Publicado em
05/12/2024
Em uma análise da Carta Encíclica Laudato Si’, de autoria do Papa Francisco, Luiz Marques aponta que a ideia de ecologia integral como um dos apelos mais lúcidos e prementes em favor da sobrevivência da vida.
Por Luiz Marques
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Vastas e crescentes regiões do Planeta Terra estão se tornando mais e mais hostis à humanidade e a milhões de outras formas de vida. Os tímidos avanços (quando existem) para mitigar a interferência antrópica deletéria sobre o sistema Terra têm sido insuficientes para ao menos desacelerar a desestabilização do sistema climático e diminuir a taxa de extermínio da diversidade e da abundância das espécies.
Agravam-se também a poluição químico-industrial do Planeta, as crises sanitárias, as desigualdades sociais, as guerras e os genocídios.
O ódio entre humanos, os riscos existenciais, inclusive nucleares, e a guerra de todos contra a Natureza atingem hoje níveis sem precedentes na história da humanidade. A destruição das mantas vegetais, florestais e outras, pela expansão avassaladora do agronegócio globalizado, não tem precedentes desde o fim da Era Mesozoica, há 65 milhões de anos. Segundo o Global Forest Watch, entre 2016 e 2022, a área global de perda de cobertura arbórea deu um salto de patamar e permanece desde então constantemente entre cerca de 23 e 29 milhões de hectares (230 a 290 mil km2) por ano, sendo que nessa espiral destrutiva, a participação dos incêndios é cada vez maior.
A perda de abundância populacional de espécies vegetais e animais, e suas taxas de extinção, atingiram o nível de um evento maior nos últimos 450 milhões de anos da história da vida no Planeta. Esse evento é chamado a Sexta Extinção em Massa de Espécies. Ele está mutilando, sob nossos olhos, a árvore da vida em todas as regiões do globo.
O uso crescente de agrotóxicos está intoxicando os organismos e extinguindo catastroficamente os invertebrados, que compõem a grande maioria das espécies animais e são essenciais para os processos de polinização e o funcionamento geral dos ecossistemas. Sobretudo, o clima relativamente estável do Holoceno (os últimos 11.700 anos) terminou. O sistema climático, outrora relativamente benigno e previsível, está se transformando em uma máquina de catástrofes.
Isso posto, nós, os humanos, não estamos inertes, diante do colapso socioambiental em curso. A cada ano que passa, iniciativas convergentes de resistência à degradação do tecido social, às guerras e à destruição da Natureza têm engajado os setores mais diversos das sociedades: as populações originárias das Américas, os movimentos de trabalhadores rurais sem terra (MST) e sem teto (MTST), os contingentes dos excluídos das grandes cidades, os pequenos e médios agricultores da agroecologia, os veganos e vegetarianos, as feministas e os que lutam pelos direitos humanos e das outras espécies, os que se insurgem contra o patriarcalismo, o racismo e a homofobia, enfim, os jovens pela justiça climática e pelos direitos da Natureza.
Nesse contexto, sobressai a contribuição imensa da Igreja Católica, inspirada pela Encíclica Laudato Si’. Sobre o Cuidado da Casa Comum, sob a liderança do Papa Francisco. Publicada em 2015, essa Encíclica toma seu nome do Cantico delle Creature, de São Francisco (c.1181 – 1226): “Louvado seja, meu Senhor, com todas as tuas criaturas” (Laudato si’, mi’ Signore, cum tucte le tue creature).
O Papa Francisco afirma no texto da Encíclica que o santo de Assis é “o exemplo por excelência do cuidado pelo que é débil e de uma ecologia integral, vivida com alegria e autenticidade” (LS 10). A ideia de ecologia integral está entre os apelos mais lúcidos e prementes de nossos dias em favor da sobrevivência da vida. A linguagem científica diz algo equivalente quando se refere às leis e às condições imperativas para a conservação da biosfera e dos ecossistemas.
Concretamente, o cuidado da Casa Comum e ecologia integral implicam a extensão do estatuto de sujeito de direito a outras entidades vivas e mesmo às paisagens naturais. As palavras Cosmos (em grego) e Mundus (em latim) significam, ao mesmo tempo, ordem e beleza. Os seres humanos não podem se sentir no direito de destruir a ordem e a beleza do mundo, pois não sabem como reconstruí-las. Essa é, essencialmente, a crítica dessa Encíclica ao comportamento atual das sociedades em relação à “irmã Terra”: “Crescemos pensando que éramos seus proprietários e dominadores, autorizados a saqueá-la” (LS 2).
É preciso, assim, restaurar a possibilidade de que uma dimensão central do mundo permaneça separada dos mercados. Separada, no sentido designado pelo termo latino sacer: aquilo que não pode ser tocado sem ser maculado ou sem macular. A Natureza, de que somos parte, precisa ser considerada como uma sacra domus, ou seja, um espaço de vida no qual impera o senso do limite.
Ressacralizar o limite é deixar de considerá-lo como um obstáculo a ser “vencido” e passar a reconhecê-lo como um traço definidor de nossa inteligência. A maior demonstração do poder humano é o poder de limitar seu próprio poder. Tal é, para mim, a mensagem central desta Encíclica.
*Luiz Marques é historiador de arte, ex-curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo e diretor do Instituto de História da Arte do museu. Um dos fundadores do programa de pós-graduação em História da Arte da Universidade Estadual de Campinas, onde atualmente exerce o cargo de professor de História Medieval e Moderna no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
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