de aluguel que estavam cobrando valores exorbitantes. Considerando que, por exemplo, 80% da população da cidade mora de aluguel, a maioria da população votou pela expropriação das imobiliárias para que esses imóveis voltassem a ser públicos. Então esse não é um debate localizado, o mundo está pensando nisso também.
Revista Casa Comum: São Paulo é a cidade com o maior número de moradias vazias, chegando a quase 600 mil residências sem moradores. Ao mesmo tempo, há 400 mil famílias vivendo sem moradia digna. Como você enxerga essa disparidade e quais medidas podem ser tomadas para enfrentar o problema? Como a polêmica revisão da revisão do Plano Diretor Estratégico da cidade, aprovada pela Câmara Municipal no dia 26 de junho, pode influenciar esses dados?
Rud Rafael: O contexto de São Paulo é muito emblemático: existe um volume gigantesco de imóveis vazios, um crescimento absurdo da população em situação de rua nas áreas centrais, onde também há uma grande concentração de imóveis abandonados. E preciso dar luz a essa ilegalidade, já que quando os imóveis quando não cumprem a sua função social estão em condição ilegal, e fazer com que esse crime seja revertido em formas de atender a demanda social por moradia.
E, no fim das contas, a Prefeitura e a Câmara Municipal aprovaram um Plano Diretor que vai na contramão das soluções que precisamos. Que vai permitir que se construa mais, que não se atenda a necessidades sociais, que se atenda só a vontade das grandes construtoras em tornar a cidade de São Paulo cada vez mais inviável para a população pobre. Todos os especialistas em relação ao tema apontam outras soluções, como por exemplo a revitalização desses imóveis, já mencionada. O Plano Diretor de São Paulo representa um grande retrocesso e é muito provável que a cidade de São Paulo esteja muito pior na próxima década: cada vez mais pessoas sem casa, cada vez mais imóveis abandonados, cada vez mais pessoas vivendo na rua. Uma cidade que vai se tornar realmente inviável.
Revista Casa Comum: Como os mecanismos de participação social estão contribuindo para a formulação e implementação de políticas públicas eficazes no enfrentamento dos problemas de moradia no Brasil, considerando os diversos aspectos socioeconômicos e regionais do país?
Rud Rafael: Passados mais de 20 anos de experiências sobre participação social e orçamento participativo, é preciso fazer um balanço crítico desse processo. Várias experiências foram extremamente importantes, como as dos conselhos e das conferências dos próprios orçamentos participativos. Agora estamos acompanhando o debate do Plano Plurianual Participativo e vamos entrar na questão do orçamento participativo em nível federal. Participamos de várias plenárias de votação virtual que colocaram, por exemplo, o programa Periferia Viva, da Secretaria Nacional das Periferias, como uma das prioridades, mas acredito que ainda precisamos inovar nessa esfera.
Nada do que foi criado até o momento em termos de participação social foi suficiente para barrar esse processo de criação de vazios urbanos e a lógica especulativa das cidades. Então precisamos pensar formas de democracia direta a partir da elaboração, por exemplo, de planos e populares de bairros, onde os territórios definem suas prioridades e existam propostas populares para áreas centrais e que priorizem a habitação popular. Isso deve estar descrito em todos os instrumentos de planejamento e é preciso garantir espaços de debate e escuta.
O aprofundamento de estudos e pesquisas também é um ponto frágil. Tivemos um prejuízo enorme com o adiamento do Censo no último governo federal, que era para ter sido realizado em 2020 e poderia ter contribuído muito para construção de um debate nacional na nas eleições de 2022. A ideia é que esse novo Censo ajude a pensar projetos de cidade que estejam ancorados nas necessidades apontadas pela pesquisa.
O grande fator para construção de políticas públicas é a geração desse tipo de informação, por isso precisamos investir em ter cada vez mais estudos e diálogos com a população afetada para conciliar a realidade absurda apresentada pelos dados com respostas e soluções que estejam vinculadas à garantia de direito. O protagonismo de quem mais tem sofrido com esse modelo excludente de cidade segregadora é fundamental.
Em resumo, é preciso pensar a questão da moradia como uma questão de política social, que também é uma política econômica porque quando atendemos quem mais precisa, estamos desonerando a maioria das famílias de um custo que sufoca o orçamento doméstico, uma realidade que faz parte do cotidiano de grande parte da população brasileira. O Censo cumpre um papel importante de apoiar a atuação das organizações e os movimentos sociais que lutam para produzir moradia para quem precisa, mas também cidades melhores para todas as pessoas.
Em 12 anos, a população cresceu cerca de um milhão por ano. 61% das pessoas vivem nas cidades. 18 milhões de residências estão desocupadas no país.
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