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26/03/2024

A democracia vivenciada no dia a dia da população brasileira

Em ano eleitoral, é preciso, mais do que nunca, um reencantamento com a política, a fim de construir coletivamente um país democrático, justo e inclusivo, que seja de fato para todos e todas.

Por Elvis Marques

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Os 33 anos de vida de Helio Ronyvon estão ligados, desde muito cedo, a um direito fundamental garantido na Constituição Federal de 1988: a educação. Nascido em Natal, capital do Rio Grande do Norte, o jovem é graduado em Rádio e TV e mestre em Estudos da Mídia, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), atualmente cursa o seu segundo mestrado na Universidade de Lisboa, em Portugal. Mas antes de poder pendurar esses títulos na parede de casa, o comunicador conheceu, aos nove anos de idade, a importância das políticas públicas educacionais.

Helio Ronyvon. Foto: Jomar Dantas

Helio Ronyvon. Foto: Jomar Dantas

Para alcançar com qualidade o seu direito educacional, o jovem contou com políticas de incentivo à alimentação e aos estudos desde os seus nove anos de idade. “Eu e a minha família sempre fomos atendidos pelas políticas públicas. Recebemos o Bolsa Escola e o Vale Gás, e, depois, o Bolsa Família, além de material escolar da Prefeitura de São Gonçalo. Com esses suportes, eu podia comprar o meu material escolar e fazer aulas de natação. A minha família conseguiu administrar esse dinheiro, que, apesar de pouco, investia na minha formação e no meu futuro.”

Com o objetivo de continuar trilhando um caminho de mudanças, Helio Ronyvon decidiu cursar o Ensino Médio no Centro Federal de Educação Tecnológica de Natal (CEFET). O problema é que ele e a sua família não tinham condições de arcar com os custos de um cursinho preparatório. O jovem recebeu uma apostila ao se inscrever para uma vaga. Esse era o material de estudos que o acompanhava de segunda a sábado, porque aos domingos ele participava de aulões públicos preparatórios no Palácio dos Esportes, na capital.

“O meu primeiro impacto ao tentar entrar no CEFET foi quando eu soube da existência de uma política de cotas sociais para estudantes de escolas públicas. Eu passei um ano só estudando, não fazia mais nada da minha vida, enquanto vários amigos precisavam trabalhar para ajudar em casa. Por fim, conquistei uma das 18 vagas destinadas à rede pública”, conta.

Após concluir o ensino no CEFET e a graduação em universidade pública, em 2014, o comunicador decidiu mergulhar em seu primeiro mestrado, também na UFRN. Uma bolsa de estudos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) contribuiu para que Helio pudesse se dedicar apenas à formação, se manter e ajudar em sua casa. “Se eu tivesse que estudar e trabalhar, eu não daria conta, porque, muitas vezes, as aulas do mestrado mudavam de turno”, atesta.

Histórias como a de Helio só podem ser encontradas em uma sociedade democrática, comprometida com a garantia de direitos, a fim de que todas as pessoas, em suas múltiplas diversidades e grupos sociais, possam viver suas vidas de forma digna e livre, usufruir de seus direitos e cumprir os seus deveres. Por isso, dentre os princípios fundamentais da Constituição Federal do Brasil, são objetivos da República “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”

A palavra democracia, em sua origem etimológica, vem de demos, que significa povo, e kratos, que representa poder. Pode ser conceituada, então, como governo em que o povo exerce, de fato e de direito, a soberania popular. Esse é o sistema utilizado no Brasil e em grande parte do mundo.

As eleições periódicas dos representantes da população constituem a democracia, o que permite que, a cada disputa eleitoral, haja a alternância de poder ou as reeleições. Para garantir a realização das eleições e combater fraudes e abusos, a Justiça Eleitoral foi criada em 1932.
Fonte: Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Em 2024, a população dos 5.568 municípios brasileiros irá às urnas no dia 6 de outubro para eleger prefeito(a), vice-prefeito(a) e vereador(a), e, para aquelas localidades com mais de 200 mil habitantes, o eventual segundo turno ocorrerá no último domingo do mesmo mês, dia 27.

As eleições municipais são parte importante da estrutura democrática do país, sendo na esfera local onde a população vivencia de perto os benefícios e os impactos das políticas públicas municipais, estaduais e federais, como uma reforma administrativa, aplicação dos recursos do orçamento público ou na implementação de uma campanha de vacinação.

Também é nos municípios onde a aplicação e a efetivação das leis se dá. Na cidade de São Paulo (SP), por exemplo, está em tramitação o Projeto de Lei (PL) 584, que, se aprovado, prevê medidas e estratégias para o enfrentamento ao trabalho em condições análogas às de escravo no município e a promoção do trabalho decente. Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), em 11 meses de 2023 foram 2.847 pessoas resgatadas em situações de trabalho análogo ao escravo no estado, o maior número em 14 anos.

Já nos debates e em planos de governo de candidatos e candidatas ao Executivo e ao Legislativo municipal, devem estar presentes temas como: saúde, segurança pública, Educação Infantil, Ensino Fundamental, mobilidade, abastecimento de água e saneamento básico, moradia, meio ambiente e impactos das mudanças climáticas, como as inundações nas cidades.

Em entrevista para a Rede Brasil Atual, Nilson Hashizumi, jornalista e estrategista de campanhas eleitorais, considera que a polarização “Bolsonaro versus Lula” ainda deve mobilizar muitos eleitores nas próximas eleições. “Nacionalizar a disputa, no entanto, é um erro quando é preciso discutir e encontrar soluções para as cidades.” Fato é que os partidos dos dois opostos – PL e PT – devem contar com as maiores fatias do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas Eleitorais.


O caderno do projeto Encantar a Política – de iniciativa de diversos organismos religiosos do Brasil, como o Movimento Nacional de Fé e Política, com apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – apresenta alguns pontos para a população ficar de olho antes e durante as eleições deste ano. Confira:

– Ao assistir aos debates de candidato(as), prestar atenção nos planos de governo apresentados. São propostas viáveis ou mirabolantes?;

– É preciso que a escolha de candidaturas à Câmara Municipal seja coerente com a opção pelo(a) candidato(a) à Prefeitura, visto que, no atual modelo político, o chefe do Poder Executivo só governa com o apoio parlamentar;

– Verificar se as candidaturas têm disposição para realizar um mandato popular, participativo, no modelo de mandatos coletivos que emergem de novas práticas na política partidária;

– Valorizar candidaturas que representem setores e identidades que estão subrepresentadas nas Câmaras Municipais: indígenas, negros, quilombolas, mulheres, trabalhadores(as).


Atos golpistas em janeiro de 2023. Foto: Joedson Alves / Agência Brasil

A reportagem de destaque da 4a edição da Revista Casa Comum, relativa ao primeiro trimestre de 2023 (acesse em: bit.ly/RCC_4_EmDestaque) , destaca que, desde o processo de redemocratização do Brasil, o país nunca esteve tão próximo de uma série de tentativas de golpes de Estado, como aquelas vivenciadas no dia 8 de janeiro de 2023. Houve tentativa de explosão de uma bomba na região do aeroporto de Brasília, ônibus sendo jogado de viaduto, e as sedes do Judiciário, Executivo e Legislativo invadidas e depredadas, um prejuízo que passa dos R$ 20 milhões. O saldo da destruição e da tentativa de usurpação do poder ainda está em andamento, confira:

  • A Procuradoria-Geral da República (PGR) denunciou 1.412 pessoas, destas, 1.156 são acusadas de incitar os ataques, 248 de executá-los e 8 agentes públicos por terem se omitido;
  • Desse total, 1.354 denúncias foram aceitas pelo Supremo Tribunal Federal (STF);
  • Até o dia 8 de março de 2024, 131 réus já haviam sido condenados a penas que variam de 3 a 17 anos de prisão;
  • Os réus são acusados de tentativa de abolição, de forma violenta, do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa armada, dano qualificado e deterioração do patrimônio tombado;
  • E no dia 22 de fevereiro de 2024, importantes ex-autoridades da República foram intimadas a depor, simultaneamente, à Polícia Federal pela suposta participação na tentativa de golpe: o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), os ex-ministros Braga Netto, Anderson Torres e Augusto Heleno, além do almirante e ex-comandante da Marinha, Almir Garnier.

Robson Sávio. Foto: Assessoria de Comunicação / PUC Minas

Nesse contexto, Robson Sávio, professor do departamento de Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG) e representante do Núcleo de Estudos Sociopolíticos (Nesp) no projeto Encantar a Política, analisa que, nos últimos anos, há um processo de desen- cantamento com a democracia no Brasil e em diversas par- tes do mundo. O acadêmico aponta uma erosão do sistema que, principalmente após a Segunda Guerra Mundial, foi sendo constituído como democracia no ocidente, o qual, no Brasil, foi marcado pela Constituição de 1988.

“Criou-se no país as bases para a construção de algo que chamamos de Estado de bem-estar social, onde os princípios da dignidade humana, a redução da desigualdade, a eliminação da miséria, a inclusão social, a participação, a política das pessoas nos vários processos decisórios, de liberdade em todos os sentidos, como de expressão e religiosa”, argumenta.

Essa erosão democrática, no entanto, segundo avaliação do professor, começa a se desenvolver, no mundo e no Brasil, justamente quando o regime democrático estava começando a engatinhar por aqui. Um dos elementos responsáveis por isso se chama neoliberalismo: “Que é uma tendência de enxugamento da ação do Estado, e uma priorização da iniciativa privada, redução dos gastos públicos, ou seja, um incentivo grande àquilo que é individual e privado em detrimento do que é público e coletivo, algo que já é uma tendência há pelos menos 30 anos nos EUA e na Europa.”

Diante desse cenário apresentado pelo educador, a sociedade começa a se desencantar de tudo o que é público e coletivo, assim também com as instituições garantidoras da democracia contemporânea; um exemplo é o que ocorreu com a sede dos três poderes em Brasília. Outro elemento que integra essa deterioração do regime, conforme Robson, é a imprensa sendo colocada em cheque com advento das redes sociais.

O professor Robson Sávio explica que a extrema-direita trabalha com a ideia de homogeneização, ou seja, de que todas as pessoas pensam e agem igual, e trata os que pensam diferente como inimigos. Também pode ser conceituado como um fenômeno político caracterizado por elementos como nacionalismo extremo, autoritarismo e xenofobia.

“A ideia de uma guerra é permanente. Pode-se observar que em toda sociedade marcada pelo autoritarismo, as vozes divergentes são silenciadas. O problema é que os grupos de extrema-direita não suportam conviver com a diversidade, e impõe todo tipo de violência, inclusive a morte”, frisa o educador.

A partir dessa ideia de excluir ou eliminar as pessoas que pensam diferente, há a extinção da cidadania – da igualdade entre os indivíduos –, a expressão concreta do exercício da democracia.

Os dados da 20a edição da pesquisa Panorama Político do DataSenado, realizada em novembro de 2022, após as eleições gerais, mostram que sete em cada dez brasileiros, cerca de 73%, consideram que a democracia é sempre a melhor forma de governo. O levantamento Datafolha, divulgado em 21 de dezembro de 2023, segue esse mesmo patamar: o estudo mostra que 74% apoiam a democracia.

Já a revista britânica The Economist divulgou, no dia 14 de fevereiro de 2024, o seu índice de avaliação da democracia (Democracy Index) referente ao ano de 2023, o qual destaca uma tendência global de queda na qualidade democrática, chegando ao seu pior patamar desde 2006. O Brasil se manteve em posição estável, sem melhorias em relação ao ano anterior, mantendo-se com problemas a serem superados.

Débora Rodrigues. Foto: Patrícia França / Abong

A afirmação acima surge a partir da longa caminhada pela Bahia de Débora Rodrigues, mulher negra, educadora popular, historiadora, coordenadora de Programas na Associação Vida Brasil, presidente do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) na Bahia e integrante da direção executiva da Abong – Organizações em Defesa dos Direitos e Bens Comuns. A extensa apresentação se faz necessária para entender as diferentes óticas pelas quais ela enxerga a democracia no Brasil.

Em Salvador (BA), enquanto coordenadora da Vida Brasil, uma entidade que busca fortalecer, por meio da educação e participação social, pessoas e grupos socialmente vulneráveis e excluídos, Débora observa que a democracia chega fragilizada para essa população. “A gente se depara com falhas cotidianamente, porque a democracia, para essas pessoas, não consegue chegar e garantir direitos. Isso é possível enxergar também para um segmento importante da sociedade, as mulheres pretas, chefes de famílias, trabalhadoras informais, que estão na periferia, em lugares de difícil acesso à água e ao esgoto. A democracia é essencial para nós, mas, desse ponto de vista, é possível ver que ela não consegue alcançar parcelas da população brasileira.”

Quando Débora sai de seu território baiano rumo a alguma ação ou representação da Abong, ela enxerga outro tipo de “democracia”, essa referente aos espaços de participação da sociedade, que ainda podem ser privilegiados, ou seja, para poucos. “Porque nós estamos falando de grandes organizações que têm uma característica racial e de gênero muito presente: de homens e mulheres brancos, principalmente. Desse patamar, temos uma democracia que chega diferente. Eu vejo que acessar os espaços de poder, sendo uma mulher negra, é duro, e mais desafiante é permanecer.”

Ao analisar esses dois espaços de participação da sociedade em que atua, a historiadora aponta desafios sobre como esses debates chegam e se mantém em evidência e com credibilidade nas instâncias de poder. “Em nosso país, temos movimentos e organizações sociais fortes, que constroem espaços de participação social qualificados, por exemplo, o Consea, que foi retomado pelo atual governo do presidente Lula. Porém, apesar de desmontado pelo último governo, os movimentos que atuam na questão da segurança alimentar e da agricultura familiar nunca abandonaram a pauta e nem essa luta, e isso qualifica o nosso debate.”

Em contraponto, Débora afirma que as populações mais fragilizadas, apesar de terem ricas experiências democráticas em seus territórios, não conseguem garantir o mesmo espaço e debate democrático junto aos três poderes. “Eu faço parte do movimento de economia solidária, e ao mesmo tempo em que os nossos empreendimentos de mulheres, no campo e nas cidades, estão construindo ações e resistências belíssimas, ele não chega no espaço de poder com essa mesma magnitude vivida nos territórios. São movimentos que sofrem para conseguir falar em espaços democráticos de participação social.”

Garantida na Constituição Federal de 1988, a participação da sociedade na elaboração, implementação, gestão e fiscalização de políticas públicas e programas promovidos pelos governos é chamado, na legislação, de “controle social”. Essa participação pode ocorrer de diversas maneiras para além do voto durante as eleições.

Nos estados e municípios, há os conselhos gestores de políticas públicas, como os Conselhos de Assistência Social, de Saúde e de Educação. Outros exemplos de participação social são as conferências, audiências públicas, ação popular e ação civil pública.

Durante a Assembleia Nacional Constituinte, a qual resultou na Constituição Federal de 1988, a população apresentou mais de 72 mil propostas a serem avaliadas pelos parlamentares à época. Muitas das políticas públicas que conhecemos hoje são fruto desse processo de participação social, como o acesso gratuito à saúde.

A partir da carta magna, outras importantes medidas foram conquistadas pela sociedade, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, um marco legal e regulatório dos direitos humanos de crianças e adolescentes. Há muito o que se avançar em diversas pautas, não por acaso, a Constituição já recebeu mais de 140 emendas. Parecem muitas modificações, mas ao olhar para a diversidade e a complexidade da sociedade brasileira, ainda há muito o que caminhar.

Fontes: Tribunal Superior do Trabalho (TST), Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Ministério da Educação (MEC), Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Governo Federal, Fiocruz e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Resguardada na Constituição, a participação social, como visto anteriormente, se dá de múltiplas formas num regime democrático, e uma delas é por meio da organização popular, seja em associações, grêmios, movimentos sociais, pastorais, fundações, organizações não governamentais, institutos e outros. São grupos sociais essenciais para o pleno funcionamento do regime democrático.

“No campo dos direitos humanos são centenas de grupos diversos, assim como os que atuam em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. São milhares de organismos vivos, que mostram justamente a diversidade e a capilaridade de atuação da sociedade civil”, frisa Robson Sávio. Para o professor, no entanto, o grande desafio atual é a mobilização da “militância”, que, segundo ele, passou a atuar preferencialmente nas mídias digitais.

“Está difícil agregar, mobilizar e criar grupos de pessoas para atuarem como mobilizadores e defensores de direitos, inclusive no meio religioso. Vejo uma parcela da população participando intensamente na hora de votar, mas, após as eleições, há uma desmobilização, e uma reprodução de uma ideia de que o Estado não compensa, de que todo político é ladrão. Acredito que o grande desafio contemporâneo é entender as novas formas e estratégias de mobilização e adesão às causas, inclusive de como incluir pessoas de diferentes grupos da sociedade”, argumenta o educador.

Débora Rodrigues entende, principalmente a partir de suas andanças pelo Nordeste, que a importância da população e dos movimentos e organizações sociais vai muito além do voto, das eleições ou da defesa “intransigente da democracia”. Ela enxerga, nas experiências de vida e de luta de todos esses atores, a matéria-prima para a formulação e construção de políticas públicas.

Um dos exemplos citados por Débora é o Programa Nacional de Apoio à Captação de Água de Chuva e outras Tecnologias Sociais (Programa Cisternas) do governo federal, cujo objetivo é a promoção do acesso à água para o consumo humano e para a produção de alimentos por meio da implementação de tecnologias sociais simples e de baixo custo. Entretanto, como exemplifica a historiadora, antes de se tornar uma política de estado, o projeto se origina de um saber e fazer popular.

“A participação social é construída na experiência e na vivência do povo. Mas é necessário tomar cuidado e pensar que tipo de espaço de participação social nós queremos, porque o conceito dá espaço para tudo, inclusive para extremistas que defendem golpes. Há muito tempo que nós fazemos a avaliação de que os conselhos precisam ser repensados enquanto uma conquista da sociedade”, pondera a historiadora.

Dom Giovane Pereira de Melo. Foto: CNBB

Integrante do projeto Encantar a Política, Dom Giovane Pereira de Melo, bispo de Araguaína (TO) e presidente da Comissão Episcopal para o Laicato da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), explica que o projeto surge em um contexto no qual a Igreja Católica não se furta de participar ativamente de momentos decisivos da vida do país e de tomar posição a favor da democracia e do papel fundamental da participação popular.

“Dedicar-se à política é um compromisso de fé, como têm falado os nossos papas, de modo especial mais recentemente o Papa Francisco. Ele diz que dedicar- se à política é uma expressão singular de caridade, ou seja, trabalhar em favor da melhor política e em prol da sociedade”, argumenta o bispo.

Dom Giovane relembra momentos históricos como a coleta de assinaturas para emendas populares durante a Consti- tuição Federal de 1988, e o processo de incidência política realizado durante a Assembleia Constituinte. Mais recente- mente, ele cita o apoio à iniciativa popular para a criação da Lei da Ficha Limpa e em prol de reformas políticas.

“Entendemos que é de fundamental importância para o protagonismo da sociedade as instituições democráticas. E um outro ponto é que a Igreja entende que o princípio evangélico é parte integrante da sua missão: promover e defender o bem comum”, afirma.

Pensando nas eleições de 2024, Dom Giovane argumenta que é preciso aprofundar e aprimorar a democracia brasileira. “Esta proposta ganhou força dentro da Igreja Católica e na sociedade, principalmente diante dos momentos difíceis de ameaças à democracia que nós vivenciamos recentemente.”

O bispo tocantinense entende que a formação política de uma parcela da população ainda é frágil, por isso destaca o papel importante das religiões e de iniciativas como o Encantar a Política. “Tentamos levar essa formação por meio de cartilhas populares, numa linguagem mais simples para conscientizar, na hora de votar, sobre a escolha de pessoas que possam representar, em relação às políticas públicas em favor das comunidades menos favorecidas, mas entendemos que é um desafio”, observa.

Por Isadora Morena e Maria Victória Oliveira

Quem vê Monica Seixas – jornalista, ambientalista, feminista e ativista do movimento negro – em seu segundo mandato como deputada estadual em São Paulo, não imagina que sua atuação política e militância começaram quase como um acidente de percurso.

“Eu sou filha de pequenos produtores rurais. Meu padrasto tinha como profissão oficial porteiro, mas plantava no fundo de casa para complementar a renda. Minha mãe era empregada doméstica, mas também plantava no fundo de casa. Éramos muito miseráveis. Eu, uma menina negra, não tinha contato com a minha cultura, com meu povo, porque minha mãe é branca e o meu pai não fez parte da minha vivência”, conta.

Monica Seixas. Foto: Divulgação

Foi, aos 13 anos, que Monica deu uma virada de chave em sua vida. Ela testemunhou as crianças da escola pública na qual estudava em Itu, no interior do Estado, se organizando no Grêmio estudantil para decidir, entre outras coisas, sobre a cor do uniforme e a frequência de salsicha na merenda escolar. Para ela, o momento foi forte e transformador. “Eram crianças pobres, da minha idade, que se entendiam como sujeitos. Foi uma nova janela que se abriu. Todo o resto foi acidente, não foi nada planejado, e, desde então, eu milito. O que me move é a revolta sobre um estado de coisas.”

Hoje, enquanto deputada, Monica faz parte de um mandato coletivo com o Movimento Pretas, composto por seis mulheres além dela, as “codeputadas”. O modelo consiste em uma estratégia na qual um(a) representante político divide seu gabinete, suas responsabilidades e deliberações com cidadãos, como uma forma de aumentar a participação política da população.

Apesar de o Pretas ter sido eleito com mais de 100 mil votos, Monica vê o modelo como um meio para o fim, isto é, um processo para que espaços institucionais de política comportem mais a diversidade do Brasil. A deputada critica o sistema eleitoral brasileiro, por entender que o país ainda não vive uma democracia real, para todos e todas. Em sua avaliação, a institucionalidade não consegue resolver os desafios vivenciados diariamente por aqueles e aquelas que ela deseja representar.

Para Monica, é, nesse contexto, que se dá a importância de que pessoas pobres, periféricas, mulheres, pessoas com deficiência (PcDs), indígenas e LGBTQIA+ também tenham espaço na política, “não só porque são corpos excluídos, mas porque a cabeça pensa onde o pé pisa”. Os mandatos coletivos são, então, nada mais do que uma tentativa de “fazer caber mais gente”, sobretudo mulheres, que ainda não conseguem competir em pé de igualdade com homens brancos empresários.

Apesar das críticas ao modelo, Monica define o mandato coletivo como o “quilombo para as guerreiras que vão para o enfrentamento”, bem como uma forma de pensar e formular coletivamente e ter contato com realidades que não conhece. “O mandato coletivo é mais democrático para um país que tem uma cultura política colonial. Tudo o que foi produzido só foi possível porque tenho mais gente pensando comigo e em mais lugares ao mesmo tempo.”

Atualmente, Monica comenta que observa com preocupação a ascensão de uma extrema-direita e a formação de frentes amplas que, apesar de formadas para vencer a extrema-direita, procuram barrar pautas radicais e as próprias candidaturas de mulheres negras, por exemplo.

As experiências de fé e de política se confundem na trajetória de vida de Odja Barros, pastora batista que, há 30 anos, conduz uma comunidade de fé na cidade de Maceió e que optou por ter o evangelho como instrumento de transformação social.

A pedagoga e, também, escritora pastoreia a Igreja Batista do Pinheiro, considerada patrimônio material e imaterial do estado de Alagoas. A igreja, existente há 53 anos, está localizada em Pinheiro, um dos bairros de Maceió atingidos pelo crime ambiental da Braskem.

“Somos uma comunidade refugiada ambiental”, afirma a pastora Odja. Desde dezembro de 2023, a comunidade está impedida por via judicial de acessar seu templo. Segundo Odja, o prédio não está localizado no epicentro da crise, mas há um mapa definido pela Braskem que delimita as áreas de interesse da mineradora.

Em meio a uma terra arrasada, o templo em pé é símbolo de resistência. “Nós somos o único equipamento que continua lá e que eles [a Braskem] não são donos”, explica a pastora. “A Igreja decidiu, desde o início dessa luta, não abrir negociação com a Braskem. Isso mostra como essa Igreja tem consciência da sua profecia, do seu papel político. Mesmo sofrendo inúmeros prejuízos”, declara Odja.

As decisões sobre o enfrentamento ao crime ambiental são todas tomadas coletivamente pelos membros da comunidade de fé. Segundo a liderança, “o poder máximo da Igreja é a assembleia local, então, nada se decide sobre esse tema, nem nunca se decidiu sobre outros temas, sem a comunidade discutir e votar.”

Além de ter a democracia como princípio, a Igreja Batista do Pinheiro é também referência por ser inclusiva e comprometida com outras lutas sociopolíticas. O engajamento dessa comunidade se deu gradualmente, ao longo dos 30 anos de pastoreio de Odja e seu marido, devido a uma mudança de perspectiva sobre o evangelho.

“A leitura popular da Bíblia foi a minha grande virada de chave”, sentencia a pastora. A partir de suas inquietações, se aproximou de grupos ecumênicos e foi se apropriando de outra maneira de ler a Bíblia, “que sobretudo valoriza a comunidade como protagonista, fazendo uma leitura tanto mais crítica das estruturas quanto mais engajada e comprometida com transformações sociopolíticas.”

Desse estudo crítico dos textos sagrados, a educação popular passou a ser a linha condutora da sua prática religiosa. E, ao observar sua própria condição de mulher e a comunidade que ela liderava, em sua maioria feminina, passou a se aproximar dos estudos de gênero.

Na Igreja Batista do Pinheiro, nasceu o grupo Flor de Manacá, um coletivo pioneiro de estudo bíblico com o objetivo de “desconstruir a leitura patriarcal que sustenta essa cultura de violência contra as mulheres”, afirma Odja. A compreensão antipatriarcal da Bíblia levou a Igreja a avançar no acolhimento da comunidade LGBTQIA+ e, inclusive, a caminhar em direção a um estudo bíblico antirracista, integrando as lutas da cidade em diversas frentes e inspirando outras igrejas.

Odja, porém, não se considera uma ativista sociopolítica.

Odja Barros. Foto: Arquivo pessoal

Muito do que eu posso fazer como uma liderança nesses movimentos tem a ver com o suporte que essa comunidade me dá, me autorizando a ir, construindo essa caminhada coletiva e pastoral de luta, com essa força de um grupo de fé. Não é um trabalho isolado. A minha caminhada é mesmo pastoral comunitária. Tudo o que eu vou levando para as lutas é, sobretudo, bandeiras que a gente trabalha primeiro no âmbito comunitário. Algo que eu valorizo muito é essa comunidade que luta.”

Segundo a pastora, a Igreja Batista do Pinheiro vai deixando “outro sinal de que comunidades de fé podem ser esses agentes de um fazer sociopolítico, de uma relação de fé e política diferente.”

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