Publicado em
15/06/2023
Por Eliete da Silva Pereira*
Foto: Reprodução Instituto Catitu
Nos últimos anos, os povos indígenas brasileiros vêm incorporando as tecnologias digitais em seus cotidianos, promovendo uma atuação comunicativa nas redes digitais, condizente com a complexificação da atuação em rede ameríndia. O aparecimento da internet e dos dispositivos de conexão, seus aspectos pervasivos e onipresentes difundidos em escala global, tornaram-se os vetores do processo de digitalização do qual territórios, pessoas e coisas se (info)materializam. Ao fazerem parte desse contexto informacional, os povos indígenas experimentam a complexificação das suas práticas comunicativas, primordialmente conectivas entre os seus diversos planos cosmológicos (visíveis e invisíveis).
No país, tal processo de digitalização ocorreu com maior abrangência através das iniciativas de organizações não governamentais e de organizações governamentais executoras de políticas públicas, principalmente pelo Programa Governo Eletrônico – Serviço de Atendimento ao Cidadão (GESAC) e Pontos de Cultura Indígena (2007-2016).
Foto: Reprodução Instituto Catitu
Estudos sobre os usos da internet por parte dos indígenas realizados por cientistas sociais, historiadores e antropólogos apontam para uma inserção dessas populações na cultura digital. No entanto, não existem estatísticas oficiais mais detalhadas sobre o uso indígena da internet e quantas são as aldeias que possuem conexão, mas experiências significativas denotam um processo inovador de práticas midiáticas de relações com os outros e de reflexividade cultural, de tradução e visibilidade de saberes e culturas locais, respondendo ao fortalecimento dos seus patrimônios culturais.
A presença indígena brasileira na internet coincide com o crescimento da web no país a partir dos anos 2000. Atualmente os conteúdos e interações de povos e sujeitos indígenas brasileiros ocorrem sobretudo nas redes sociais (Facebook e Instagram) e em aplicativos de mensagem instantânea (WhatsApp). É por meio desses ambientes que conseguimos acessar a articulação e a mobilização das mulheres e jovens indígenas, a exemplo dos perfis das ativistas Txai Suruí, Sâmela Saterê-Mawe, entre outras.
Concomitantemente a isso, surgiram as tecnologias de monitoramento do território e projetos indígenas de gestão ambiental (o uso de GPS pelo povo Munduruku para a autodemarcação, o Mapa Cultural Suruí, o projeto Escuta da Floresta do povo Tembé). Em adição, as tecnologias digitais também estão sendo incorporadas pelos povos indígenas na salvaguarda dos seus conhecimentos e saberes (Centro de Documentação Digital, Casa de Cultura Mawo – povo Ikpeng). Essas experiências indicam o protagonismo, a visibilidade, o fortalecimento cultural, a luta, a resistência e o ativismo em rede desses povos.
Os povos ameríndios vivem intensas transformações em seus modos de vida. A cultura é dinâmica e os ocidentais ainda pensam que os indígenas cabem às imagens produzidas no passado. Nas redes digitais, podemos visualizar e fazer redes com esses sujeitos que constantemente reescrevem suas histórias, se conectam com outros mundos, se reelaboram e reatualizam com o digital e suas cosmologias, evidenciando o papel deles no mundo para além da afirmação das suas diferenças.
Para compreender o significado e as qualidades do processo de digitalização, é fundamental situarmos a dimensão cultural dessas populações que, de forma distinta das ecologias da pólis e do universo epistêmico e dialético ocidental (humano-técnica; humano-natureza; técnica-natureza), habitam, desde sempre, ecossistemas reticulares e interconectados. Nessa complexidade reticular, é que se insere o processo de digitalização, o que torna a constituição das suas redes sociotécnicas uma expansão do conjunto de redes já existentes.
Portanto, as redes digitais ameríndias conectam o âmbito social e relacional e estendem-se ao nível biológico, assumindo assim um significado que supera a simples dimensão técnica-instrumental desse processo. O processo de digitalização dos povos indígenas no Brasil deve ser lido não como uma intervenção externa, mas como a extensão e a tradução disto em direção à experimentação de linguagens audiovisuais, digitais e conectivas.
O acesso às redes digitais por parte desses povos, historicamente silenciados e excluídos da esfera pública “democrática”, significou um novo tipo de protagonismo, que permitiu a eles o direito à palavra pública, sem intermediários, e a possibilidade de tecer redes e contatos com outros povos em nível nacional e internacional, realizando um ativismo que resultou na constituição de um movimento transnacional que hoje conta com diversos artistas, escritores, intelectuais, videomakers e ativistas em várias áreas. A voz e as culturas desses povos são hoje vivas, resistentes e atuantes nas redes digitais.
*Eliete da Silva Pereira é historiadora pela Universidade de Brasília (UnB) e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Desde 2010, coordena, no Centro Internacional de Pesquisa Atopos, a linha de pesquisa “Tekó”, que estuda os significados da digitalização pelos povos ameríndios no Brasil. É coautora do livro Redes e ecologias comunicativas indígenas (Paulus, 2017). Atualmente é Pós-doutoranda do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. O centro internacional de pesquisa Atopos é uma rede de pesquisadores de diversas áreas que estudam as complexidades das redes digitais e seus impactos na construção de novas ecologias e de um novo formato de comum.
Editorial da 5ª edição da Revista Casa Comum.
Publicado em
15/06/2023
Mais de oito mil indígenas particiram do ATL em Brasília no ano passado. Foto: Edgar […]
Publicado em
19/04/2023
Em conversa com a Revista, ela abordou temas que devem ser priorizados no novo governo
Publicado em
05/12/2022