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Papo reto

Publicado em

19/06/2024

“Uma cidade pensada no bem viver teria pessoas e natureza no centro da sua construção”, defende especialista

Rodrigo Iacovini, diretor-executivo do Instituto Pólis, analisa que uma cidade pensada a partir do Bem Viver alia aspectos humanos, naturais, econômicos e materiais.

Por Maria Victória Oliveira

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O Brasil é conhecido por ser um país de dimensões continentais. Muito se fala nos muitos “Brasis” que existem entre o Oiapoque, município no Amapá – um dos mais extremos ao norte do país – e o Chuí, no sul do Rio Grande do Sul. Trazendo essa máxima para a realidade das cidades, é praticamente impossível definir necessidades comuns a todos os municípios, muito diferentes em características e demandas.

Um movimento importante, entretanto, e que deveria ser comum a todas as cidades, sejam as de mil, sejam as de mais de um milhão de habitantes, é pensá-las a partir do ponto de vista de uma conciliação, ou seja, que o espaço urbano consiga aliar a garantia de direitos de sua população sem deixar de lado o respeito ao fluxo natural do meio ambiente.

Ter um melhor planejamento urbano, de preferência com o pensamento ecológico como um de seus pilares, ajudaria a garantir uma série de direitos à população, já que cidades são sistemas interligados. Mais espaço verde, por exemplo, ajudaria a drenar as águas das chuvas – evitando enchentes e inundações – e melhoraria as condições respiratórias das pessoas, além dos benefícios à saúde mental.

Esses mesmos espaços verdes podem servir como hortas urbanas que geram renda e fornecem alimentos à população local, além de promover um senso de comunidade. O investimento em meios de transporte coletivos – metrô, ônibus e trens – reduz não só o número de carros na rua, mas também as emissões de gases que poluem e contribuem ainda mais para as mudanças climáticas.

Com o objetivo de entender qual é o ponto de partida da perspectiva do Bem Viver – conceito herdado de povos originários e de filosofias africanas para definir um contexto de garantia plural de direitos humanos e respeito à natureza – para pensar a vida nas cidades brasileiras, a Revista Casa Comum conversou com Rodrigo Faria Iacovini, diretor-executivo do Instituto Pólis, organização da sociedade civil com quase 40 anos de atuação que pauta e busca fortalecer a luta pelo direito à cidade a partir de pesquisas, formações e assessorias técnicas.

Em entrevista exclusiva, Rodrigo, que também é membro do Conselho Nacional das Cidades, do Conselho Municipal de Política Urbana de São Paulo e integrante da coordenação do Fórum Nacional da Reforma Urbana e a Habitat International Coalition (HIC), apontou a urgência de soluções de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos espaços urbanos, bem como a centralidade da redução das desigualdades em prol do avanço do país. Confira a seguir.

Rodrigo Iacovini. Foto: Renata Teixeira

Rodrigo Iacovini: Temos um processo de produção das cidades que, infelizmente, é baseado no sistema capitalista. A forma como o espaço urbano se desenvolve tem servido muito mais à geração de lucro para diferentes setores dominantes da sociedade, em detrimento da efetivação de direitos da população. Segundo a Constituição Federal e o Estatuto das Cidades, temos que fazer planos diretores participativos e discutir o zoneamento com a população. Mesmo nesses processos participativos, partimos da lógica da propriedade privada individual registrada. É uma organização que se dá em função do valor de troca do espaço urbano, e não do valor de uso. E essa já é a principal diferença entre a cidade construída com o fim de gerar lucros e dividendos, versus uma cidade construída para o Bem Viver, que quer beneficiar a todos e se entender como parte do ambiente natural e do ambiente construído. São lógicas muito diferentes. É por isso que o Instituto Pólis defende o direito à cidade a partir da concepção do Bem Viver, porque acreditamos que só será possível alcançá-lo se ressignificarmos o processo de produção delas. Ou seja, se passarmos a desenvolvê-las a partir dessa visão, que é coletiva, holística, harmônica e muito mais ampla do que o individualismo e o capitalismo requerem.

Rodrigo Iacovini: O Instituto Pólis tem uma trajetória de engajamento de mais de 36 anos no campo da luta pela democratização das políticas urbanas. Participamos da criação da Carta Mundial pelo Direito à Cidade, um documento elaborado por movimentos populares urbanos do mundo inteiro em diferentes fóruns sociais mundiais do começo da década de 2000, com um processo de partilha para tentar chegar a uma formulação de direito à cidade pactuada por aqueles atores. Ao longo dos anos, percebemos que cada um se apropriou de maneira diferente da Carta, ao que notamos a necessidade de criar uma articulação internacional que, de novo, trouxesse as pessoas para discutir uma nova versão do direito à cidade. Em 2014, promovemos a fundação da Plataforma Global pelo Direito à Cidade, uma articulação de mais de 200 organizações do mundo inteiro que, de alguma maneira, defendem o direito à cidade, mesmo que sob perspectivas diversas. Fizemos uma discussão e a Plataforma chegou a uma nova forma de enxergar o direito à cidade. Como são mais de 200 organizações, tínhamos que comportar diferentes visões e argumentações. Quando pensamos essa formulação no Pólis, entendemos que, apesar de concordar e pactuar com essa nova visão de direito à cidade, ela não necessariamente dá conta do direito à cidade que lutamos aqui no Brasil, com suas particularidades sociais, urbanísticas, econômicas e políticas que não são as mesmas no mundo inteiro. Temos, por exemplo, a dimensão racial, com uma estruturação racista e segregação urbana históricas.

Diante disso, quisemos formular uma visão mais contemporânea com os desafios e as lutas do campo urbano do Brasil. Assim, chegamos nessas cinco dimensões, com um equilíbrio de dimensões materiais, políticas e simbólicas. Essa é uma concepção que montamos internamente, sem a pretensão de que outros adotem essa formulação. O direito à cidade pode ter várias frentes e dimensões diferentes de acordo com a luta que cada organização exerce. E isso é uma fortaleza, porque traz para perto pessoas e coletividades que pensam de maneira diferente, gerando uma sinergia entre lutas sociais e reivindicações.

Rodrigo Iacovini: Para alcançarmos cidades que sejam democráticas, inclusivas e de fato boas de morar para toda a população, precisamos repensar todo o ciclo econômico da sociedade. O capitalismo, além de individualista, se baseia nas desigualdades estruturais: de raça, de gênero e, principalmente, na desigualdade econômica. A ideia de que você pode melhorar de vida dentro do capitalismo é uma ilusão, pois ele depende da concentração de riqueza por alguns enquanto exploram outras pessoas.

Para o direito à cidade, precisaríamos adotar a perspectiva de uma economia solidária, que se baseasse nos laços de solidariedade, igualdade e de desenvolvimento comum de uma ação econômica que beneficiasse a todos. Ou seja, que repartisse riqueza, e que juntos, juntas e juntes, se produzissem outros bens, outra forma de consumir, outra forma de existir nas cidades, de maneira, inclusive, circular, para reaproveitar melhor os insumos, reciclar, reutilizar, que os bens sejam mais duráveis e que a gente não esgote os meios naturais que são a base da nossa produção econômica.

Isso tudo requer uma economia circular e inclusiva, que seja repensada a partir das desigualdades, por exemplo, de raça e de gênero, para equalizar essas relações, com o fortalecimento de mulheres, de pessoas negras e de pessoas trans, que muitas vezes foram alijadas dos processos econômicos de produção da cidade e do capitalismo em geral, que se beneficiou dessa desigualdade.

Rodrigo Iacovini: Uma cidade justa seria aquela na qual as pessoas estão no centro, com seus direitos atendidos. Isso significa que a pessoa tem acesso pleno aos diferentes espaços e equipamentos da cidade, com uma boa condição de obter renda e trabalho, que é uma cidade pensada a partir da perspectiva dos cuidados – que devem ser compartilhados –, que a criança, idoso e demais pessoas que precisam do cuidado estivessem no centro. Na minha cidade ideal, teríamos um transporte a partir da dimensão coletiva e pública, não teríamos tantas pessoas presentes no sistema de saúde por conta de doenças respiratórias ou pela falta de esgotamento sanitário.

Uma cidade construída a partir da perspectiva do Bem Viver é harmônica com os bens naturais, ela entende como a bacia hidrográfica funciona e, a partir disso, escolhemos os lugares de moradia de todos de acordo com os melhores locais, individualmente, mas também para que a natureza continue fluindo, porque somos parte dessa natureza. É outra forma de pensar. Isso exige reequacionar, por exemplo, a forma de organização das cidades, não só dentro do município. A bacia hidrográfica não é contida por um município, ela tem uma dimensão regional muito maior. Jamais teríamos tamponado [obstruir com um tampão; tapar] os nossos rios como fizemos em São Paulo. Ao invés de se aliar, de se submeter e entender que a natureza era a condição a partir da qual deveríamos desenvolver as cidades, o urbanismo modernista tentou vencer a natureza. E o que ela está nos mostrando é que, nessa queda de braço, nós perdemos feio se não entendermos que somos pequenos e apenas parte desse sistema mais amplo. Essa cidade pensaria pessoas e natureza no centro da sua construção.

A 3ª edição da Revista Casa Comum colocou em pauta a questão: “Há espaço para uma nova economia brasileira?”. Denominada EcoSol, a economia solidária é uma das principais alternativas do campo democrático e popular do Brasil para combater as profundas desigualdades sociais que marcam o país. A editoria Na Prática traz exemplos de iniciativas que propõem outras formas de produzir e consumir, como cooperativas, associações, empreendimentos autogestionados, redes de cooperação, finanças solidárias, bancos comunitários, cooperativas de crédito, clubes de trocas, entre outras modalidades organizadas no campo e na cidade.

>> Confira as experiências: bit.ly/RCC_3_NaPratica

Rodrigo Iacovini: Não podemos dar as costas para o desenvolvimento tecnológico, mas devemos entender que essas tecnologias produzidas socialmente devem ser usadas e servir ao bem-estar e ao bem comum. Muitas vezes caímos na armadilha de usar tecnologias fomentadas por grandes grupos e conglomerados que estão se beneficiando da dimensão especulativa da cidade. Então é, sim, possível usar a tecnologia a favor do desenvolvimento urbano integrado e sustentável para cidades que sejam baseadas no Bem Viver, desde que a gente tenha noção de que é uma tecnologia feita para e em benefício do bem comum, e não voltada ao lucro de algumas parcelas da sociedade.

Também precisamos entender que tecnologias não são unicamente aquelas que estão dentro do computador ou do celular. Tem muita tecnologia e muito saber dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, desenvolvidos muito antes de qualquer português chegar ao Brasil. Também devemos considerar o termo soluções baseadas na natureza como uma das possibilidades, desde que não vire mais uma moda e consultoria a ser vendida.

Rodrigo Iacovini: Uma das coisas com maior efeito é simplesmente suspender desmatamentos que acabam com áreas verdes ou com terras nuas da nossa cidade. Ao impermeabilizar o solo, nós impossibilitamos que ele absorva a água que vem da chuva. Ou seja, precisamos colocar um freio no mercado imobiliário e ampliar os espaços de respiro da terra, como parques e locais de uso comum para hortas, porque, ao mesmo tempo que abre espaço para a água drenar, também gera alimento para a população. Outra medida é a aposta na mobilidade coletiva. Além de diminuir os gases do efeito estufa, isso reduz o deslocamento individual por carros, que, por sua vez, diminui o espaço que os carros ocupam, dando lugar às áreas verdes ou à mobilidade ativa da população.

Temos também o óbvio, que é o investimento e manutenção de infraestruturas de drenagem urbana. Mas isso não adianta nada se não olharmos para as políticas dos nossos rios, o que passa por tentar reverter a retificação e os tamponamentos que fizemos, pensando em dar outros usos para as áreas de várzea e de margem. Outra questão que pode parecer óbvia é investir para a produção de habitações dignas e de qualidade ou aproveitar habitações que, em muitos casos, estão vazias porque são destinadas a especulação imobiliária, para que sejam usadas pela população pobre, que muitas vezes vive em áreas vulneráveis a enchentes e deslizamentos. Investir em moradia digna é uma das maiores medidas de adaptação climática que podemos fazer.

Rodrigo Iacovini: Não podem faltar nos planos de governo medidas que enderecem adaptação e mitigação em relação à crise climática. Estamos vendo o caso agora do Rio Grande do Sul, como já vimos o do litoral norte de São Paulo, o do Rio de Janeiro, da Bahia e da região Norte. A situação de emergência é algo que vai ser recorrente em nossas vidas. Essa tem que ser a prioridade um. Todas as outras políticas urbanas têm que ser contempladas a partir desse viés e do combate às desigualdades. Você deve olhar se o seu candidato ou candidata está falando de cidade a partir de torná-la melhor para quem vive nos territórios periféricos, porque você pode morar confortavelmente em uma área superinfraestruturada e central, mas a cidade não vai ser boa para você enquanto também não for boa para pessoa que está no território periférico com infraestrutura precária, porque estamos falando de um sistema que, quando uma parte não está legal, ela afeta o todo. É por isso que falamos do Bem Viver enquanto paradigma. Se o seu candidato ou candidata fala frases como “precisamos acelerar o mercado imobiliário como fonte de renda e de trabalho e de desenvolvimento econômico”, fuja. É claro que precisamos dos postos de trabalho que a construção civil oferece. A grande questão é que isso não pode ser o centro da nossa atuação política em torno das cidades. Outra questão é se o candidato ou candidata traz a importância da economia do cuidado. Estamos falando de pessoas cuidadoras, não necessariamente mulheres, porque isso historicamente tem recaído para as mulheres, mas temos que nos responsabilizar socialmente pelo cuidado, entendendo que um território de cuidados é importante.

A construção da resiliência urbana

Rodrigo Iacovini: Para identificar se um candidato é bom ou não, devemos observar o ponto de partida que ele ou ela usa para tentar incidir nessa questão. Se falarem em “mais polícia na rua e repreender os bandidos”, fuja também. Mas se falarem em “promover direitos, reduzir desigualdades, tornar as cidades lugares melhores para as pessoas viverem o espaço público”, é um candidato ou candidata para você prestar atenção. Já está provado que maior repressão policial e militarização só torna o espaço mais inseguro. Precisamos fugir de candidatos que, em geral, dão soluções fáceis para todos os temas. Reverter todo o processo de produção das cidades não vai ser fácil e não tem solução mágica, mas, com certeza, passa pela garantia de direitos, como o direito à moradia, à mobilidade, à água, porque esses são os fundamentos básicos de uma boa gestão pública municipal.

Rodrigo Iacovini: É essencial a consolidação de uma política nacional e de um sistema nacional de desenvolvimento urbano que possibilite que a União, os Estados, os municípios e a sociedade civil, juntos, definam o que é prioritário em cada território, já que, dentro de uma mesma cidade, há diferenças entre espaços e regiões. E a partir dessa definição sobre o que precisa e deve ser feito, dividam responsabilidades: o que cabe à União, ao Estado, aos municípios, e quem financia cada uma dessas coisas. Essa política nacional de desenvolvimento urbano está em discussão no Ministério das Cidades, dentro do Conselho Nacional das Cidades. Sem isso, não vamos conseguir avançar. Estamos lutando para que ela seja realmente flexível e adaptável a cada território de cada cidade, porque senão ela não vai atender o objetivo a que se propõe. Se tivermos essa política nacional, juntamente com um sistema nacional de desenvolvimento pactuado por todos os municípios, Estados, pelo governo federal e pela sociedade civil, vai ser muito mais flexível do que o formato que é hoje, por meio do qual o governo federal estabelece programas e diretrizes e todos os municípios devem se submeter de maneira rígida. Mas é importante que essa política tenha o direito à cidade no seu centro e não o lucro ou a produção capitalista da cidade. Essa é uma disputa que ainda precisamos fazer.

Rodrigo Iacovini: Nós começamos a campanha na eleição de 2022, querendo pautar que a população votasse em mulheres negras, indígenas e LGBTQIA+. Esse grupo social é quem mais sofre com a segregação urbana e com a má qualidade do ambiente urbano. Então, é também quem está mais sensibilizado para fazer essa mudança quando chega ao poder. Se elegemos essas pessoas, temos uma chance muito maior de reverter a desigualdade que estrutura nossas cidades.

Rodrigo Iacovini: Começamos uma campanha em prol de cidades justas em uma eleição no nível estadual e federal, porque queríamos abrir a discussão para chegar em 2024 mais fortalecidos, pensando quais temas eram importantes tanto do ponto de vista da gestão pública estadual e nacional, quanto da gestão municipal. Esse ano, vamos continuar e aprofundar a campanha, visando a eleição de mulheres negras, indígenas e LGBTQIA+ para as câmaras municipais para reverter as desigualdades dos espaços urbanos.

Estamos falando de trabalho decente e salário digno; de moradia adequada para quem mais precisa; de suspender despejos e remoções forçadas; de justiça climática e socioambiental como parâmetro das políticas; de comida saudável para todas as famílias; do direito à vida no espaço público e dos territórios; de energia limpa e preço justo; resíduo zero; e mobilidade. São temáticas que as políticas municipais precisam enfrentar. Vamos trazer novas propostas e reivindicações dentro desses temas da campanha, porque ainda estamos longe de alcançar esses pontos que lançamos há dois anos. Então, eles permanecem nossas bandeiras de luta.

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