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Decoloniza

Publicado em

18/09/2023

O cristianismo, em África, não é subproduto da colonização

Argumento que enxerga contradição em se ser africano e cristão é impregnado de uma lógica colonial.

Por Emiliano Jamba A. João

12ª Caminhada Nacional em Defesa da Liberdade Religiosa, na orla de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Enquanto angolano que sou, morando em terras brasileiras, teólogo e professante da fé cristã, não raras vezes me deparei com o seguinte questionamento: ‘você é um preto, angolano e saíste de seu país, de seu continente, para vires ao Brasil estudar teologia e, ainda por cima, teologia cristã?’.

A pergunta implícita a esse questionamento, acompanhado de um estranhamento e de “caras e bocas”, é a seguinte: como é possível um africano ser cristão sem, com isso, trair sua própria cultura? As pessoas defensoras desse tipo de raciocínio enxergam uma espécie de antagonismo entre ser “verdadeiramente africano” e, ao mesmo tempo, cristão, pois, para elas, ser cristão é o mesmo que ser cooptado para a religião do opressor/colonizador branco. Dessa forma, a pessoa negra e africana que assim procede é considerada “vendida”, alienada, ignorante etc., e, portanto, uma “falsa africana”.

Por mais bem intencionadas que estejam as defensoras desse tipo de raciocínio, ele não é de todo correto. Beira uma miopia histórica, já que tal argumento parte da ideia de ser o cristianismo, em solo africano, um subproduto da colonização. Argumento este insustentável, sobretudo, a nível histórico, pois o cristianismo em solo africano é anterior aos processos de colonização.    

Dizer isso não significa incapacidade de reconhecimento do cristianismo a serviço da colonização. De fato, em algum momento da história, o cristianismo, em conjunto das teorias raciais e do pacto narcisista ocidental, serviu de base para a implementação do denominado processo civilizatório, que é, em última instância, um processo de alienação, de subjugação e de morte do ser ontológico. Contudo, o reconhecimento disso não pode nos levar (enquanto negros(as) e africanos(as)) ao abandono do cristianismo, com a única e exclusiva justificava de ser essa uma religião branca, opressora e ocidental. Afinal, esse mesmo cristianismo, promotor de todos os tipos de opressões, foi o que esteve igualmente na base de vários processos revolucionários africanos que desembocaram na luta libertária por autonomia africana. 

Do ponto de vista de agenciamento dos africanos no curso da história, o argumento que enxerga contradição em se ser africano e cristão é impregnado de uma lógica colonial: a da tabula rasa, da estaticidade cultural africana, da inimizade e, consequentemente, da docilidade africana. Com base nessas lógicas, não leva-se em conta a indocilidade do signo africano que o camaronês Achille Mbembe advoga, muito menos a autonomia do agenciamento cultural/religioso da pessoa negra africana rumo a uma africanização do cristianismo ou a um devir africano negro no mundo

A fim de sermos fiéis para com a agência africana, precisamos, urgentemente, percorrer por um pensamento decolonial ou pós-colonial, que nos leve a um habitat dos comuns, onde o signo africano não se constitua num elemento antagônico do cristianismo e vice-versa. Nesse novo habitat, tanto o signo africano quanto o cristianismo estão em permanente conversação, pois ambos se encontram a serviço da promoção da vida em comum-unidade

Ser africano(a) e cristão(ã) não significa a inexistência de elementos culturais/religiosos africanos no ser ontológico, mas sim uma forma de se adaptar às referências do novo contexto e de situações nas quais eles se inscrevem como “potencialidade mobilizável ou não e como recurso maleável ou não no seio de uma dada estrutura restritiva”. Assim, ao falarmos de cultura religiosa ou de memória ancestral, não necessariamente estamos falando de originalidade como as interrogações iniciais nos fazem crer, mas de “realidades imaginadas e de estruturas de vivências comunitárias que propiciam a existência da vida em sua total plenitude.

Referências bibliográficas
¹Cf. BAUR, John. 2000 anos de cristianismo em África: uma história da igreja africana. Prior Velho: Paulinas, 2014; ODEN, Thomas C. Quão africano é o cristianismo? tradução Samuel Lima. — 1. ed. — São Paulo: Editora Quitanda, 2022. SLENES, Robert W. Africanos Centrais. In. SCHWARCZ, Lilia Moritz; GOMES, Flávio dos Santos (Org). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras, 2018; ASSANTE, Molefi Kete. A história da África: a busca pela Armonia eterna. Petrópolis, Rj: Vozes, 2023. Se os dois primeiros nos ajudam a compreender a fase inicial do cristianismo em solo africano, os dois últimos acrescentam que a grande novidade que o tráfico negreiro trouxe ao continente africano não é a introdução do cristianismo neste universo, mas a perversão deste; tornando-o em um instrumento de controle para o continente (ASSANTE, 2023, p.678).      
²Ver. MUDIMBE, V.Y. A invenção da África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Petrópolis, Rj: Editora Vozes,2019,  Cp.3 pp 84 – 167 ; DONDERS, Joseph G. evangelizar ou colonizar? Experiências africanas de Jesus. São Paulo: Paulinas, 1987
³MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: editora Antígona, 2017. 2ª ed.
COMAROFF, J.; J. L. Of Revelation and Revolution. Christianity, Colonialism and Consciousnes. in South Africa, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1991, vol.1 e 2; SILVA, Teresa Cruz. Igrejas protestantes e consciência política no sul de Moçambique: o caso da Missão Suíça (1930-1974). Maputo: CEDIMA, 2001; SCHUBERT, Benedict, A Guerra e as Igrejas: Angola 1961-1991, P. Schlettwein Publishing Switzer- land 2000.
MBEMBE, Achille. África Insubmissa: Cristianismo, poder e Estado na sociedade pós-colonial. Luanda: Edições Mulemba, 2013.
MBEMBE, 2013, p.58
NETO, Maria da Conceição. A memória como matéria inflamável: reflexões a partir do caso angolano. Revista mulemba da faculdade de ciências sociais da UAN. Luanda. 2016.

Emiliano Jamba A. João é angolano, teólogo, jurista, Mestre e doutorando em História Social pela Unicamp. Membro do GT Teologia e Negritude, vinculado à FTL/Campinas. Coautor dos livros Teologia e Negritude (2019), Teologia africana em perspectiva (2020) e Teologias africanas em diálogo com as teologias latino-americanas (2022).

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