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Publicado em

15/06/2023

Pesquisadora ressalta que branquitude se constitui a partir de uma suposta superioridade racial

Lia Vainer Schucman explica que o racismo produz uma perspectiva de que existe uma humanidade que vale mais e que, portanto, a vida de algumas pessoas vale mais que de outras.

Por Dayse Porto

A tela A Redenção de Cam (Modesto Brocos, 1895) teve um impacto muito grande nas teorias do branqueamento.

O quadro mostra, da esquerda para direita, uma senhora negra, descalça sobre um chão de terra, que ergue as mãos e os olhos aos céus ao lado de uma mulher, provavelmente sua filha, de tom de pele mais claro, que segura seu bebê, branco, no colo. E um homem branco à sua direita.

As três personagens representariam as três gerações necessárias para que o Brasil se tornasse um país branco. O homem é o elo que permite o branqueamento completo dos descendentes da senhora, possivelmente ex-escravizada e, assim, a sua salvação.

A sociedade brasileira tem enfrentado desafios significativos em relação às questões raciais, incluindo o agravamento das desigualdades socioeconômicas após a pandemia de Covid-19, a falta de representatividade da população negra em espaços de poder, o aumento da violência policial e, também, de casos de racismo e discriminação. Há uma urgência em se criar medidas para combater o racismo e promover a igualdade racial em todas as esferas da sociedade.

Lia Vainer Schucman, psicóloga, professora adjunta no departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisadora da branquitude e do racismo, explica que, no Brasil, o fato das pessoas negras sempre terem sido tema de pesquisadores(as) brancos(as) como objeto e não como sujeito, como se fosse sempre o “outro”, reforçou a ideia de que a raça branca seria a concepção “universal”, a norma daquilo que representa a humanidade.

A partir dessa constatação, ela colocou a lente de aumento na população branca em suas pesquisas para entender como funciona a branquitude.

Em entrevista concedida à Revista Casa Comum, a autora de diversas publicações que abordam a temática racial, incluindo Branquitude em questão e Racismo no Brasil e afetividade: um estudo sobre branquitude e relações inter-raciais, defende que há uma concepção de superioridade que constitui a subjetividade de pessoas brancas e que isso estabelece uma perspectiva de que uma humanidade vale mais do que outras. Confira:

Revista Casa Comum: Como se constitui a identidade racial de pessoas brancas no Brasil?

Lia Vainer: Uma das perguntas centrais nos estudos de relações raciais, no campo da psicologia, é tentar entender como é que essa ideia de raça produz subjetividade. Mas o foco dos estudiosos – por muito tempo, só pessoas brancas – sempre foi olhar para os negros e indígenas como “o outro”, como se eles fossem a diferença racial. Isso reforçou, portanto, por muito tempo, a ideia de que o branco é a concepção universal e a norma daquilo que representa a humanidade. Então, pensar a branquitude, é pensar como que essa categoria “raça” constitui e produz também subjetividade nas pessoas brancas.

O intuito político dessas pesquisas foi retirar o branco desse lugar de norma e de lugar de representação de humanidade, porque o próprio grupo que inventou a ideia de raça se autocolocou como superior moralmente, intelectu- almente e esteticamente. Então, se há algo que constitui a produção de subjetividade a partir dessa ideia de branquitude, é uma ideia de superioridade racial.

Revista Casa Comum: O que significa branquitude?

Lia Vainer: A branquitude se constitui a partir de uma relação de poder que se autointitula como superior aos outros grupos: ou esses grupos são atrasados, ou não são desenvolvidos o suficiente, ou são muito emocionais, etc. É uma produção “do outro” no lugar de norma desse humano “universal” que é o branco, como se ele fosse superior. Quando entrevistei pessoas na cidade de São Paulo, não falei com nenhuma pessoa branca que não se sentisse superior em algum lugar. Ou era superior a partir, por exemplo, da ideia de que os europeus são mais desenvolvidos, de que os brancos são mais educados, racionais e que os negros são muito emocionais e os indígenas atrasados. Há uma noção de superioridade que foi constituindo essa subjetividade e que produz a ideia de que existe uma humanidade que vale mais, de que existe uma humanidade que é mais humana, portanto, a vida de algumas pessoas vale mais do que de outras. 

Se a gente pensar nesses casos de assassinatos em escolas, é chocante e ficamos horrorizados. Mas, todos os dias, morrem muitas crianças negras e indígenas no Brasil e não é o mesmo choque. A violência não é menor quando a polícia entra em comunidades periféricas e mata crianças ou quando se deixa morrer uma população indígena como vimos no caso dos Yanomami. Porém,  o choque e a sensação de perigo e de indignação se dão porque há uma identificação de que esse é um humano e que a vida dele vale, e isso reflete nosso imaginário de que algumas vidas valem mais e outras menos. 

Então, a branquitude é uma posição em que os sujeitos brancos adquirem o privilégio material e simbólico apenas por nascerem brancos. E a concepção do que é branco está ligada às relações históricas e de poder em um território. No Brasil, é branco aquele que tem fenótipo branco, sem que precise necessariamente ter uma origem europeia. Pode ser um branco qualquer: árabe ou judeu – que nunca foi considerado branco na Europa –, inclusive pode ser um branco indígena. A própria etnia e os grupos étnicos modulam a branquitude também, tendo como pano de fundo a ideia de origem.

Revista Casa Comum: O poder econômico, político, jurídico e, a própria indústria cultural, estão nas mãos de um dos grupos sociais: os brancos. Nesse contexto, você fala em “supremacia branca à brasileira”, o que seria?

Lia Vainer: Temos supremacia branca sustentada por duas ideologias: o mito da democracia racial, que é a ideia de que brancos e negros têm oportunidades iguais, e a ideia de meritocracia. E tem também o fato de que o privilégio branco coloca apenas brancos nos lugares de poder, baseado na ideia de que essas pessoas estão ocupando esses lugares devido ao mérito individual. 

Então, a lógica é: “temos oportunidades iguais”, depois “cheguei por mérito individual”, logo “os brancos são superiores”. Ou seja, a própria ideologia da democracia racial junto com a ideologia da meritocracia sustenta uma supremacia branca sem que seja preciso anunciá-la. Funciona melhor do que na África do Sul e nos Estados Unidos com as regras de supremacias, porque aqui a ideologia faz com que funcione

Revista Casa Comum: Você aponta para o “letramento racial” como uma proposta de um desaprendizado para reverter esse cenário. O que significa e como funciona?

Lia Vainer: Todos nós brasileiros reproduzimos o racismo, porque a nossa sociedade é estruturalmente racista. Toda pessoa branca é beneficiada pelo racismo numa estrutura racista, não importa se quer ou não, porque a porta do banco abre mais fácil para mim, a ideia de confiança, de que eu não vou assaltar ninguém, de que eu sou uma pessoa competente, etc. recai sobre a minha imagem apenas pelo meu fenótipo e uma suposta ideia de origem. E a maior parte de nós reproduz esse racismo quando distribui os benefícios do privilégio branco apenas no próprio grupo, que é quando, por exemplo, a professora tem a ideia de que a criança branca é mais competente, que merece aprender e tem que investir, porque ela pode ser uma boa engenheira ou médica. Coloca-se mais expectativa na criança branca. Tem uma pesquisa que mostra que as crianças brancas têm as fraldas trocadas com mais frequência do que as negras, porque existe essa ideia de que essa é uma criança que tem que estar limpa e ser cuidada. Nós reproduzimos aquilo que aprendemos e o nosso letramento racial é racista

A gente tem a ideia de que o branco tem sociedade, os negros e indígenas têm tribos. As línguas europeias são linguagens, mas as 65 línguas indígenas que existem no Brasil são dialetos. Um é língua, o outro é dialeto, uma prática é arte, a outra é artesanato. O que vem da Europa  é visto como o conhecimento, já o resto são saberes tradicionais. Existe toda uma ideia hierárquica que aprendemos e reproduzimos

Se perguntarmos para as pessoas onde nasceu a filosofia, a maioria vai dizer que foi na Grécia. Mas, o que nasceu lá foi a filosofia grega, a filosofia chinesa nasceu na China, a filosofia indígena nas Américas, a filosofia egípcia no Egito, etc. A história da Europa é a história geral, enquanto as outras são história das Américas, história da África, porque a branquitude aparece como algo universal. Mesmo que a Europa tenha sido responsável pelas Cruzadas, pela Inquisição, pelo genocídio das mulheres, pela Primeira e pela Segunda Guerras, pelo genocídio dos judeus e dos indígenas e pela escravização da população africana, ou seja, mesmo que seja um continente da barbárie, existe uma ideia de que aquele é um lugar civilizado, que é tudo lindo e desenvolvido, mesmo que tenha sido com ouro roubado de outros países. 

Um letramento racial crítico é o que nos permite passar por processo de desidentificação com isso tudo. É preciso produzir uma justiça epistêmica a partir do reconhecimento de que esse lugar que as pessoas brancas foram colocadas é um engodo, que não tem nada de civilizatório, nada de berço do desenvolvimento, etc. Isso precisa ser contado de outra forma para tirar da nossa linguagem a ideia de que existe uma superioridade branca e, para que seja possível, ampliar o entendimento de que as identidades raciais não existem a priori, é fruto de uma produção histórica a posteriori e depois da dominação.

Assim, o letramento racial crítico é um passo de conscientização para uma mudança que cada pessoa precisa fazer nos espaços que ocupa: família, igreja, escola, etc. O antirracismo não pode ser visto como letramento – algo como “li 10 livros sobre o tema” – é uma prática cotidiana. 

Revista Casa Comum: Ouvimos muito que não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, mas aí é necessário falar sobre privilégios. Qual o lugar das pessoas brancas na desconstrução do racismo estrutural?

Lia Vainer: Nenhuma estrutura pode funcionar sem que os indivíduos as sustentem como, por exemplo, a categoria “gênero”, que não tem nada de natural, é uma produção social. Com raça é a mesma coisa. Não existiria possibilidade do racismo continuar sendo estrutural se todos os dias não tivessem as pessoas organizadas institucionalmente fazendo o necessário para que a estrutura se mova. Então, o lugar das pessoas brancas na luta antirracista é o de parar de reproduzir.

O que a Cida Bento [psicóloga, professora e pioneira nos estudos sobre branquitude e referência no combate ao racismo em empresas e organizações] chama de “pactos da branquitude” é um esforço inconsciente para manter “nossos iguais” nos mesmos lugares de privilégio. Ou seja, a contínua exclusão do poder econômico, jurídico e político dos negros na nossa sociedade. Para mudar isso, é preciso parar de reproduzir diariamente essa lógica como quando uma pessoa responsável pelo marketing de uma empresa recebe a tarefa de colocar uma pessoa bonita para vender um produto e seleciona uma pessoa loira de olhos azuis, isso é reproduzir um padrão de beleza que é racista. 

Não é possível naturalizar que se realize um concurso público no estado de São Paulo em que, de 50 vagas, sejam aprovados 50 juízes brancos. Não está tudo bem porque 40% da população do estado é negra. Isso acontece porque a gente cria barreiras raciais sem que seja nomeado como barreira racial e interpretado como “neutralidades raciais” porque quem tem raça é sempre “o outro”. 

Revista Casa Comum: Frequentemente, quando pessoas brancas são confrontadas com seu racismo, a reação varia entre negação, agressividade ou imobilidade. Poderia explicar como a psique das pessoas brancas funciona quando o assunto é racismo? 

Lia Vainer: Quando as pessoas brancas são chamadas de “os brancos”, é comum que reajam negativamente, mas são as mesmas pessoas que estão há 500 anos falando “os indígenas” e “os negros”. Eles podem ser chamados assim e a categoria de “ser humano individual e singular” é só para os brancos? O desconforto está colocado aí. 

É preciso entender que apontar a branquitude é um furo narcísico, porque é assumir que o lugar, no qual estamos, não é por fruto do esforço individual – embora ele possa existir —, mas as oportunidades foram criadas para que pudéssemos nos esforçar a partir de uma estrutura racial muito desigual e isso é, sim, um desconforto muito grande.
Abordar relações raciais e não gerar nenhum desconforto significa que tem alguma coisa senso suavizada, algum nível de desresponsabilização das pessoas brancas desse lugar, porque a partir do momento que você as responsabiliza, há desconforto. Mas, se você se move no desconforto, ele passa. O viés para trabalhar esse incômodo é que as pessoas brancas se responsabilizem e atuem para mudar as estruturas que as beneficiam. 

E, nesse sentido, é preciso ampliar o entendimento sobre o lugar de fala. Esse conceito significa que há um lugar de onde as pessoas falam e que isso importa, pois ele traz o ponto de vista relacionado a esse lugar. E não existe alguém “sem lugar de fala”, porque todo mundo ocupa um lugar no mundo. Então, uma pessoa branca comprometida com a luta antirracista vai falar do lugar da branquitude, não do lugar de uma pessoa negra, porque não tem como falar de um lugar que não é o seu. 

Revista Casa Comum: O ministro Silvio de Almeida defende que, para que haja a construção de sujeitos racializados como brancos e negros, é necessário que se criem espaços de racialização. Quais estratégias você acha possíveis para construir esses espaços nas organizações que atuam na defesa de direitos? 

Lia Vainer: As organizações em geral partem do pressuposto de incluir minorias raciais em seus quadros, mas desde que elas se tornem “como nós”, a partir de um ideal de branquitude, de embranquecimento dos corpos, ao invés de perceber a potência que as diferenças podem trazer. As pessoas negras não são vistas como sujeitos singulares na sua potencialidade, são vistas como uma grande categoria e isso é extremamente prejudicial, pois se perde o olhar para as potências de cada indivíduo. 

O pacto narcísico olha para esses grupos como se eles estivessem sempre em falta: falta o inglês, falta universidade referenciada, falta intercâmbio, etc., e aí essas pessoas são sempre vistas como inadequadas e que precisam alcançar esse lugar ideal. Essa não é uma perspectiva de inclusão antirracista. A  inclusão de pessoas não brancas nas organizações deve ser feita da mesma forma que se faz com as pessoas brancas, valorizando suas características individuais e agindo para transpor as barreiras que as impedem de permanecer nesses espaços. 

Revista Casa Comum: Você está no ambiente universitário há mais de duas décadas e, no ano passado, a Lei de Cotas completou 10 anos. Como você avalia o impacto dessa política na educação brasileira? O que é necessário para avançar na educação pública antirracista nos próximos anos? 

Lia Vainer: Eu estudei  em uma universidade que é a mesma que dou aula atualmente. Na minha época de estudante, todos os professores eram brancos, todos os alunos eram brancos – me lembro de apenas uma pessoa negra no curso de Psicologia – e o conflito racial não estava na universidade. Hoje, não tenho uma turma que não tenha pelo menos 10 alunos negros, então teve um impacto realmente muito grande. 

Junto com esse impacto, temos o conflito racial dentro da sala de aula. E eu sempre digo que, quando isso acontece, é porque está melhorando, pois significa que as pessoas estão tendo voz para denunciar, tendo algum mínimo canal de escuta e denúncia. 

O conflito racial acontece porque brancos e negros estão se relacionando. Na minha época, não existia porque não tinham negros dentro da sala de aula, o conflito só ficava fora da universidade. A quantidade de jovens negros que foram os primeiros da família a entrar na universidade, nos últimos 10 anos, é impressionante. Colocamos, no mínimo, quatro vezes mais negros, nessa última década de cotas, do que em toda a história anterior da universidade. Ou seja, realmente essa foi uma política muito efetiva. 

Mas a forma com que foi levada ao debate público, com a pergunta  “você é a favor de cotas?”, foi desonesta, porque retira do debate a principal pergunta, que é “você é a favor da igualdade racial no Brasil?” A primeira pergunta é a mesma coisa que questionar “você é a favor de uma técnica?”, quando a pergunta correta seria a segunda. Isso acontece, porque as ações afirmativas, como as cotas, fazem parte de um pacote de técnicas para garantir que a igualdade racial ocorra.

Por isso, acredito que as políticas de ações afirmativas devem continuar e ser aprimoradas.  E sou ainda mais radical. Acho que tem que estar em conformidade com as regras da federação. De acordo com elas, nós temos 56% de pessoas negras, ou seja, 56% da população que paga impostos e sustenta as universidades são as pessoas negras. Então, os órgãos públicos deveriam ter 56% de reserva de vagas para essa população, que está pagando sem poder participar, e isso precisa mudar. 

Quer se aprofundar no assunto?  

– O Canal Futura abordou desigualdades raciais, branquitude e a responsabilidade da população branca na manutenção do racismo no Brasil dedicando uma temporada inteira do programa Entrevista ao tema, em 2020. Lia Vainer colaborou com a curadoria do programa, foi entrevistada e também realizou parte das entrevistas do especial Branquitude, que está disponível gratuitamente. Acesse

– Em abril, foi lançada a publicação Branquitude: diálogos sobre racismo e antirracismo. (Editora Fósforo), resultado do encontro de alguns dos principais pesquisadores, estudiosos e ativistas dedicados a incidir sobre relações raciais e branquitude, com o intuito de trazer à tona o papel das pessoas brancas na construção de um mundo racialmente mais justo. A publicação foi organizada pelo Instituto Ibirapitanga em parceria com Lia Vainer Schucman e conta com prefácio de Cida Bento.

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