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Publicado em

24/08/2022

[ artigo ] Ventos do Sul: aprendizados dos países vizinhos inspiram alertas

A rebeldia sul-americana caberá nas urnas?
Artigo de Fabio Luis Barbosa dos Santos, professor da Unifesp, escritor e doutor em História Econômica pela USP.

O ponto de partida dessa reflexão é constatar um denominador comum entre alguns países da América Latina que podem inspirar movimentos para o campo democrático brasileiro.

Colômbia, Peru e Chile são os países que remaram na contramão da onda progressista sul-americana no início do século XXI, momento em que a maior parte da região elegeu presidentes identificados com uma reação ao neoliberalismo, como Chávez, Lula, Kirchner, Vázquez, Morales e Correa. Constata-se, portanto, que as rebeliões eclodiram nos países em que o progressismo é mais débil como alternativa eleitoral, enquanto, nos países da região que foram ou ainda são presididos pelo progressismo, não houve rebelião.


Colômbia

Francia Márquez e Gustavo Petro venceram as eleições gerais na Colômbia e são os primeiros governantes progressistas a ocupar a presidência do país. Foto: Juan Pablo Pino / AFP

A Colômbia pode ser vista como o outro lado da moeda da autocracia burguesa, porque, nesse país, ao contrário do Paraguai, a alternância partidária tem sido a regra desde o século XIX. Já houve quem enaltecesse a democracia colombiana, uma vez que o país praticamente escapou às ditaduras militares na Guerra Fria. No entanto, a Colômbia vive um padrão extraordinário de violência política desde os anos 1940, que produziu o conflito interno mais longo da história contemporânea, protagonizado por guerrilhas ativas desde os anos 1960.

Nesse quadro, um estado de exceção permanente foi a outra cara da liberalidade eleitoral. Colômbia e Peru são os dois países sul-americanos onde a sobrevivência de guerrilhas nos anos 1990 serviu de pretexto para políticas repressivas que criminalizaram toda a dissidência, e ajudam a explicar porque, nesses países, não houve maré rosa.

Na realidade, no início do século XXI, a Colômbia encarnou o oposto do progressismo. O presidente Alvaro Uribe (2002-2010) surfou na retórica da “guerra ao terrorismo” que se globalizou após o ataque às torres gêmeas dos EUA, em 11 de setembro de 2001, e fez, do terrorismo de Estado, uma política popular. Ao longo de dois mandatos, envenenou o debate público e deslocou o centro político para a direita.

Desde então, a razão contrainsurgente do Estado colombiano ficou patente na extraordinária brutalidade policial contra o motim popular que eclodiu em abril de 2021, detonado por um pacote de reformas impopulares do governo, em plena pandemia. Como diziam os manifestantes em cartazes que viralizaram na região, se o povo está nas ruas, é porque o governo é mais perigoso do que o vírus.

Qual o entendimento possível neste mundo? Um mundo no qual o estado viola sistematicamente a institucionalidade na qual se escora, a pretexto de defendê-la? Em que o dissenso consentido é aquele inofensivo, enquanto qualquer dissenso eficaz, é criminalizado? Nessa realidade, “paz” só pode ser um eufemismo para uma guerra permanente, na qual apenas um dos lados está armado.

Qual o lugar do progressismo neste mundo? O progressismo emerge como um clamor por decência, onde há pouca decência a oferecer. É esperança, em um mundo desesperado. É também um último recurso para manter a ordem, antes que a desordem se torne incontrolável. O progressismo é a paz possível, em meio à guerra.

O episódio mais recente na política colombiana foi a eleição de Gustavo Petro e sua vice Francia Márquez Mina para o ciclo de 2023 a 2026, com 50,44% dos votos no segundo turno, contra o empresário Rodolfo Hernández, candidato populista de direita.


Peru

Pedro Castillo, professor e sindicalista, teve uma vitória apertada nas urnas

Se a Colômbia foi pioneira na política do ódio, foi no Peru que se levou ao paroxismo a relação, sempre tênue e mal resolvida, entre democracia e ditadura no continente. Alberto Fujimori (1990-2000) ambicionou uma ditadura, por meios democráticos. É certo que o “chino” não foi eleito com esse programa. Na realidade, o presidente que implementou a agenda do ajuste estrutural por meio do chamado “Fujishock”, teve como lema de campanha “Vote no al shock!”.

Naquele momento, reinava um clima de desordem no país, entre a desorganização da economia decorrente das ambiguidades apristas sob Alan García (1985-1990), e a intensificação das ações do Sendero Luminoso, na capital, Lima – grupo armado que perverteu a utopia guerrilheira. Em suma, havia um clima propício para o que Naomi Klein (2007) descreveu como “capitalismo de desastre”, cuja versão peruana envolveu uma relação simbiótica entre presidência e exército, consumada no “autogolpe” de 1992, quando Fujimori dissolveu o parlamento e interveio no judiciário.

O drama é que o choque estabilizou a economia, enquanto o terrorismo de estado liquidou o Sendero: aos olhos de muitos, o presidente colocou ordem na casa, o que explica, em parte, a popularidade herdada por seus filhos. Esse regime também assentou os fundamentos do extrativismo mineiro que impulsiona o país desde então, ao mesmo tempo em que se acentuou a corrosão do tecido social, nutrindo a economia delitiva.

Mas Fujimori também estabeleceu o padrão na política ao inaugurar o estelionato eleitoral. Desde o fim do regime militar, nos anos 1970, nenhum presidente elegeu seu sucessor no Peru – o que significa que sempre venceu um candidato da oposição. Essa continuidade na alternância corroeu a legitimidade da política institucional no Peru, que se aprofundou sob a presidência de Pedro Pablo Kuckzynski, o PPK (2016-2018).

Nas eleições de 2016, esse economista neoliberal superou Keiko Fujimori por 0,24% dos votos, mas, na presidência, foi impotente para sair da sombra da força política que derrotou. Contrariando um compromisso de campanha, PPK indultou o ex-ditador (que estava preso) para contar com parte dos votos da bancada fujimorista e evitar um impeachment1. Foi uma vitória de Pirro: poucos meses depois, a divulgação de vídeos comprovando a compra de votos resultou em um novo processo de impeachment, que precipitou a renúncia de PPK em março de 2018.

Mais do que a degradação institucional, o alto número de concorrentes (dezoito), a inexistência de partidos como tal, a pulverização dos votos (18% para o mais votado) e as candidaturas regionais que proliferaram sugerem um país em decomposição. Nesse cenário, já em 2021, o novo não teve a cara do progressismo encarnado por Verónika Mendoza (que ficou em sexto lugar), mas irrompeu na figura do professor e sindicalista Pedro Castillo, montado a cavalo e portando um lápis, de quem ninguém falava nem esperava nada.

A vitória (apertada) de Castillo revela que a sua imagem sintonizou com os sentires populares. E, de modo indireto, explicitou o vão entre a candidatura de Mendoza e a maioria peruana, o que, por sua vez, pode ser visto como apenas uma dimensão de um fenômeno social maior. No Peru, estão expostas fraturas que não param de se alargar em todo o continente, produzindo mundos à parte, que reatualizam a fissura colonial.


Chile

Gabriel Borić Font

O que acontece no Chile é do maior interesse para a América Latina e para o mundo, pois esse país foi palco de uma experiência pioneira e radical de neoliberalismo em nível mundial. O reordenamento econômico empreendido pela ditadura Pinochet (1973-1990) andou de mãos dadas com uma reorganização total das relações sociais em uma direção mercantil, com o objetivo político de esvaziar toda possibilidade de organização coletiva, e, em última análise, de resistência. Em certo sentido, esse objetivo foi alcançado: quando o Partido Socialista de Salvador Allende voltou ao poder em 2000, tinha se tornado um gestor neoliberal. Referência de modernidade na região, o país foi emulado internacionalmente como um caso de neoliberalismo que deu certo.

O Chile legado pela ditadura admite duas narrativas. Existe a ideologia do sucesso difundida pelo marketing estatal e ressoada internacionalmente, cujos protagonistas são os índices econômicos. Como toda narrativa, ela é seletiva, e revela que o país segue dependente das exportações de cobre; as taxas de crescimento são baixas em comparação com outros períodos históricos; estatísticas sociais são maquiadas; e as desigualdades persistem. Entretanto, analisada em seus próprios termos, a experiência pode ser considerada um sucesso no quadro latino-americano. A principal virtude do neoliberalismo chileno não é o crescimento e muito menos a igualdade, mas a estabilidade. Segundo essa narrativa, a ditadura exagerou na repressão, mas acertou na economia.

Mas a trajetória chilena também pode ser contada pela vida das pessoas: uma sociedade em que o ensino é uma mercadoria, que endivida os jovens – um endividamento que disciplina o trabalho, desprovido de estabilidade e direitos sociais –, em um país onde até servidores públicos “emitem notas” para serem pagos e o espectro de uma doença grave ronda as famílias, podendo levá-las à bancarrota; uma vida de trabalho que desemboca em aposentadorias geridas como produtos financeiros, resultando em uma calamidade social, que se expressa no maior índice de suicídio de idosos do mundo.

Não é possível saber como se desenrolará os entraves do país, após a eleição de Gabriel Borić Font, político chileno de esquerda e ex-líder estudantil. Trata-se de um país onde as ruas ainda não voltaram a dormir. Como saber se “a alegria está chegando”, como se cantou no ocaso da ditadura? Ou estão se abrindo as alamedas por onde passará o homem livre, como desejou Allende em seus últimos minutos como presidente?


Entre rebeliões e constituições

Os acontecimentos no Chile, na Colômbia e no Peru nos mostram que a possibilidade de mudança, se mudança virá, virá também dessas ruas que não foram pavimentadas pelo progressismo, e não mais dos países sob sua gestão ou na expectativa dela, como era o caso há vinte anos. E, no entanto, essa potência rebelde está em busca de novas linguagens políticas para instituir um mundo diferente, o que é um desafio global daqueles que militam pela emancipação.

Refletindo sob os escombros da Segunda Guerra Mundial, o filósofo alemão Gunther Anders anotou que a bomba atômica abriu um hiato entre a capacidade de destruição da humanidade e sua possibilidade de processar subjetivamente essa destruição. Um homem tem uma ideia do que significa matar outro homem, mas como processar 100 mil vítimas de uma arma nuclear? Ou como elaborar a morte diária de três mil infectados pela Covid-19 em um país?

De modo análogo, vivemos no século XXI um descompasso entre a ubiquidade das formas da opressão e uma capacidade limitada de imaginar e propor novas formas sociais. Na realidade, essa dificuldade é, em si, um sintoma da opressão do nosso tempo. Entretanto, premida entre o descrédito do socialismo do século XX e a colonização da subjetividade pelo mundo da mercadoria, a potência criadora das ruas arrisca a se tornar cativa da gramática da ordem, que produz essa rebeldia.

É certo que as rebeliões expressam muito mais do que isso, mas essa é a máxima mudança possível dentro da ordem que produz essas rebeliões. Ir além é o desafio civilizatório do nosso tempo. E dito tudo isso: o que o Brasil aprendeu, e pode continuar aprendendo, com essas experiências?

Referências:

Anders, Günther. “Theses for the Atomic Age” The Massachusetts Review, vol. 3, no. 3, 1962, pp. 493–505.

Arantes, Paulo. O novo tempo do mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.

Chagas, Rodrigo. “Colômbia: quatro anos após Acordo de Paz, mais de mil líderes foram mortos“. Brasil de Fato, 26 set 2020.

Dardot, Pierre et al. Le choix de la guerre civil. Montreal: Lux Éditeur, 2021.

Humala, Ollanta. Entrevista a Andina. Lima, 22 set 2012.

Feldmann, Daniel; Santos, Fabio Luis Barbosa dos. O médico e o monstro (no prelo).

Fernandes, Florestan. Poder e contrapoder na América Latina. São Paulo: Expressão Popular, 2015 (1981).

__. Revolução burguesa no Brasil. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.

Klein, Naomi. The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism. New York: Metropolitan books, 2007.

Montes, Rocío. ‘Vuelco en Chile: los independientes controlarán el 64% de la convención
Constitucional’. El País, 18 mai 2021.

Ruiz, Carlos; Boccardo, Giorgio. Los chilenos bajo el neoliberalismo. Santiago: Fundación Nodo xxi, 2015.

Ruiz Caro, Ariela. ‘Golpe de Estado en Perú’. El cohete a la luna. 20 nov 2020.

Santos, Fabio Luis Barbosa dos. Uma história da onda progressista sul-americana (1998-2016). São Paulo: Elefante, 2018.

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