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Publicado em

15/06/2023

[ artigo ] Mulheres negras no sistema de justiça: é preciso dizer o que se cala

“Mil nações moldaram a minha cara Minha voz uso pra dizer o que se cala (...) O meu país é meu lugar de fala” (Trecho de O que se cala, de Elza Soares)

Por Lívia Sant’Anna Vaz*

O assassinato de Marielle Franco, em março de 2018, é um dos casos de violência a defensoras de direitos humanos que segue sem solução e revela violência que mulheres negras enfrentam no Brasil. Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Este artigo deveria ser iniciado com uma citação qualquer da doutrina ou jurisprudência alemãs, demonstrando minha (quase inevitável) adesão aos paradigmas impostos pelo epistemicídio jurídico.¹ Mas se trata de um artigo escrito por uma jurista negra, o que, por si só, já rompe em muitas dimensões os padrões brancocêntricos e androcêntricos da academia jurídica e do sistema de justiça brasileiros. Portanto, escrevo também em primeira pessoa, demarcando meu principal lugar de fala², na condição de mulher negra que integra o sistema de justiça. Sou, desse modo, uma exceção que confirma a regra antidemocrática de exclusão de mulheres negras nos espaços de poder e decisão.

Do racismo institucional – uma das diversas formas de manifestação do racismo –, resulta a reprodução da hierarquização racial da sociedade nas instituições públicas e privadas. Esse fenômeno – tão inerente à sociedade brasileira, que se estrutura em bases racistas/coloniais – evidencia-se no sistema de justiça e se revela ainda mais grave quando associado ao sexismo. Costumo dizer que um dos efeitos mais perversos do racismo é naturalizar ausências. É natural não ter uma promotora de justiça negra no Ministério Público, ainda que seja o da Bahia, cuja capital é considerada a mais negra fora da África. Nossa rara presença, então, causa estranhamento. Não é à toa que, mesmo com quase 20 anos de carreira, sigo respondendo à pergunta: cadê a promotora de justiça?

Raça e gênero são dois dos principais e mais imediatos marcos de identificação de um indivíduo, condicionando suas relações sociais e, até mesmo, o gozo de seus direitos fundamentais. Nessa linha de entendimento, as intersecções entre gênero, raça e classe, como fatores que, historicamente, aglutinam-se na potencialização de vulnerabilidades, precisam ser consideradas também na seara do Direito.

A incontestável – porém, ainda, invisibilizada – sub-representação das mulheres negras no sistema de justiça brasileiro é fator que deve ser reconhecido e debatido, de modo a impulsionar as instituições a assumirem sua responsabilidade pela desconstrução do racismo e do sexismo entranhados em suas estruturas e, consequentemente, em suas práticas.

Nós, mulheres negras, somos 28% da população brasileira e compomos o maior segmento social do país. Em contrapartida, somos apenas 5% da magistratura do Brasil, realidade que se repete em outros órgãos ditos essenciais à justiça.² No Supremo Tribunal Federal, por exemplo, nunca tivemos uma ministra negra, mesmo após mais de 130 anos de sua instituição. Segundo dados do próprio Conselho Nacional de Justiça,⁴ o perfil do nosso Poder Judiciário é branco, masculino, heterossexual e cristão. Como produzir justiça apenas com visões unilaterais sobre igualdade e liberdade?

É preciso romper com o pacto narcísico da branquitude⁵ – base do racismo patriarcal – que também impera no sistema de justiça brasileiro, impondo silêncios e silenciamentos sobre o racismo; produzindo visões parciais (ou unilaterais) e racializadas de justiça, de igualdade e de liberdade; convertendo o Direito, em grande medida, em instrumento de manutenção do status quo e não de efetiva emancipação de todas as pessoas.

Como já dito em outra oportunidade, “não são as mulheres negras que precisam da academia jurídica e do sistema de justiça”. Isso se dá, porque, se chegamos até aqui, não foi com o apoio dessas instâncias, mas com muito sangue e suor ancestrais derramados. Na verdade, são a academia jurídica e o sistema de justiça “que precisam das mulheres negras”.⁶ Dessa maneira, nossa inclusão é medida imprescindível para uma abertura a perspectivas epistemológicas e vivenciais necessárias para a construção de uma justiça pluriversal,⁷ condizente com um Estado que se pretenda Democrático de Direito.

É preciso dizer o que se cala!!! Então, digo que nós não queremos mais uma Justiça de olhos vendados, tal qual a deusa Themis da mitologia grega! Nós precisamos de uma Justiça de olhos bem abertos e atentos a todas as desigualdades que ela precisa corrigir; que enxergue as pessoas como igualmente dignas em suas diferenças. Digo, enfim, que “a Justiça é uma mulher negra, porque Oyá não está vendada; e finalmente estando ela atenta a toda mazela; agora não passa nada!”⁸

(1) VAZ, Lívia; RAMOS, Chiara. A Justiça é uma mulher negra. Belo Horizonte: Letramento, 2021. p. 258
(2) RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento/Justificando, 2017.
(3) CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Perfil sociodemográfico dos magistrados brasileiros. Brasília: CNJ, 2018. Disponível em: bit.ly/CasaComum_E5_27. Acesso em: 10 abr. 2023.
(4) CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2021. Disponível em: bit.ly/CasaComum_E5_28. Acesso em: 10 de abril de 2023.
(5) BENTO, Maria Aparecida Silva. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.
(6) VAZ, Lívia. Eu, mulher negra, não sou sujeito universal. JOTA, 12 ago. 2020.
(7) RAMOSE, M. B. Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Ensaios Filosóficos, Rio de Janeiro, v. 4, out. 2011. Disponível em: bit.ly/CasaComum_E5_29. Acesso em: 13 abr. 2023.
(8) NASCIMENTO, Luciene. A Justiça é uma mulher negra. Poema que abre o epílogo do livro A Justiça é uma mulher negra, 2021.

*Lívia Sant’Anna Vaz é mulher negra, escritora, promotora de justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, nomeada uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo (MIPAD), na edição Lei & Justiça.


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