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Papo reto

Publicado em

07/03/2023

“O discurso fascista é excludente. O discurso progressista é inclusivo”

Uma reflexão em pauta: de onde viemos e para onde vamos como nação?

Por Rodrigo Bueno

Nas últimas edições da Revista Casa Comum, falamos sobre fome, o conservadorismo da sociedade brasileira e a possibilidade de esperançar um país diferente, menos desigual e com mais respeito.

Nessa entrevista com o psicólogo e linguista, especialista em Análise de Discurso, Sérgio Freire, discutimos os caminhos que nos trouxeram até aqui e as possibilidades de criação de um ambiente democrático, com um farol apontando para um ecossistema social mais justo.

Por que, afinal, as pessoas votam em candidatos da extrema direita? Mais que isso, organizam atos e espalham conteúdos falsos deliberadamente. Trata-se de um fenômeno que veio para ficar? O que o futuro nos reserva? Confira:

Revista Casa Comum: O Brasil tem como marca de sua história a violência e o descaso das elites com os mais vulneráveis. Estão nos nossos registros a escravização e o genocídio de negros e indíginas, a didatura militar, entre outros episódios que evidenciam nosso histórico de desigualdades e violações de direitos humanos. Contudo, o fenômeno da extrema direita, como se apresenta hoje, parece algo relativamente novo. Como chegamos a esse lugar?

Sérgio Freire: Precisamos olhar a questão a partir de dois contextos: o externo e o interno. Do ponto de vista externo, o mundo, no geral, deu uma guinada à direita política nas primeiras décadas deste século. Trump, nos EUA, e a ascensão da direita italiana mais recentemente, são exemplos.

Ao cenário externo, junta-se o interno. O desgaste natural do tempo da esquerda no poder, o junho de 2013, e mais o trabalho midiático sobre a operação Lava-Jato criaram condições para a emergência da necessidade de uma alternativa. Bolsonaro entrou nesse vácuo, representando e possibilitando a externalização dos preconceitos e descaso com a população mais pobre que é historicamente constitutiva da identidade nacional.

Revista Casa Comum: Do ponto de vista da psicologia e da linguística, quais as marcas mais evidentes do discurso dessa extrema direita brasileira?

Sérgio Freire: No campo da psicologia, há uma grande adesão a esse discurso por uma questão de pertencimento e identificação. É nesse grupo que as pessoas se encontram no acolhimento às suas bandeiras excludentes e preconceituosas. Em relação à linguagem, constituído como discurso, o grupo se apropria de ideias típicas da extrema direita histórica: o nacionalismo, o militarismo, a obsessão com a segurança nacional ameaçada, o desprezo pelos direitos humanos, o desprezo pela cultura e a definição da religião como forma de chancelamento de um purismo.

Revista Casa Comum: E por que tanta gente, como evidenciado pelas últimas eleições, se associam a esse pensamento?

Sérgio Freire: Acolhida. Todas as características da extrema direita citadas estavam, de alguma forma, latentes em grande parte da população, mas sem possibilidade política de escoamento. Com a institucionalização de Bolsonaro como presidente, houve uma espécie de legitimação, de salvo-conduto, para que o que passou anos reprimido viesse à tona. Daí a catarse dessa gente.

Revista Casa Comum: Podemos considerar esse fenômeno uma espécie de “fascismo tupiniquim”? Qual definição você acha que melhor se encaixa?

Sérgio Freire: Sem dúvida o discurso e as práticas são fascistas. Estamos vivendo uma espécie de neofascismo brasileiro, com um agravante: é um discurso que se adensa e se propaga por meio do digital, das redes, do Telegram e do WhatsApp. Por isso ganhou força tão rapidamente por meio da disseminação de conteúdos de desinformação amplamente replicados e aceitos por determinados grupos sociais. Diria que é um neofascismo brasileiro de sustentação digital.

Revista Casa Comum: Muitos grupos ainda não aceitaram o resultado das eleições de 2022 e têm encampado atos públicos que vão da comédia pastelão à violência explícita. Isso deve se dissipar?

Sérgio Freire: Essa negação é explicada por vários estudiosos do comportamento das massas. Freud foi um deles. Wilhelm Reich também. As pessoas entram nos grupos para serem acolhidas e ficam neles enquanto há sustentação. No caso brasileiro, a sustentação veio do líder (Bolsonaro), da política (Centrão e políticos bolsonaristas), da religião (igrejas pentencostais) e do financiamento de empresários contrários às ideias de esquerda.

Toda essa sustentação ruiu ou está ruindo. Bolsonaro perdeu a eleição, o Centrão já migrou como sempre, os políticos bolsonaristas vão ser residuais no Congresso, os pastores já retiraram o apoio e já sinalizam ao novo governo porque não vivem à margem do Estado e o financiamento pelos empresários está minguando pelas ações do STF. Logo, essas pessoas vão ficar abandonadas e os grupos
vão se dissipar
.

Revista Casa Comum: O governo eleito para a Presidência da República tem qual papel para apaziguar os ânimos? Você acredita que o diálogo com os extremistas e seus seguidores é possível?

Sérgio Freire: O novo governo tem a função de governar e fazer um resgate do caráter republicano das instituições. Não é sua função dialogar com quem não cumpre a lei, mas fazer cumprir a lei. Não é uma opção política, mas uma obrigação legal fazer o enforcement [aplicação] de punições a crimes tipificados. Passar pano, como se diz, a esse tipo de comportamento criminoso e antidemocrático seria algo extremamente nocivo à tarefa de reorganização democrática do país.

Revista Casa Comum: Parecem existir camadas que marcam a clara diferença entre progressistas e simpatizantes da extrema direita. Para ficar nos mais óbvios: mulheres e homens; pretos e brancos; nordestinos e sulistas. Quais análises são possíveis quando observamos essas dicotomias na orientação política da população?

Sérgio Freire: O discurso fascista é excludente. O discurso progressista é inclusivo. Essa é a grande diferença. Enquanto o fascismo quer a supressão do outro, o discurso democrata quer a superação da diferença para uma convivência social nas diferenças. A dicotomização só é interessante à extrema direita, é o nós versus ele. Hoje é preciso entender as questões sociais na sua complexidade por meio da interseccionalidade, que é levar em consideração mais de uma variável nas análises sociais.

Revista Casa Comum: Qual o lugar das igrejas evangélicas neopentecostais nesse cenário de crescimento exponencial do conservadorismo?

Sérgio Freire: No Brasil, essas igrejas têm um papel diferenciado na sustentação do discurso de extrema direita e reacionário. Elas desempenham um papel político conveniente, que lhes beneficia política e financeiramente. Historicamente sempre foi assim. Mas, nessa eleição, o uso político das igrejas foi mais aberto e creio que foi porque os benefícios recebidos pelo governo Bolsonaro foram bem maiores. Eles agora vão ter um grande trabalho de se reconstituir a partir do necessário alinhamento com o novo governo.

Revista Casa Comum: Veremos, ainda este ano, um Brasil menos dividido? Isso depende de quê?

Sérgio Freire: Precisamos resgatar a pluralidade como algo desejável na sociedade. Bateu-se muito numa “polarização” que dividiu de fato o país, numa divisão ruim porque é uma divisão que trata o outro como um problema a ser eliminado e não o outro diferente que pode ajudar, na diferença, a construir uma sociedade melhor. Penso que pela desinstitucionalização do discurso da extrema direita, com a saída de Bolsonaro, poderemos avançar nesse processo de recuperação do laço social perdido.

Revista Casa Comum: Por fim, a camisa verde-amarela algum dia voltará a ser um símbolo de todos os brasileiros?

Sérgio Freire: Sem dúvida. O discurso fascista tem como característica a apropriação dos símbolos nacionais por meio de um nacionalismo exagerado. Mas, com o esfarelamento da sustentação do discurso, pelo enfraquecimento de seus alicerces, haverá ressignificação e reapropriação dos símbolos de brasilidade para além de um grupo específico, que o sequestrou. A Copa já ajudou bastante nisso, embora algumas pessoas ainda estendessem a bandeira ressaltando que “É pela Copa, hein!”. O novo clima político do país também vai ajudar, a médio e longo prazos, no resgate de uma brasilidade necessária para o país.

Pela Copa / Carlos Latuff – Brasil de Fato

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